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É para continuar a existir? A geoestratégia das alterações climáticas

A aceleração da indústria, a globalização do comércio, a extracção intensiva de matérias primas, a proliferação da economia dos combustíveis fósseis baratos, especialmente desde a crise do petróleo em 1979, tornaram a crise ambiental o centro da decisão colectiva não de qualquer bloco regional, senão da civilização humana. De João Camargo.
Encontros dos ministros das Finanças do G7 no Japão. Da esquerda para direita, Christine Lagarde, Michel Sapin (ministro das Finanças francês) e Mario Draghi, numa prova de saké. Foto de Kimimasa Mayama/EPA/Lusa.

Vivemos na perfeita convulsão. Seria difícil, há 20 anos atrás, conceber um tal descontrolo de todas as relações internacionais, sociais e ecológicas. A desregulamentação financeira, associada à velocidade vertiginosa das comunicações por rede, colocou a burla financeira no comando das transacções, fusões e aquisições, permutas, investimentos, bancarrotas e ruínas. De privados e de públicos. Por outro lado, a aceleração da indústria, a globalização do comércio, a extracção intensiva de matérias primas, a proliferação da economia dos combustíveis fósseis baratos, especialmente desde a crise do petróleo em 1973, tornaram a crise ambiental o centro da decisão colectiva não de qualquer bloco regional, senão da civilização humana.

Apesar da capacidade especulativa da banca e de finança, e do carácter absolutamente dominante que a mesma tem sobre a informação, hoje a crise climática, face mais evidente e mais urgente da crise ambiental, já está a desafiar esse domínio. Na generalidade dos casos, aqueles dirigentes políticos que apresentam dúvidas sobre as alterações climáticas (que podem tão facilmente ser também criacionistas ou dizer que a matemática é mentira) são os mesmos que apresentam uma fé imperscrutável na “Economia”, no “Mercado”, no intervencionismo comercial e militar, no excepcionalismo que alimentou o imperialismo, o colonialismo e o racismo. 

Desconectar a crise financeira da crise ambiental é um erro: o colapso dos mercados imobiliários americanos foi antecedido e acompanhou uma subida acentuada do preço das matérias primas, que fez disparar o índice global de produtos agrícolas brutos, energia, metais e alimentos. O colapso do Lehman Brothers e Bear Sterns, que atirou o mundo para uma nova Grande Depressão, viu surgir uma enorme contracção do consumo, associado directamente às políticas de austeridade impostas um pouco por todo o planeta, para resgatar com dinheiros públicos a banca privada à escala mundial. Depois de um novo pico dos índices de matérias primas no verão de 2011, os índices vêm em queda até ao actual momento, aproximando-se dos valores estáveis do início da década de 2000 e da década de 90.

Fonte: Indexmundi, 2016

Imediatamente a seguir ao crash das bolsas em 2008, quando as emissões de gases com efeito de estufa caíram acentuadamente, vimos no ano seguinte um retomar da aceleração das emissões à velocidade máxima, mesmo contra uma economia mundial em desaceleração. A desconexão entre o consumo e o investimento real e o crescimento económico acaba por assinalar mais um ciclo de bolha que, quando explodir, significará mais uma calamidade económica. Com o Deutsche Bank a assinalar prejuízos de 6700 milhões de euros em 2015 e a revelar-se a sua exposição de 65 biliões de euros (cinco vezes o PIB de toda a União Europeia) a produtos derivativos tóxicos, como aqueles que deram origem à crise de 2007/2008, a Europa posiciona-se para ser o centro do novo furacão.

Mas não apenas por motivos financeiros. A crise de refugiados (altamente alimentada pelas alterações climáticas na Síria e a guerra civil alimentada pela União Europeia e pelos Estados Unidos) associa-se a uma crise de “segurança pública” depois dos atentados em França, a uma crise política profunda (depois do esmagamento do governo grego em favor da austeridade, Portugal, Espanha e Irlanda retiraram mesmo o poder aos governos que implementaram e defenderam essa políticas), a uma crise de legitimidade (com o referendo à saída da Grã-Bretanha da União Europeia, em que a plausibilidade da vitória do “Sim” faz já olhar para a Dinamarca e a Suécia como próximos candidatos) e de desagregação (o confronto entre a UE ocidental e Hungria, Polónia, Áustria por força da eleição de forças cada vez mais fascizadas e xenófobas que rejeitam, entre outros, a livre circulação de pessoas). Tudo isto seria complicado de gerir. Falta portanto a crise climática. 

Diriam os mais optimistas que o Acordo de Paris, assinado em Dezembro de 2015, seria um ponto de inflexão nas emissões e consequentemente no agravamento das alterações climáticas. Se Janeiro de 2016 foi o Janeiro mais quente de sempre, se 2015 foi o ano mais quente desde que há registos, depois de 2014 ter sido o ano mais quente desde havia registos até então, se os 9 anos mais quentes de que há registo foram na última década, o sinal foi percebido e em Paris assinou-se um acordo que representa a vontade colectiva da Humanidade (viu-se manifestações por todo o mundo, inclusivamente Portugal, a exigir nada menos que o resgate da civilização humana da destruição da sua base mais material) de salvar-se. Ou será que não? O preâmbulo do acordo aponta a limitação da temperatura e por isso das emissões, a um máximo de 2ºC. Chegando às medidas concretas, o acordo deixa a cada país uma contribuição voluntária, com poucos ou nenhuns mecanismos de garantia, que serão negociados em COPs posteriores, começando este ano em Casablanca. Resultado: a soma das propostas individuais de cada um dos países perfaz um aumento de temperatura entre os 2,7ºC e os 3,7ºC. Bem longe dos 1,5 e 2ºC de que fala o preâmbulo e longe da segurança climática prometida. 

Como se o acordo não chegasse, olhamos para a geoestratégia mundial após o acordo e continuam sinais de recuo: de entre os 5 candidatos ainda na corrida à Presidência dos Estados Unidos quando este artigo foi escrito, apenas dois reconhecem a existência de alterações climáticas (os dois democratas) e apenas um tem políticas aceitáveis para lidar com as mesmas (Bernie Sanders). De resto, um dos principais motivos apontados para que o acordo da COP-21 não fosse vinculativo era o Congresso americano, liderado pelo Partido Republicano, poder vetar a sua entrada em vigor (como aliás ocorreu com Kyoto). Se o vencedor das eleições deste ano for um republicano, não haverá política climáticas nos EUA. Se for Hillary Clinton, verá políticas climáticas mais que insuficientes. Mas será que a União Europeia é assim tão diferente?

A Polónia, cujo crescimento económico depende fortemente das suas altamente poluidoras minas de carvão, rejeita as políticas climáticas. A Alemanha, apesar de publicamente se afirmar como um dos países mais pró-acção climática, alberga no seu país seis das dez centrais mais poluidoras da Europa. A Comissão Europeia, onde o Comissário Arias Cañete lidera a pasta do Ambiente e Energia, anunciou a nova estratégia europeia para a energia que representa uma aposta clara, durante as próximas duas décadas, na importação de combustíveis fósseis, principalmente gás natural, da Rússia (Gazprom), Norway (Statoil), Qatar e outros países do Golfo. Menos de dois meses depois do Acordo de Paris, a União Europeia apresenta uma estratégia que implicará o investimento de milhares de milhões de euros em infraestruturas para a importação de gás liquefeito, reforçando a dependência energética da UE e a sua contínua utilização de combustíveis fósseis. Arias Cañete, Comissário Europeu de Acção Climática e Política Energética é ex-ministro espanhol da Agricultura, Alimentação e Ambiente, sendo conhecido pela oposição às energias renováveis e apoio ao fracking e ao combustíveis fósseis.

A China, a Índia, o Canadá e a Austrália são também particularmente importantes nas emissões e na geoestratégia do clima, sendo que os primeiros aparentam, também devido aos efeitos locais da acelerada industrialização, realizar uma revolução económica na direcção das energias renováveis, com a China a liderar o investimento em renováveis, particularmente energia solar. O gigante pacote federal de investimento solar na Índia está a encontrar por outro lado enorme resistência por parte da Organização Mundial do Comércio, que decidiu, a pedido dos Estados Unidos, proibir a política de incentivo à produção local de painéis solares.

É no comércio internacional que se encontra o óbice da resposta às alterações climáticas. A Organização Mundial do Comércio tem na sua base a necessidade de impedir constrangimentos à liberdade de comércio, mesmo que essa “liberdade” indique a destruição social, económica e ecológica. E portanto Obama apressou-se a assinar a Parceria Transpacífica entre os Estados Unidos e 11 países do Pacífico (Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietname): ao empurrar as legislações de cada um destes países para a mínima restrição total, os Estados Unidos esperam voltar a colocar a sua economia e competir com a China pela desvalorização de salários, de Estado Social, de protecção ambiental, de salvaguarda de um futuro climático. Para a Europa prepara-se um acordo semelhante, o TTIP (Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento) negociado às escondidas mas cujos contornos já são amplamente conhecidos – pretende reduzir a protecção social, abrir o mercado europeu às práticas selvagens da agricultura americana, organismos geneticamente modificados, utilização sem critério de químicos, fracking, eliminação do princípio da precaução, entre outras). Nenhum garantia, dada quer pelos negociadores europeus, quer pelos negociadores americanos, consegue criar qualquer confiança nos cidadãos que já conhecem a opinião da liderança europeia. E por isso 3 milhões de pessoas por todo o continente assinaram uma proposta de uma lei contra a assinatura quer deste acordo com os Estados Unidos, quer do acordo de comércio livre com o Canadá, o CETA. O aprofundamento da política suja de combustíveis sujos é uma das bases mais claras da rejeição destes tratados. 

É que, apesar da retórica verde da presidência Obama, foi durante o seu mandato que se atingiu um novo pico de produção de petróleo nos Estados Unidos, que se abriram mais 75% das reservas potenciais offshore, que se quadruplicou o número de plataformas petrolíferas em operação, que se instalaram gasodutos e oleodutos em extensão suficiente para dar a volta à Terra mais de uma vez, além de se ter incentivado com dinheiros públicos a revolução do fracking (gás de xisto), prática de exploração de gás encapsulado na rocha e ainda mais agressiva que a simples extracção tradicional, contaminando lençóis freáticos e aumentando a actividade sísmica local. Segundo a análise da BP para 2016, espera-se que o gás de xisto dos Estados Unidos cresça 4% ao ano até 2035, e globalmente 5,6% ao ano, o que significaria que 2035 o fracking seria responsável por 24% de toda a energia produzida a partir do gás.

Ao contrário do que preconiza o preâmbulo do Acordo de Paris, a British Petroleum é muito clara no seu Energy Outlook 2016: as emissões de gases com efeito de estufa de combustíveis fósseis deverão aumentar 20% até 2035. O contrário da necessidade de deixar 80% de todas as reservas conhecidas no subsolo. A BP olha para o planeta e vê a forte possibilidade de países governados por idiotas que nem sequer acreditam na existência de alterações climáticas ou por convencionais que, reconhecendo a sua existência, não têm força nem vontade para conseguir resolver a mais importante questão alguma vez posta à Humanidade: é para continuar a existir?

Artigo escrito em março de 2016, publicado em papel na Edição Comemorativa dos 20 anos da Revista Bíblia.

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