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E se o BCE cancelasse parte da dívida dos países?

Há um ano, poucos se atreveriam a colocar a hipótese em cima da mesa. Hoje, é motivo de debate aceso entre economistas. Mas em que consiste ao certo a proposta? E porque tem motivado tanto debate?
Christine Lagarde
Christine Lagarde. Foto Nils Thies-BCE/Flickr

Há um ano, poucos se atreveriam a colocar a hipótese em cima da mesa. Hoje, é motivo de debate aceso entre economistas. Falamos da proposta de cancelamento da dívida dos países da zona euro por parte do Banco Central Europeu (BCE), defendida num artigo assinado por uma centena de economistas, nos quais se incluem Thomas Piketty, László Andor (ex-comissário europeu para os assuntos sociais) e Francisco Louçã, ex-coordenador do Bloco de Esquerda. Mas em que consiste ao certo a proposta? E porque tem motivado tanto debate?

Ao longo dos últimos anos, o BCE tem adquirido títulos de dívida pública dos países no mercado secundário ao abrigo de programas de aquisição que ficaram conhecidos pelo termo “quantitative easing” (ou “alívio quantitativo”). Uma vez que se encontra estatutariamente proibido de comprar os títulos de dívida pública no mercado primário (ou seja, diretamente aos governos que os emitem), o banco central tem operado no mercado secundário, adquirindo os títulos aos investidores financeiros que os tinham comprado previamente aos governos. O objetivo desta atuação era reduzir significativamente os juros pagos pelos países, melhorando as condições de financiamento nos mercados financeiros e aliviando a pressão sobre os governos de países muito endividados, como o caso de Portugal. E pode dizer-se que esse objetivo foi alcançado, uma vez que os juros caíram para mínimos históricos e se têm mantido em valores próximos de zero.

Durante este processo, o BCE foi acumulando dívida pública dos países do euro no seu balanço. Embora os montantes correspondentes a cada país sejam variados, todos são relevantes do ponto de vista macroeconómico. No caso português, a dívida pública detida no balanço do BCE ascende a 68 mil milhões de euros, à volta de 33% do PIB do país. Para se ter uma ideia da dimensão deste montante, estamos a falar de um valor que excede largamente o dos fundos europeus destinados a Portugal sob a forma de subvenções do Mecanismo de Recuperação e Resiliência aprovado recentemente (que totalizam cerca de 13 mil milhões de euros, 1/5 do valor da dívida detida pelo BCE). Na verdade, é até superior àquilo que Portugal receberá até 2027 através do Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia (cerca de 30 mil milhões de euros).

É neste contexto que surge o debate sobre o cancelamento de dívida por parte do BCE. A razão para esta proposta prende-se com a crise profunda que o mundo atravessa, que penaliza desproporcionalmente os países mais endividados, uma vez que estes não têm tanta margem de manobra para contrair dívida adicional de forma a financiar o esforço necessário para combater a crise. A ideia é, por isso, que o BCE passasse a trocar as obrigações que cheguem ao seu vencimento por novos títulos sem um prazo definido nem pagamento de juros, o que o levaria a assumir essas perdas. Em contrapartida, caso a proposta não fosse aceite, admite-se também a possibilidade de o BCE os trocar por títulos de dívida de muito longo prazo, o que aliviaria relativamente os governos.

Os economistas recordam que, no conjunto da zona euro, 25% da dívida pública é atualmente detida pelo BCE. “Devemos a nós próprios 25% da nossa dívida e, se pagarmos esse montante, teremos de o arranjar de outra forma, seja através de novo endividamento para pagar a dívida anterior, em vez de o usar para investimento, seja através de aumentos de impostos ou reduções da despesa.”

É por isso que defendem o cancelamento da dívida detida pelo BCE, dando aos governos maior margem de manobra para combater a maior recessão das últimas décadas, bem como para financiar uma recuperação que passe pela transição ecológica. A este respeito, é importante notar que o Tribunal Europeu de Auditores já estimava, antes da pandemia, que a transição energética exigiria investimentos da ordem dos 300 a 400 mil milhões de euros anuais, um valor bastante superior ao do Fundo de Recuperação aprovado pela UE. O cancelamento da dívida detida pelo BCE poderia dar aos países mais condições para fazerem face a este desafio. Para Portugal, esta proposta reduziria a dívida pública dos atuais 133,7% do PIB para cerca de 100%.

Mas não faltam opositores a esta proposta. A presidente do banco central, Christine Lagarde, tem sido taxativa sobre este tema: “Os Tratados proíbem-no. Ponto final.” Também Fabio Panetta, membro do conselho executivo do BCE, avisou que, com a concretização da proposta, “se arriscaria a que os cidadãos percam a confiança na moeda”. A ideia por trás deste argumento é a de que, ao fazê-lo, o BCE envia um sinal aos mercados de que está aberto à hipótese de emitir moeda em larga escala, o que poderia colocar em causa o seu valor. Ricardo Reis, economista da LSE, argumenta no mesmo sentido: “Não consigo levar isto sequer a sério. Seria uma claríssima monetização da dívida pública e retiraria a independência ao BCE”, diz Reis, citado pelo Expresso.

Já Francisco Louçã considera que esta proposta “é a tecnicamente mais fácil e, porventura, a mais indiscutível do ponto de vista legal”. Na verdade, no artigo que Louçã co-assinou, é explicado que o BCE “pode imprimir dinheiro para compensar estas perdas: está previsto pelo protocolo nº 4 anexo ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”. Louçã lembra ainda que os programas de compra de ativos que têm sido levados a cabo pelo BCE podem chegar ao fim mais depressa do que se supõe. “A não existir mais tal programa, o valor do juro poderá ser substancialmente alterado e fica feito o convite a operações especulativas contra a dívida de alguns países. Esse cenário destruiria o euro”, alerta.

É a consequência do regime monetário em vigor, como explica o economista Paulo Coimbra: “Uma das características diferenciadoras de um regime monetário neoliberal é a autoimposição, política e institucionalmente construída, da subordinação creditícia do Estado soberano, colocando-o numa situação em que concede o monopólio da emissão monetária a um banco central e, simultaneamente, se auto exclui da possibilidade de, junto deste, se financiar diretamente, colocando-se, assim, por escolha, na dependência dos mercados financeiros privados.” Além de enriquecer os investidores privados que transacionam títulos de dívida pública, este regime cria um falso constrangimento às finanças públicas, uma vez que impede o banco central de financiar os estímulos orçamentais necessários para garantir o pleno emprego na economia. O cancelamento da dívida detida pelo BCE, com a correspondente assunção de perdas por parte deste, é um passo no sentido de orientar a atuação do banco central segundo os interesses da sociedade.

O artigo assinado pelos economistas recorda, aliás, que esta nem é uma proposta sem precedentes: aconteceu na Conferência de Londres em 1953, na qual a Alemanha teve direito a um perdão de dívida pública que permitiu ao país recuperar da crise em que se encontrava. “A grande questão é saber se a União Europeia atravessa uma situação de tal forma extraordinária que exija medidas extraordinárias. Acreditamos que sim”, dizem os economistas. Olhando para os números inéditos da recessão que a economia europeia atravessou em 2020, parece bastante difícil pensar o contrário.

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