Em 2015 o problema colocou-se na Grécia com o Syriza e no futuro colocar-se-á em Espanha e noutros países da Europa com as forças de mudança.
A questão colocar-se-á a qualquer movimento de esquerda que chegue ao Governo numa sociedade capitalista. Quando uma coligação eleitoral chega ao Governo, não obtém poder real, porque o poder económico (que depende da posse e controlo dos grupos financeiros e industriais, dos grandes meios de comunicação privados, do grande comércio, etc.) permanece nas mãos da classe capitalista, ou seja, dos 1 % mais ricos da população. Além disso essa classe capitalista controla o Estado, o poder judicial, os Ministérios da Economia e das Finanças, o Banco Central … Na Grécia e em Espanha, como noutros países, um Governo determinado a exercer mudanças estruturais reais terá de entrar em conflito com o poder económico, para debilitar e portanto acabar com o controlo da classe capitalista sobre os meios de produção, os serviços, a comunicação social e o aparelho de Estado.
Se os governos de esquerda quiserem realmente romper com as políticas de austeridade e de privatizações que grassam por toda a Europa, entrarão imediatamente em conflito com poderosas forças conservadoras, tanto a nível nacional como europeu. E isto sucede pelo simples facto de declarar o desejo de aplicar medidas exigidas pela população, que recusa massivamente a austeridade. Qualquer governo de esquerda enfrentará uma dura oposição das instâncias europeias, da maioria dos governos da União Europeia, assim como dos dirigentes e grandes accionistas das principais empresas privadas, não esquecendo o FMI.
Mesmo autolimitando o seu programa de mudanças, qualquer governo de esquerda terá de suportar uma oposição forte, já que as classes altas e as instâncias europeias (intimamente ligadas e solidárias) pretendem levar ainda mais longe o maior ataque concentrado, no âmbito europeu, contra os direitos económicos e sociais dos povos, sem esquecer a vontade de limitar fortemente o exercício dos direitos democráticosi.
É ilusório pensar que se pode convencer as autoridades europeias e o patronato das grandes empresas (principalmente as financeiras e industriais) a abandonar o curso neoliberal reforçado desde 2010. Recordemos que François Hollande e Matteo Renzi, que timidamente propõem aliviar o espartilho da austeridade, procuram ao mesmo tempo aplicar o modelo alemão nos respectivos países: uma precarização mais avançada dos direitos de negociação colectiva e da protecção das conquistas dos trabalhadoresii. Eles não foram aliados do povo grego no ano decisivo de 2015 nem o serão doutras forças de esquerda autêntica amanhã noutros países.
A conclusão que se impõe é que não haverá um caminho fácil para pôr em marcha um programa económico e social que rompa com a austeridade e as privatizações. Os governos de esquerda terão de desobedecer aos credores, às autoridades europeias e ao FMI (todos se confundem amplamente) para serem fiéis às suas promessas eleitorais. Têm uma legitimidade e um apoio muito consideráveis, tanto no seu país como no âmbito internacional, o que mostra a que ponto a austeridade e as políticas europeias são recusadas. A recusa de pagar uma parte substancial da dívida constituirá um elemento chave na estratégia de governo, assim como a decisão de não prosseguir com as privatizações e restabelecer plenamente os direitos sociais que foram afectados pelas políticas de austeridade. Essa combinação é vital.
Reduzir drasticamente o stock da dívida e aliviar de maneira drástica a parte do rendimento dedicada ao seu pagamento é uma condição sine qua non para poder aumentar massivamente os gastos sociais e os investimentos necessários para financiar a transição ecológica e a criação de emprego.
Um Governo de esquerda tem de socializar o sector bancário (quer isto dizer: expropriar as acções privadas e transformar os bancos em serviço público, sob controlo cidadãoiii), tomar medidas rigorosas de controlo dos movimentos de capitais, arrecadar um imposto sobre o património dos 1 % mais ricos, repudiar empréstimos condicionados pela prossecução da austeridade e das privatizações, repudiar o pagamento duma dívida amplamente ilegítima, ilegal, insustentável do ponto de vista do exercício dos direitos humanos, inclusivamente odiosa. Um dos numerosos instrumentos à disposição dum Governo de esquerda para favorecer a participação e apoio popular, reforçando ao mesmo tempo a sua posição face aos credores, é a auditoria da dívida com participação cidadã activa, a fim de identificar a parte da dívida que não deveria ser paga, que deveria ser repudiada.
Não pretendendo ser exaustivos, podem ser avançadas as seguintes definições:
Dívida ilegítima: dívida contraída pelos poderes públicos sem respeito pelo interesse geral e em favor do interesse particular duma minoria privilegiada. Por exemplo, a dívida gerada pelos «elefantes brancos», como o aeroporto de Castellón.
Dívida ilegal: dívida contraída em violação da ordem jurídica ou constitucional aplicável. Por exemplo, a originada pelos casos de corrupção, como os que são patentes nas operações «Malaya», «Púnica» e «Gürtel».
Dívida odiosa: créditos ligados à implementação de políticas que violam os direitos sociais, económicos, culturais, civis ou políticos das populações afectadas pelo pagamento dessa dívida, com conhecimento dos credores. Por exemplo, a dívida contraída para resgatar a banca espanhola implementando políticas desenhadas pela Comissão Europeia para impor mais austeridade, violando direitos económicos e sociais dos cidadãosiv.
Dívida pública insustentável: dívida cujo reembolso impede os poderes públicos de garantir os direitos humanos fundamentais. Por exemplo: a dívida pública espanhola, que ascende a 101 % do PIB. O pagamento da dívida absorve uma das maiores fatias das receitas centrais do Estado, o que impede de aplicar milhares de milhões de euros nos serviços básicos.
O ponto 9 do artigo 7º do Regulamento (UE) nº 472/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Maio de 2013 – que já tínhamos denunciado, por constituir uma tutela dos estados-membros submetidos a planos de reajustamento estrutural – determina que esses países devem realizar uma auditoria integral, a fim de determinar as razões do aumento exagerado de endividamento e revelar irregularidades. Eis o texto completo do ponto 9 do citado artigo 7º: «Os Estados-Membros sujeitos a programas de ajustamento macroeconómico devem realizar uma auditoria exaustiva às suas finanças públicas, a fim de, designadamente, avaliar os motivos que levaram à acumulação de níveis excessivos de dívida e detectar eventuais irregularidades.»v
O Governo grego de Antonis Samaras (2012-2014) absteve-se de aplicar o disposto no regulamento, para ocultar da população grega os verdadeiros motivos do aumento da dívida e as irregularidades a ele associadas. Os restantes governos europeus sob assistência financeira, incluindo o de Mariano Rajoyvi, tão-pouco fizeram auditorias. A Comissão Europeia não exige a auditoria, porque se deu conta de que esta disposição do regulamento pode contrariar os seus interesses e os interesses dos credores. Nós advogamos que um Governo de esquerda deve tomar medidas unilaterais de autodefesa, frente às imposições injustas das instituições europeias. Há que desobedecer e ao mesmo tempo é possível fundamentar a decisão neste artigo do regulamento que os governos «austeritários» e a Comissão Europeia não aplicam.
O que está em jogo com a auditoria da dívida dos municípios
Após mais de 5 anos de austeridade imposta pela UE com a conivência de governos de Zapatero e Rajoy, os chamados municípios da mudança começam a revoltar-se contra ela. Primeiro foi modificado o artigo 135º da Constituição espanhola, para dar prioridade absoluta ao pagamento dos juros da dívidavii, e depois vieram leis «austeritárias» como a Lei da Estabilidade Orçamentalviii ou a «Lei Montoro» da Administração Localix. A aplicação destas normas mina a autonomia dos municípios e dos governos das regiões autónomas e ataca os direitos dos cidadãos. Consideramos estas normas legais profundamente injustas e impostas sem legitimidade democrática. De facto, a Lei Montoro foi declarada parcialmente inconstitucionalx.
O resgate da banca espanhola, que constitui de facto uma socialização dos prejuízos dos bancos privados, continuou com medidas como o Plano de Pagamento a Fornecedores (FFPP) das câmaras municipais ou o Fundo de Liquidez Autónoma (FLA), que, em vez de servir os interesses gerais, na realidade serve os dos bancos, que aplicam às administrações públicas taxas de juro abusivas, até 26 vezes superiores às que o Banco Central Europeu (BCE) aplica às entidades financeiras. Tanto o Plano de Pagamento a Fornecedores como o FLA contribuíram para aumentar a dívida pública de maneira ilegítima nos municípios e nas regiões autónomas.
Na Câmara de mudança de Cádis, onde é alcaide José María González «Kichi», a equipa de governação formada por Sí Se Puede Cádiz e Ganar Cádiz apresentou uma moção neste sentido, em 20 de Novembro de 2015, que não foi aprovada. A moção, muito bem fundamentada, calculava que a dívida de 90 milhões de euros resultante do Plano de Pagamento a Fornecedores (FFPP) tinha gerado um acréscimo de custos de 14 milhões de euros a título de juros abusivos. A direcção camarária considerou que a ilegitimidade de parte da dívida radicava principalmente nos juros aplicados aos empréstimos, muito diferentes dos praticados pelo BCE quando empresta dinheiro. Os bancos cobraram às câmaras juros (3,34 %) até 13 vezes acima do que os juros que pagam sobre o dinheiro que receberam do BCE (0,25 %)xi.
Outro elemento de ilegitimidade do FFPP e do FLA é que foram utilizados de maneira eleitoralista por parte do Governo de Mariano Rajoy, não só em benefício da banca, mas também do Partido Popular. Assim, em 2015, ano eleitoral, eliminou os juros que os municípios tinham de pagar aos bancos nesse ano e reduziu a partir de 2016 a taxa cobrada pelos bancos, que passa a ser de 1,31 % durante um período de 7 anos. Isto quer dizer que se Rajoy, por decisão do Governo, impõe aos bancos cobrar taxas de juro mais baixas, as que cobravam antes eram claramente abusivas. Demonstra, além disso, que quando lhe interessa, até o governo do PP pode tomar decisões contra os bancos, para aliviar a dívidaxii. Ora os 1,31 % de juros continuam a ser abusivos, tendo em conta que desde Março de 2016 estes bancos se financiam no BCE a 0 %xiii.
Ainda por cima, o FFPP pode ser utilizado como meio de branqueamento de dívidas ilegais. Se a auditoria mostrar que anos antes um município contraiu uma dívida comercial com uma empresa de maneira ilegal, o FFPP transforma essa dívida comercial em dívida financeira, passando a ter como credor um banco, em vez de um fornecedor. Esta reestruturação da dívida, comparável às que foram feitas na América Latina ou na Grécia, resulta em benefício da banca e contribui para branquear a dívida ilegal. Se foi cometido um delito ao contrair a dívida, a transformação da dívida não elide o delito, ainda que a operação tenha esse propósito. Quando uma dívida é ilegal, deve ser anulada, pois o delito que lhe deu origem permanece.
No ano corrente de 2016, o governo de Mariano Rajoy «em funções» não deixou de aplicar a austeridade, obedecendo servilmente a uma Comissão Europeia cada vez mais débil e desacreditada. O ministro do Tesouro e da Administração Pública em funções, Cristóbal Montoro, o mesmo que assinou a amnistia fiscal de 2012, dedicou-se a enviar cartas intimidatórias aos municípios, ordenando o encerramento das empresas municipais que oferecem serviços públicos fundamentais, como o tratamento da água ou os transportes urbanos. O seu «banditismo político» levou a que as câmaras se levantassem em pé de guerra; até a Federação Espanhola dos Municípios e Províncias (FEMP), presidida por um alcaide do PSOE, apresentou um pedido de suspensão da Lei Montoro.
A exigência de ajuste às Corporações Locais é sangrenta, ainda que sejam as menos endividadas, com 3,2 %, em comparação com os 24,9 % das comunidades autónomas (CCAA) e os 88 % da Administração Central. O total da dívida pública no segundo semestre de 2016 ascendeu a 101 % do PIBxiv.
Tão-pouco conseguiram livrar-se das pressões de Montoro as CCAA, às quais foram exigidos ajustes, chantageando-as com o Fundo de Liquidez Autonómica (FLA). Também neste caso o Governo saiu-se mal. No Conselho de Política Fiscal e Financeira (CPFF) – que coordena a actividade financeira da Comunidades e o Tesouro do Estado – do passado mês de Abril, entre todas as CCAA de todas as cores políticas «praticamente houve consenso absoluto em discordar da política de repartição do défice, assim como dos objectivos apontados por Bruxelas»xv.
Nesta defesa da soberania popular e da dignidade contra a austeridade e a ditadura da dívida se enquadra a actividade que realizamos no Comité para a Anulação das Dívidas Ilegítimas (CADTM) e na Plataforma Auditoria Cidadã da Dívida (PACD), onde promovemos a realização de auditorias cidadãs, publicando um guia que ajuda a compreendê-las e a pô-las em marcha. É necessário que os governos da mudança apoiem a vontade dos cidadãos de identificar as dívidas ilegítimas. Os governos de mudança deveriam estimular e oferecer o seu apoio às auditorias, que não podem ser um mero exercício democrático, têm de desembocar numa prática para acabar com o pagamento das dívidas ilegítimas e levar os culpados perante a justiça.
Quando se paga aos credores, a dívida não é problema deles. Como diz um provérbio popular: se tens uma dívida de 1000 euros ao banco e não podes pagar, o problema é teu; se a dívida for de 10 milhões e não a pagares, o problema é do banco.
Sabemos que nada disto será possível sem a necessária mobilização. Se o movimento cívico, os movimentos sociais, os e as militantes e membros das forças de esquerda abandonarem a questão do repúdio do pagamento da dívida ilegítima no Estado espanhol e se limitarem a pedir uma reestruturação da dívida, acabaremos por ter uma experiência tão decepcionante como a grega. Por conseguinte é necessário manter a importância deste combate e mobilizar energias para essa batalha.
O exemplo mais recente é o manifesto de Oviedoxvi, que propõe uma frente de municípios, CCAA e nacionalidades do Estado espanhol contra a dívida ilegítima, que já foi subscrito por mais de 600 responsáveis autárquica/os, vereadores e deputada/os de diversos territórios e partidos políticos e que está aberto a movimentos sociais, activistas e cidadãos.xvii
Fátima Martínxviii - Éric Toussaintxix
Tradução: Rui Viana Pereira
Ver em linha : http://blogs.publico.es/otrasmirada...
Artigo publicado no CADTM.
iVer: http://cadtm.org/La-Union-Europea-conculca-las, publicado em 19 de Dezembro de 2014.
iiVer: http://www.cadtm.org/Uniao-Europeia-conquistas, publicado em 9 de Janeiro de 2015.
iiiVer: «Que fazer com os bancos? – Medidas imediatas no sentido da socialização», texto colectivo assinado por Eric Toussaint, Iolanda Fresnillo, Esther Vivas, Michel Husson, Eulàlia Reguant, Patrick Saurin, Mikel Noval, Stavros Tombazos, Carlos Sánchez Mato, Sergi Cutillas, Daniel Albarracín, Tom Kucharz, Fátima Martín, Miguel Urbán Crespo, Natalia Munévar, Josep Manel Busqueta, Quim Arrufat, Marina Albiol, Teresa Rodríguez, Lola Sánchez, Lidia Senra, Francisco Louçã, etc. http://www.cadtm.org/Que-fazer-com-os-bancos,13362
ivMemorando de Entendimento sobre condições da Política Sectorial Financeira, feito em Bruxelas e Madrid a 23 de Julho de 2012, e Acordo-Quadro de Assistência Financeira, realizado em Madrid e Luxemburgo a 24 de ulho de 2012. Ver: https://www.boe.es/diario_boe/txt.p...
vRegulamento (UE) nº 472/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Maio de 2013, «relativo ao reforço da supervisão económica e orçamental dos Estados-Membros da área do euro afectados ou ameaçados por graves dificuldades no que diz respeito à sua estabilidade financeira». Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-cont...
viO governo de Rajoy está sob assistência financeira via Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), que intervém no financiamento do resgate bancário.
viiReforma do artigo 135º da Constituição espanhola, de 27 de Setembro de 2011. Boletín Oficial del Estado. Ver: http://www.boe.es/diario_boe/txt.ph...
viiiLei Orgânica 2/2012, de 27 de Abril, de Estabilidade Orçamental e Financeira do Estado. Ver: https://boe.es/buscar/act.php?id=BO...
ixLei 27/2013, de 27 de Dezembro, de racionalização e sustentabilidade da Administração Local. Boletín Oficial del Estado. Ver: https://www.boe.es/boe/dias/2013/12...
x«España: Ayuntamientos en pie de guerra exigen una moratoria de la austeritaria Ley Montoro, declarada parcialmente inconstitucional», 31/08/2016, http://www.cadtm.org/Espana-Ayuntamientos-en-pie-de
xi«El equipo de gobierno de Cádiz considera que la mayor parte de la deuda financiera debiera ser considerada como ilegítima», 28-02-2016, http://www.cadtm.org/El-equipo-de-gobierno-de-Cadiz
xiiEric Toussaint: «Es fundamental un frente de los municipios del cambio, tengan o no un problema inmediato de deuda», 28/02/2016, http://www.cadtm.org/Eric-Toussaint-Es-fundamental-un
xiiiNote-se que entre Setembro de 2014 e Março de 2016, os bancos espanhóis financiaram-se junto do BCE com taxas de juro de 0,05 %, o que equivale praticamente a 0 %. http://www.ecb.europa.eu/stats/mone... consultado el 9 de octubre de 2016
xiv«Passivos em circulação e dívida segundo o protocolo de Défice Excessivo (PDE). Percentagens do PIB pm. Banco de Espanha», disponível em http://www.bde.es/webbde/es/estadis...
xv«La deuda de Aragón se ha multiplicado por seis en los últimos ocho años, un incremento “absolutamente ilegítimo”», 20/07/2016, http://www.cadtm.org/La-deuda-de-Aragon-se-ha
xviiiJornalista. Membro da PACD e do CADTM espanhol.
xixDoutorado em Ciências Políticas pela Universidade de Liège e Paris VIII, historiador por formação, Éric Toussaint é porta-voz do CADTM Internacional. Luta há muitos anos pela anulação da dívida nos países do Sul e das dívidas ilegítimas nos países do Norte. Coordenou os trabalhos da Comissão para a Verdade sobre a Dívida, criada em 2015 pela presidente do Parlamento grego.