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Dimitri Shostakovich, polémico

A figura do compositor russo Dimitri Shostakovich não deixa de estar na atualidade e a sua “presença”, por um motivo ou por outro, ocupa um lugar destacado, tanto no âmbito musical, como no cultural, seja pela contínua programação das suas obras por orquestras, grupos de câmara ou solistas, seja pela publicação de livros ou ensaios onde se analisa a sua vida e a sua obra, onde a sua contraditória relação com o regime soviético ao longo de muitos anos serve para alimentar todo o tipo de reflexões e análises sobre a natureza da criação artística em qualquer das suas manifestações; sobre os próprios autores e sobre a relação destes e a sua liberdade criativa com os condicionamentos impostos pelo poder político. (“O Ruido Que Não Pára” é um dos mais recentes livros publicados sobre este compositor).
Como modo de apresentação, as composições de Shostakovich a que se pode aceder nos vídeos que se incluem neste texto, são interpretadas pelo Trio Ramales. Este trio composto por violino, violoncelo e piano é um grupo de câmara formado por alunos da Escola Superior de Música Rainha Sofia, em 2015. Este ano, a sua trajetória musical foi intensa: sob o patrocínio da A.I.E. (Asociación de Intérpretes y Ejecutantes) deram uma série de concertos em diversas localidades (León, Mérida, Albacete...), obtiveram prémios nos concursos em que participaram: primeiro prémio no “XIV Concurso Internacional de Música de Cámara de Trasmiera” (Santander), no mês de março, onde interpretaram, entre outras obras, os dois trios de Shostakovich, que aqui se comentam, e o prémio da melhor interpretação de uma obra de um compositor espanhol no “5º Concurso Internacional de Música de Câmara Antón García-Abril”, celebrado em maio, onde interpretaram música de Turina. Encerrarão o ano em Madrid, no Auditório Nacional no ciclo “Primeiro Auditório”, organizado pela Fundação “Piú Mosso”.
Os trios de Shostakovich: "Trio Nº1 em Dó menor, Ópus 8" e "Trio Nº2 em Mi menor, Ópus 67"
Para situar estas duas composições há que assinalar, em primeiro lugar, que Shostakovich foi um compositor com uma produção musical muito extensa. Ao longo da sua vida (1906-1975), compôs nada menos do quinze sinfonias, meia dúzia de concertos, um elevado número de obras para música de câmara, várias óperas, bem como músicas para ballet e cinema. Entre as composições para câmara, destaca-se o elevado número de obras para quartetos de cordas, no entanto os dois trios são as suas únicas composições para violino, violoncelo e piano. Além disso. estas duas obras têm a particularidade de estar separadas no tempo por mais de vinte anos.
Shostakovich destacou-se pela sua grande precocidade. O trio nº1 é claramente uma obra de juventude composta aos 17 anos, em 1923, enquanto estudante do Conservatório de San Petersburgo, onde se graduaria, em 1925, aos 19 anos, com a sua “Sinfonia nº1” estreada com êxito. Para Shostakovich são anos de intensa atividade criadora (dois anos depois, em 1927, escreve a sua primeira ópera) favorecida pelo extraordinário impulso cultural que se desenrola após a Revolução de Outubro de 1917 e que abarca todo o tipo de atividades artísticas: pintura, música, teatro, poesia, cinema... (em 1925, estreia-se o “Couraçado Potemkin” de Eisenstein) dando lugar a um conjunto de movimentos artísticos englobados no termo “vanguarda russa”, cujo impulso se prolongará ao longo da década dos anos vinte.
O trio nº1 é uma partitura dedicada ao que poderíamos chamar o seu “primeiro amor”, a atração sentimental que sente por uma das suas amigas, Tatiana Glivenko, leva-o a compor e dedicar-lhe esta partitura (parece que Tatiana não correspondeu ao desejo de Shostakovich de estabelecer relações com ela). Esta obra que começou por se intitular “Poema”, consta de um só movimento com forma sonata con múltiplas mudanças de tempo e de dinâmica que separam as secções umas das outras.
O primeiro tema do trio começa com um cromatismo descendente que o violoncello realiza, em primeiro lugar, depois o violino e por último o piano, e que serve como motivo gerador de temas posteriores. O caráter do início é misterioso e instável, do ponto de vista harmónico. Mais adiante, sucede-se o segundo tema muito mais expressivo e íntimo. Após um desenvolvimento nos temas escutados durante a exposição, chegamos à reexposição e a uma coda que acaba em Dó maior com um caráter muito enérgico e apoteótico.
A atividade musical de Shostakovich desenvolveu-se sem graves contratempos nas suas relações com o poder até princípios dos anos trinta. A partir da estreia da sua ópera “Lady Macbeth” tudo mudou. Apesar do êxito que acompanhou a sua estreia, o artigo publicado em 1936 no jornal oficial Pravda, intitulado “Caos em vez de música”, provocou uma mudança radical na consideração pelo compositor.
A obra foi repudiada e criticada pelo seu “formalismo”, por ser “antipopular”, por cair no “decadentismo burguês"... e depois foi proibida a sua representação e o autor sofreu inúmeros ataques, acompanhados pela exclusão das suas obras em representações e concertos.
A refutação à obra de Shostakovich tinha uma justificação de caráter mais geral pela sua não adequação às pautas e critérios estabelecidos pela doutrina oficial do chamado “realismo socialista”, que todos os criadores deviam aceitar e assumir na sua produção intelectual e artística.
Para Shostakovich, abre-se um período negro num contexto político caraterizado pelas purgas estalinistas e os processos de Moscovo que durará até ao final da década de trinta. Neste período, o autor intensifica a sua atividade compositiva para grupos de câmara.
A invasão da URSS pela Alemanha nazi, em 1941, dá uma volta completa à situação. Shostakovich em pleno cerco de Leninegrado pelas tropas de Hitler (nas quais participaram as tropas espanholas enquadradas na chamada “Divisão Azul”) inicia a composição da sua sétima sinfonia, intitulada precisamente “Leninegrado”, como homenagem à resistência do povo russo frente à invasão. A sua relação com o poder muda. Chega de novo um amplo reconhecimento, por parte das autoridades soviéticas, que levam Shostakovich a comentar: “…voltei à vida depois da Sétima...”
No ano de 1944, quando compõe o segundo trio que comentamos, a motivação para esta composição é radicalmente distinta. Este trio está dedicado à memória do seu amigo Iván Sollertinsky falecido nesse ano. A importância de Sollertinsky na vida de Shostahovich fica patente neste parágrafo da carta que envia à sua viúva:
"Querida Olga Pantaleimonovna, não posso expressar com palavras a dor que senti ao receber a noticia da morte de Iván Ivanovich. Iván Ivanovich era o meu amigo mais íntimo e querido. A ele devo toda a minha educação. Para mim será incrivelmente duro viver sem ele. Os tempos separaram-nos e, nestes últimos anos, não tive a oportunidade de o ver ou de falar com ele frequentemente. Mas sempre me convenci que Iván Ivanovich, com a sua mente privilegiada, a sua clareza de ideias e a sua incombustível energia, estava perto de mim. A sua ausência é, a partir de agora, um golpe muito amargo...”
Sollertinsky, musicólogo e homem de vasta cultura, influenciou de maneira notável a formação, não só musical, de Shostakovich.
Neste trio, o primeiro movimento “Andante” transmite, em geral, uma sensação de tristeza e desolação e isso reflete-se de forma muito peculiar. No inicio esta sensação transmite-se com harmónicos para o violoncelo, que se desenvolve ao longo do movimento num denso movimento muito rico no aspeto polifónico e, em contraponto, empregando a fuga nalgumas ocasiões.
O segundo movimento “Allegro ma non troppo”, marcadamente pesado, é o movimento técnicamente mais difícil para os três instrumentos. As indicações metronímicas de Shostakovich são imposssíveis de seguir e todas as interpretações realizam-se de um modo mais lento do que está indicado na partitura.
O terceiro movimento “Largo” é o mais profundo, quando se refere à emoção. O piano repete uma série de acordes sobre os quais o violino e o violoncelo vão desenrolando a melodia e nalguns casos dialogam entre si. O caráter deste movimento é muito dramático.
Para finalizar, Shostakovich escreve um “Alegretto”, em estilo de música folclórica judia e com temas que utiliza no primeiro movimento do seu famoso quarteto "Nº8 Op.110". Após a reaparição do tema inicial do primeiro movimento com um caráter muito distinto do que apareceu ao princípio. O trio acaba com um Adágio intenso que congela o ambiente.
Nas suas relações com o poder, a trajetória musical e vital de Shostakovich, após a segunda guerra mundial, esteve de novo marcada por vários períodos de conflito e de distensão. Neste último caso, a distensão produziu-se após a morte de Estaline, em 1953. (Em 1960, ingressou no Partido Comunista).
Esta trajetória deu azo a diferentes interpretações e valorizações sobre a sua atitude perante o poder, sobre se se manteve sempre fiel às suas convicções e combateu pela liberdade criadora, apesar das difíceis condições nas quais levou a cabo a sua obra, ou se cedeu por vezes às imposições e pressões do poder para sobreviver à repressão do aparelho estalinista.
Em qualquer caso, à margem destas possíveis e diferentes visões, não há nenhuma dúvida que Shostakovich é um dos maiores, um dos mais importantes compositores do século XX e de que a sua obra oferece um oceano de possibilidades para a fruição musical.
* Publicado em Viento Sur. Tradução: António José André
Comentários
Dmitri Schostakovich
Gostaria de parabenizar ao tradutor António José Andre e ao núcleo de cultura do esquerda.net por esta maravilhosa reportagem. Dmitri Schostakovich foi um compositor incessante, inovador e intuitivo que não ficou preso apenas aos clássicos. Ele deu vasão a sua criatividade dedicando-se apenas ao ato de compor com liberdade até o momento em que infelizmente deparou com a realidade do país em que vivia e onde a arte possuía tentáculos. Seus altos e baixos na carreira fez com que suas obras se tornassem mais interessantes e instigantes. Teresa Teth
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