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Democracia (Governo do povo para o povo)

Neste texto escrito em versos, Vítor Ruivo fala sobre a “ verdadeira Democracia do povo para o povo”.
Foto: Guilherme Santos/Sul21.

Diz-se que foi a Grécia que a inventou
mas se foi, do que eu duvido,
um pecado original conteve a invenção
porque se trouxe algo de novo
o velho em si ela ainda conservou:
Ao grego livre tudo lhe foi concedido
mas ao estranho derrotado e ao escravo
- a Escravidão!

E aos gregos cidadãos que tudo entre si debatiam
e como iguais tudo decidiam livremente
foi sempre possível serem democratas
pois sustinha-se descambada a sua Democracia:
ao suor e à obediência da multidão dos escravos,
na inconsciência do seu direito natural,
tudo devia.

Ah! pobre historiador de meia tijela
alarga neste versejar a redutora fantasia
que os factos como foram só em parte lhe dão guarida
e a velha luta das classes não se esgota nela
pois não foi em toda a Grécia que ela foi parida
mas somente na tirana Atenas depois rural aristocrata
que as mãos do trabalho camponês e citadino
obrigaram a decisão a ser um pouco mais repartida
e de fora ficaram as mulheres – a perene mal-a-pata
e cidadão só o filho da Cidade, o grego genuíno,
cujo engenho militar venceu tantas guerras em que foi metida,
mas sempre a nova Democracia nos dois séculos que durou
e, fora Esparta, por todas as cidades que alcançou
nunca ela à maioria do povo foi concedida.

Ah! mas esse pequeno acréscimo de poder de decisão
quantas maravilhas trouxe às artes e à filosofia
feita quase ciência sobre o mundo e sobre a vida
só porque o direito à palavra e a dialéctica da acção
descobriram novos olhares e nova teoria
que embora aos limites do seu tempo compelida
ainda hoje lhe chamam berço da Civilização.

(mas tão renitente foi o pecado original
que nesta ainda está contida,
da primeira Democracia, a sua contradição)

Dez séculos depois é esse tempo relembrado
inspirando o Renascimento e outras ideias novas
a que a expansão e o comércio foram deitando mão
à medida que o mundo todo foi alcançado
e a lentidão dos campos e das velhas trovas
deram lugar às gentes concentradas
na nova escravidão do trabalho assalariado
senhor apenas da força do seu braço
que até o seu saber por outros foi roubado
com a promessa doutra nova Democracia
onde finalmente as mulheres entraram no compasso
da linda cantiga de cada cidadão um voto
e de pelo mérito pessoal se alcançar o que se queria.

Assim chegados ao século vinte e um
o mito continua embora mais que roto
seguro de que em seu lugar não surgirá nenhum
após vencida a esperança do homem novo
a que o horror das duas guerras mundiais
e o holocausto nazi e de Hiroxima
trouxeram a revolta a todo o povo
e a força libertadora do jugo colonial
fazendo do socialismo a meta que se aproxima
mas que afinal se desfez até perder de vista
e esvaído o sonho da revolução mundial
baralhou-se a luta por um rumo em que se insista
embora essas experiências nas lições do seu ensaio
abram ao futuro uma débil pista.

Mais que débil neste ano vinte e dois
com pouco mais do que a rotina do 1º de Maio
para enfrentar o monstro galopante
até ao terror climático e nuclear dos quais não haverá depois,
que agora já apenas o detém um curto instante,
porém qual tragédia grega mil vezes multiplicada,
da Democracia é ele o comandante
e as raras vozes que discordam timoratas
cada uma em si na vergonha de ficar calada,
quase incapazes de à rua trazerem um protesto,
agitam-se desorientadas qual baratas
se se atrevem a ter firmeza no seu gesto
e o monstro lhes aponta o dedo acusador
e contra elas levanta a imensa opinião pública alienada
a quem basta ter dum lado o maldito ditador,
capaz da actual e criminosa invasão,
e do outro o defensor da Democracia abençoada
para dela o fazer o sempre eterno campeão.

Ah! pobre Democracia quanto crimes em teu nome cometidos
quantas vezes te mataram os teus exclusivos donos
mas que nunca o teu cadáver enterraram
pois de crime em crime foram omitidos
e a ti feita zombie morta-viva te ergueram tantos tronos
quantos os milhões de mortos que causaram
nas guerras humanitárias e nas do choque e pavor
duplicados nas fomes dos seus refugiados
triplicados nos ajustes financeiros e no inferno climático
presentes em todas as horas de todos os dias com o seu horror
coração e cérebro angustiados
num corpo parado e apático
perante a tresloucada correria dos muitos mais que se aprestam a causar
enredando meio mundo no mais absurdo granel
governos democratas quanto baste
outros a fazer de conta cada um seu paladar
aceites ditaduras desde que sigam o seu tropel
bem ungidos todos para que do rumo sanguinário ninguém se afaste
de tal modo que o rejeitado ditador do actual momento
somado aos outros enjeitados deste século e do anterior
todos juntos os seus crimes aos teus não vão chegar,
assim o digo sem qualquer arrependimento
nem por ser a versejar
nem com medo da contagem.

Ah! chegará alguma vez o discernimento
e com ele toda a firmeza da coragem
de descobrir na Democracia que nos governa
aquele pecado original herdado da velha Atenas
que um poder igualitário entre poucos
para eles será Democracia apenas
que aos outros todos restará sobreviver
nas mil formas de sujeição que esses poucos inventaram
na contenção dos revoltados e no enredo das suas penas
para o intervalo das mil formas de morrer?

Ah! chegará alguma vez o discernimento
e com ele toda a firmeza da coragem
de reconhecer na Democracia que nos governa
um mal muito maior do que aqueles que ela acusa
no campeonato da roupagem mais moderna,
com o benefício da dúvida de se dizer democrata
veste ela a História de trapos e dela toda abusa
igualando à besta nazi aquele que a venceu
por ele vestir a roupagem de autocrata
e ela por democrata todo o mundo a absolveu?

Se este discernimento um dia chegar
e se então o tempo já não tiver sido ultrapassado
ele será capaz de trazer à luta unida
os pequenos focos de revolta que hoje se veem borbulhar
e o logro da falsa democracia terá finado
e os extremismos serão levados de vencida
e só aí terá chegado o tempo novo
da verdadeira Democracia
do povo para o povo.

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