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Documentando a Nakba: uma entrevista com a poeta Dareen Tatour

De modo a observar de que forma a história de Dareen se encaixa no contexto destes acontecimentos, decidi entrevistá-la sobre as suas experiências pessoais em relação à Nakba e à luta pela al-‘Awda – termo árabe para “O Regresso”. Por Yoav Haifawi.
Dareen na Marcha do Retorno. Fotografia de Dareen Tatour.
Dareen na Marcha do Retorno. Fotografia de Dareen Tatour.

Visitei a poeta Dareen Tatour, que se encontra em prisão domiciliária na sua casa na cidade árabe de Reineh, no dia 17 de abril, dia que aqui é conhecido como “O dia dos Presos Palestinianos”. Há dois anos e meio, Dareen foi presa por ter publicado um poema, tendo passado por um julgamento e encontrando-se agora à espera da sentença, que deverá ser proferida no dia 3 de maio – tudo isto, como é evidente, estando em situação de prisão em casa.

Entretanto, ao longo dos últimos dias, os palestinianos têm protestado, assinalando os 70 anos passados sobre o acontecimento da Nakba. Os palestinianos, dentro da Linha Verde, aqueles que ficaram ou estão próximo das suas terras dentro da histórica Palestina, depois da limpeza étnica posterior a 1948, realizam agora, todos os anos, uma “Marcha do Regresso”. Trata-se do seu principal encontro anual de modo a expressarem a sua identidade nacional e as suas aspirações à liberdade e à igualdade; isto é realizado na mesma data em que Israel declarou a sua independência.

Este ano foi igualmente testemunhada uma nova iniciativa respeitante à resistência não-violenta de massas na bem conhecida Faixa de Gaza, que alcançou o título de “A Grande Marcha do Regresso”. Todas as sextas-feiras, desde o Dia da Terra (a 30 de março), milhares de palestinianos marcham em direção aos muros da prisão que Israel construiu à sua volta. Trata-se de fortificações que enclausuram quase dois milhões de pessoas, a maior parte delas sendo refugiadas, numa muito pequena porção de terra, e restringindo, deste modo, todas as atividades económicas viáveis, o fornecimento de bens essenciais, tratamento médico e a liberdade de movimento. Quando os manifestantes se aproximam da vedação, os atiradores do exército israelita disparam contra eles a sangue frio. Desde o início desta demonstração, as forças israelitas mataram 45 pessoas e feriram mais de 6000. Através destas marchas, a ideia do direito ao regresso dos palestinianos ganhou de novo o seu lugar cimeiro na luta dos palestinianos pela libertação.

De modo a observar de que forma a história de Dareen se encaixa no contexto destes acontecimentos, decidi entrevistá-la sobre as suas experiências pessoais em relação ao Nakba e à luta pela al-‘Awda – termo árabe para “O Regresso”.

 

A Avó de Dareen e o Nakba em Safsaf

“– És refugiada?” – perguntei a Dareen. – “Não” – respondeu ela. “A família Tatour já vivia há muito em Reineh, muito antes dos sionistas chegarem à Palestina.”

“– Como é que tiveste conhecimento da limpeza étnica de 1948?” – continuei.

“– Tudo começou com a minha avó” – disse. “Ela contou-me como foram expulsos de Safsaf.”

Safsaf era uma aldeia palestiniana a noroeste de Safed, perto da fronteira com o Líbano. A 29 de outubro, de 1948, foi ocupada pelo exército israelita. Depois dos habitantes da aldeia se renderem, os soldados levaram a cabo um massacre, matando mais de 50 homens na aldeia, que foram atados e atirados os seus corpos para um poço. Três mulheres foram violadas, incluindo uma jovem de 14 anos. A história do massacre em Safsaf é reconhecida não só pelos historiadores palestinianos mas também por fontes israelitas. O exército israelita conduziu uma investigação interna, mas os resultados dessa investigação permanecem confidenciais por ordem do estado israelita.

Por esta altura, a avó de Dareen tinha 16 anos e era já casada com um homem de Al-Jesh, uma aldeia próxima. No dia em que as forças israelitas ocuparam Safsaf, ela encontrava-se na aldeia e testemunhou os horrores do massacre. Ela contou a Dareen que, antes dos disparos em massa, os soldados deram instruções para as pessoas se juntarem no centro da aldeia. Ela viu como eles encontraram duas jovens mulheres e um homem, escondidos numa cave. Os soldados mataram os três, perante o seu olhar aterrado.

A maioria das pessoas de Safsaf, incluindo a avó de Dareen e os seus irmãos e irmãs, acabou como refugiada no Líbano e na Síria, numa situação de desalojados sem pátria e vivendo um sofrimento para o qual, mesmo passados 70 anos, não se vislumbra um fim. A avó de Dareen juntou-se ao marido em Al-Jesh e aí permaneceu, tendo, mais tarde, nascido nesse local a mãe de Tatour. Muitas pessoas de Al-Jesh, depois de terem tido conhecimento do massacre em Safsaf, também fugiram. De modo que outros familiares da avó de Dareen também se tornaram refugiados. Alguns deles, em resultado de massacres levados a cabo por israelitas e ou árabes contra os habitantes de campos de refugiados palestinianos, encontraram, mais tarde, refúgio na Europa, mas a maior parte está ainda na Síria e no Líbano.

Dareen nunca conheceu o seu avô. Ele morreu quando a sua mãe ainda era uma jovem. Mas ela sente-se orgulhosa de tudo o que ouviu a sua avó contar acerca dele. Ele era um revolucionário e tomou parte na organização da greve geral árabe, na Palestina, em 1936, contra a ocupação britânica e contra a colonização sionista. Mais tarde, ele participou na revolta árabe, de 1936-1939, que foi brutalmente reprimida pelo exército britânico.

Dareen disse que ela se sente muito ligada à sua avó, que foi quem lhe contou sobre a vida no paraíso perdido de Safsaf, o Nakba e o destino dos refugiados. A partir daqui, ela sentiu uma necessidade de escrever e contar estas histórias, de fotografar o que resta das pessoas, memórias e casas, e de dedicar a sua vida à luta palestiniana para a recuperação dos direitos que foram perdidos.

 

Fotografia, história oral e activismo

Assim que terminou o ensino secundário, Dareen começou a documentar a vida palestiniana anterior ao Nakba, entrevistando nesse sentido a geração que sobreviveu. Ela realizou vídeos e escreveu histórias; começou por entrevistar a sua própria avó, mas rapidamente alargou o seu esforço e começou a procurar pessoas que se encontravam dispersas, oriundas das mais de 500 aldeias e cidades que foram destruídas pelos israelitas em 1948. Dareen acompanhou-os às suas aldeias destruídas e, algumas vezes, foi mesmo sozinha a esses locais para tirar fotografias.

Dareen publicou uma parte dos seus documentários no website “Palestine Remembered”, uma base de dados das aldeias palestinianas destruídas, para além disto publicou ainda no seu canal de Youtube, em páginas do Facebook e num blogue. Ela estabeleceu ainda um website para armazenar o seu material, o “ybbu3.com” (significando yanbu’a em árabe “água de primavera”). Na situação de prisão domiciliária, o tribunal proibiu Dareen de aceder à internet. Dareen afirmou que receia que o precioso material que armazenou no website esteja perdido. Ao mesmo tempo, muitos dos seus documentários foram guardados num computador que a polícia confiscou no decurso da sua prisão e julgamento.

Quando o ybbu3 estava ativo, Dareen usava o site para apresentar novas dimensões da luta palestiniana, estabelecendo relações entre os refugiados deslocados na palestina e os refugiados além-fronteiras. Cada um deles partilhava o que o outro não podia. As pessoas que ficaram na Palestina podiam visitar os locais das aldeias destruídas e enviar imagens. Refugiados além-fronteiras contactavam o site para pedirem que os ativistas locais procurassem o que restava das suas casas e as fotografassem de modo a preservarem as suas memórias. Pessoas, nos campos de refugiados, possuíam memórias preciosas e Dareen entrevistou-as via Skype e registou por escrito as suas histórias. Ela também ajudou a coordenar visitas de refugiados, que agora possuem passaportes europeus, às suas aldeias destruídas. Ela produziu três filmes sobre estas visitas de retorno às aldeias de Al-Damun.

Em 1995, alguns anos antes de Dareen começar o seu trabalho de documentação, representantes de grupos dispersos na Palestina, oriundos de diferentes cidades e aldeias, uniram-se para formarem O Comité Nacional para a Defesa dos Direitos dos Deslocados em Israel. Em 1998, por ocasião do cinquentenário do Nakba, iniciaram a tradição da Marcha Anual do Regresso. No ano 2000, o comité nacional estabeleceu-se a si mesmo como uma associação oficial registada.

Quando os ativistas da associação descobriram os documentários de Dareen, em “Palestine Remembered”, convidaram-na para realizar um curso de guias. Dareen juntou-se, então, à associação e encontrou aí uma outra plataforma para preservar as memórias dos palestinianos. Dareen juntou refugiados do Nakba e visitantes às aldeias destruídas para que os refugiados pudessem partilhar as suas memórias. Dareen filmou estes encontros.

À medida que a Marcha Anual do Regresso foi crescendo, dezenas de milhares de participantes se juntaram, e atualmente montam-se tendas com exibições especiais. Nas últimas marchas, antes da sua prisão, Tatour tinha a sua própria tenda, onde apresentava uma exibição de mais de 500 fotografias das aldeias e cidades destruídas, e que tinha por título “Conta-me sobre a minha aldeia”. Este não foi um acontecimento pontual – mas sim uma exibição anual, por ocasião da Marcha do Regresso, que teve lugar durante uma série de anos.

 

Ferida em Saffuriyya

Quando visitava a página do Facebook de Dareen, o que ela não pode fazer ao contrário das outras pessoas, eu encontrei uma imagem dela deitada numa cama de hospital, sendo visitada por Knesser membro da Jamal Zakhalka. Ela contou-me como foi ferida, em 2008, por ocasião da Marcha do Regresso.

Era o sexagésimo aniversário do Nakba. Nesse ano, havia um ressurgimento do incitamento de extremistas de direita e colonos contra a Marcha do Regresso, que estava a ter lugar nas terras da cidade destruída de Saffuriyya., a noroeste da cidade da Nazaré. Havia, nesse dia, uma significativa presença palestiniana, com muitas famílias que traziam crianças de todas as idades para participarem num evento educativo. Ao final do dia, quando os participantes estavam a abandonar o local da reunião e se dirigiam para o parque, a polícia permitiu que um grupo de colonos se aproximasse e atirasse pedras. Ao mesmo tempo que um conjunto de jovens tentava confrontar-se com os colonos, uma larga força policial, incluindo forças especiais anti motim, algumas montadas a cavalo, dispararam gás lacrimogéneo e granadas de choque para o meio da multidão e agrediram alguns com bastões. Os disparos da polícia provocaram um grave incêndio nos campos que estavam secos, o que contribuiu para colocar a multidão num perigo ainda maior.

Houve, então, uma grande confusão. A maioria das pessoas não esperava tamanha violência e mostraram-se confusas. Tentaram fugir em todas as direções. Crianças gritavam e muitas viram-se separadas dos seus familiares ou amigos. Dareen, armada com a sua câmara profissional, tentou permanecer calma de modo a poder documentar os acontecimentos. Ela ainda se lembra das cenas de polícias a agredirem indiscriminadamente a multidão, até pisando com as suas botas as vítimas. Ela também descreveu vividamente como as pessoas eram feridas quando a polícia a cavalo irrompia contra a multidão.

Subitamente, Dareen viu três crianças afastadas dos seus pais que estavam presas entre dois campos da polícia, sem serem capazes de se esconder. Ela parou de filmar e foi ajudá-las. Ela conduziu as crianças para fora de perigo, mas foi apanhada no meio dos dois campos da polícia e tornou-se um alvo direto para a sua fúria. Oficialmente, o gás e as granadas deviam ser disparados apenas para o ar, mas ela lembra-se como a polícia os arremessava diretamente na sua direção a uma curta distância.

Ela lembra-se, em particular, de um golpe direto na sua perna, e de uma granada que atingiu o seu peito. Ela sentiu a queimadura do ferro e a força da explosão deixou-a incapaz de respirar. Ela caiu no chão. Ela lembra-se de ter pedido socorro antes de perder os sentidos. Ela foi evacuada de ambulância para a cidade da Nazaré, onde ficou um dia hospitalizada.

Exatamente dez anos depois, sexta-feira, 20 de abril de 2018, cerca de vinte mil palestinianos participaram na 21.ª Marcha do Regresso no local da aldeia destruída de Atlit, a Sul de Haifa. Era a terceira Marcha seguida em que Tatour não podia participar, por se encontrar em prisão domiciliária. Alguns ativistas, políticos israelitas e alguns meios de comunicação racistas, exigiram que a Marcha fosse abolida. E ameaçaram com terror, se a Marcha se viesse a realizar. Contudo, eles não apareceram e a Marcha realizou-se. Eu apenas espero que, no próximo ano, Dareen possa marchar ao nosso lado novamente.

Artigo traduzido por Margarida Azêdo.

Publicada originalmente em mundoweiss.net.

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