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E se as feministas reinventassem as casas e as cidades?

Contra a especulação imobiliária, habitação pública e arrendamento solidário. Face à opressão, redesenhar o modelo de casas para socializar o cuidado e as tarefas domésticas, conceber a casa como um bem de uso, desenhar novas relações mais igualitárias dentro e fora do espaço doméstico. Por Vanesa Valiño.
Ilustração de Christian Gralingen publicada no Outras Palavras.
Ilustração de Christian Gralingen publicada no Outras Palavras.

Em fevereiro deste ano, Aliya Hamid Rao, socióloga da London School of Economics, publicou um estudo interessante sobre a distribuição de espaços domésticos em casais heterossexuais durante a pandemia. Assim, os locais ideais para trabalhar, como salas e escritórios separados, eram reservados para o homeoffice dos homens. E as áreas comuns e corredores, como a cozinha ou a sala de jantar, para as mulheres. Essa localização significava que as mães, ao contrário dos pais, trabalhavam, sem interrupção, apenas um terço do dia.

A distribuição desigual de espaços – e tempos – entre casais heterossexuais não é apenas um pacto de casais, nem se refere exclusivamente à pandemia. Tampouco é uma frivolidade. O objetivo deste artigo é justamente analisar a discriminação sofrida pelas mulheres tanto para ter uma casa como para usufruí-la. Feito o diagnóstico, anotam-se algumas das respostas que começam a ser vislumbradas em Barcelona.

Num livro essencial, Mulheres, casas e cidades, Zaida Muxí aponta que a casa é o lugar onde começa a socialização e são desenvolvidas as primeiras relações entre os géneros. Assim, enquanto para alguns a casa é um local de descanso, para muitas mulheres é apenas mais um local de trabalho. Na medida em que os comportamentos dos casais heterossexuais não mudaram assim tanto, a distribuição física e o uso das casas tiveram pouca variação. As escuras e minúsculas cozinhas e lavandarias que só admitem uma pessoa continuam a ser maioritárias e um dos quartos concentra iluminação e metros quadrados, enquanto os demais cómodos são relegados à mínima expressão.

Em termos gerais, a marginalização dos lugares destinados às tarefas domésticas, e a sua existência individual, dificilmente é questionada. Daí as abundantes manchetes (Cozinhas maiores para acabar com o machismo: a polémica medida do País Basco; O governo basco quer cozinhas maiores para os homens cozinharem; O governo basco obriga a ampliação das cozinhas para “combater o machismo”) que gerou a ampliação em alguns metros quadrados do tamanho mínimo estabelecido para as cozinhas promovida pelo governo basco em 2019.

Essa falta de consideração pelo trabalho desempenhado pelas mulheres tem ampla repercussão dentro e fora de casa. Apesar das melhorias nos últimos anos, a disparidade salarial na Espanha significa que as mulheres ganham em média 500 euros por mês a menos. Além disso, a sobre-representação, especialmente de mulheres negras e migrantes, no trabalho doméstico e de cuidados, no turismo e no setor de alimentação, tem levado alguns lugares a falarem em “she-cessão”, em oposição à “man-cessão”, a última grande recessão de 2008, caracterizada pelo desemprego masculino.

Num país com quase nenhum stock de moradias públicas e com pouco ou nenhum controle do mercado privado, a marcada precariedade económica das mulheres é um obstáculo difícil de ser solucionado. Em particular, a situação das mulheres chefes de família que vivem de arrendamentos é alarmante. No caso delas, de acordo com dados do Eurostat, a vulnerabilidade habitacional é superior a 50% e geralmente compromete o acesso a outras necessidades básicas, como alimentação ou vestuário.

Uma fase particularmente preocupante é a velhice. Em Espanha, mesmo sendo um dos países com uma das maiores taxas de envelhecimento do mundo, os idosos são considerados um fardo. Esse idadismo afeta as mulheres de forma mais intensa devido à sua marcada precariedade económica, ao peso dos cuidados que são obrigadas a suportar e aos que elas próprias requerem à medida que vivem mais. Além disso, os desejos e as capacidades das mulheres mais velhas estão a mudar. A vontade de viver as suas próprias vidas e o retumbante fracasso dos lares exigem novas políticas habitacionais.

Dinheiro, (tempo) e um quarto só meu

“Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio”, disse Virginia Wolf, em 1929. Mais de 90 anos depois, as dificuldades económicas enfrentadas pelas mulheres continuam a comprometer o seu direito à habitação digna. Face a isto, as respostas terão que ser necessariamente complexas.

Um primeiro esforço deveria concentrar-se em ter informações disponíveis e garantir a sua participação. Conhecer a magnitude da tragédia, as necessidades específicas das mulheres – negras, migrantes, solteiras, chefes de família, idosas, deficientes, com dependentes idosos, lésbicas, trans, etc – e garantir a sua participação na formulação de políticas seria um primeiro passo essencial. Assim, se poderia analisar de uma perspetiva interseccional a carência habitacional das mulheres, o esforço económico que elas têm de fazer e a qualidade de suas casas. Paradoxalmente, apesar da relevância social que o feminismo adquiriu nos últimos anos, é notória a falta de informações e análises desagregadas da questão da habitação popular. Chegou ao ponto em que é mais fácil saber as nacionalidades dos compradores de casas e a rentabilidade do mercado de arrendamento do que o impacto dos apoios ao arrendamento ou à reabilitação de casas em termos de género.

Um segundo aspeto relevante diz respeito à presença da mulher na conceção e na condução das políticas habitacionais e na promoção de ações voltadas para a reversão do patriarcado. Nesse sentido, é verdade que na esfera pública está a aumentar a quantidade de ministros, parlamentares e vereadores com responsabilidades habitacionais e também ministérios, secretarias e conselhos dedicados à igualdade de género e feminismo. Porém, na maioria dos casos, são mulheres de classe média e alta, brancas e não-imigrantes. Uma realidade que se distancia de uma população cada vez mais precária, mestiça e com diversas origens. Em qualquer caso, onde a desigualdade é claramente visível é no setor privado. Basta olhar os fóruns e debates com os principais corretores imobiliários para perceber a sobre-representação dos homens “brancos” das classes média e alta.

As melhores práticas habitacionais mostram que um terceiro aspeto essencial para a melhoria do direito à habitação de pessoas precárias é corrigir os desmandos do mercado. De acordo com a Constituição, o Estado trataria de garantir a função social da habitação, impondo sanções à especulação e submetendo a riqueza ao interesse coletivo. Na prática, estaríamos a falar de medidas generalistas à primeira vista, como proibir arrendamentos abusivos e prolongar a duração dos contratos, evitar o assédio imobiliário ou facilitar a renovação e adaptação de edifícios. De forma efetiva, uma política habitacional preocupada com as condições de habitação das mulheres terá de regular o mercado privado de arrendamento. Como aponta Carme Trilla, uma espécie de seleção natural fez com que atualmente residam em arredamentos inquilinas de longa data, pessoas que não puderam comprar um imóvel e um pequeno setor por convicção. Ou seja, mulheres idosas inquilinas, migrantes e jovens.

Em quarto lugar, é urgente melhorar as casas existentes em termos de energia e acessibilidade. A maior expectativa de vida das mulheres e a deterioração do seu estado de saúde tornam-nas mais vulneráveis ​à falta de elevadores ou à existência de banheiras. Por outro lado, o mau isolamento e os altos preços da fatura de luz fazem com que a escassez de energia as prejudique intensamente. Em Barcelona, ​​dois em cada três usuários do programa de auxílio energético são mulheres, com a maioria das mulheres mais velhas a morar sozinhas.

Finalmente, junto com a intervenção no mercado privado, uma política habitacional feminista tem de expandir a oferta pública de moradias destinadas a pessoas com limitados recursos económicos. Nem a melhor política de controle de rendas, tampouco os apoios ao arrendamento, permitirão que todas as mulheres possam pagar as rendas fixados pelo mercado. Em Barcelona, ​​por exemplo, 61% dos apartamentos de emergência para unidades familiares despejadas são para mulheres. Outros programas com um claro viés de género, sem terem cotas para as mulheres, são a reserva de apartamentos para famílias monoparentais e o programa de habitação com serviços para os idosos. Isto acontece porque a maior parte das famílias monoparentais são chefiadas por mulheres e por causa da maior vulnerabilidade das mulheres mais velhas. De tal forma que 90% dos apartamentos reservados na cidade para as famílias monoparentais são destinados a mulheres e mais de 70% das casas para os idosos são alocados para as mulheres. Estes são apenas alguns exemplos de programas amplos, com foco na precariedade, que beneficiam especialmente as mulheres. Também se poderia abordar o impacto do género quanto o apoio às rendas, a reserva de apartamentos para os jovens ou o próprio stock público de habitação como um todo.

A ideia, em todo caso, é mostrar que uma política habitacional feminista é fundamental para enfrentar as dificuldades económicas de se ter uma habitação adequada. Seja revertendo as lacunas do mercado privado, fornecendo auxílios ou disponibilizando apartamentos públicos para grupos especialmente vulneráveis. Isso não exclui a necessidade de políticas habitacionais voltadas especificamente para as mulheres, como a habitação para mulheres vítimas de violência machista. Mas, em termos gerais, num contexto habitacional caracterizado pela especulação e pela lógica do lucro ilimitado, a ausência de habitação a preços acessíveis, principal dificuldade para o acesso das mulheres à habitação, está diretamente relacionada com a sua especial precariedade económica.

Cozinhas com vistas

Nesse ponto, a questão seria como, através da habitação e do seu contexto, colocar em prática novos valores. Como Leslie Kern afirma no seu fantástico livro Cidade Feminista:A luta por espaço em um mundo desenhado por homens, medidas de igualdade económica não podem ser a única solução. Certamente, ela nos lembra, salários dignos, habitação acessível, creche gratuita e assistência médica acessível são componentes-chave em quase todas as visões feministas da cidade. Mas é errado esperar uma resolução económica para abordar as questões de género, raça e sexualidade.

O objetivo é projetar moradias e bairros sem viés patriarcal. Sem hierarquias, capazes de valorizar outros conhecimentos em pé de igualdade. Como geógrafas, arquitetas e sociólogas enfatizam, lugares físicos como cidades e casas moldam relações sociais, de poder e desigualdades. Então, se nós queremos realizar uma mudança social, a configuração da casa importa. O objetivo seria ter apartamentos e ambientes que facilitem as horas de dupla jornada, o trabalho remunerado e não-remunerado, a co-responsabilidade de todas as pessoas que compõem a unidade familiar e o resto da comunidade. O conceito não é novo. As primeiras feministas materialistas já realizavam projetos para casas e comunidades que facilitavam a socialização do trabalho doméstico e do cuidado dos filhos. Em Barcelona, ​​como em muitas outras cidades, os parques públicos já estão a ser desenhados através de novas diretrizes que consistem em promover espaços que possam ser adaptados a uma variedade de funções e famílias.

Para facilitar a flexibilidade e versatilidade, por exemplo, os quartos são grandes o suficiente para permitir vários layouts de camas e móveis. Também se busca uma certa igualdade no tamanho dos quartos. Em relação à cozinha, a ideia é permitir a participação de todos os seus habitantes e promover um design aberto à sala de jantar. Esta abertura deve facilitar o contacto visual e as tarefas de cuidado durante a preparação da comida, mas sem abrir mão do descanso do resto das pessoas mais envolvidas nas tarefas culinárias. A intenção, em suma, é dignificar espaços de trabalho doméstico como a cozinha e a lavandaria. Porque, como dizem os arquitetos do Cierto Estudio, cozinhar com uma vista a frente não é o mesmo que cozinhar em ambientes escuros e mal ventilados. Além disso, para reverter a solidão indesejada, essas casas estão equipadas com espaços comuns que convidam ao convívio, sejam jardins comunitários, quartos polivalentes ou terraços partilhados.

Certamente, o modelo mais completo de política habitacional feminista, capaz de assumir os desafios frente à Covid-19, são as alianças público/comunitárias para a promoção da habitação cooperativa. Com base nas melhores experiências do Uruguai e da Dinamarca, o novo cooperativismo que se promove em Barcelona garante o protagonismo dos utilizadores desde o primeiro momento e usa o espaço como ferramenta para prevenir o isolamento e socializar o trabalho doméstico e de cuidado. Face à especulação, propõe a propriedade coletiva e mantém a propriedade pública da terra. No seu esforço de combate às mudanças climáticas, está comprometido com o uso de materiais sustentáveis ​​e novas técnicas construtivas.

Pensar a habitação a partir de uma perspetiva feminista envolve mudanças profundas. Significa deixar para trás o modelo de lares que condenou milhares de idosos à morte durante a pandemia e promover, como afirmam Irati Mogollón García e Ana Fernández Cubero em Arquiteturas do Cuidado, um envelhecimento ativista. Está intimamente ligada ao respeito à natureza. Exige um novo desenho das casas que valorize e socialize o trabalho doméstico e de cuidados e uma nova relação em pé de igualdade com a administração pública. Significa, em suma, desde conceber a casa como um bem de uso, até desenhar novas relações mais igualitárias dentro e fora do espaço doméstico.


Vanesa Valiño é cientista política e assessora de Política Habitacional da Câmara Municipal de Barcelona.

Artigo publicado originalmente na CTXT. Traduzido por Rôney Rodrigues para o Outras Palavras. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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