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A crise da República e o papel da esquerda

Aqui jaz a Nova República. As delações da Odebrecht são uma verdadeira aula de como o Estado brasileiro foi capturado pelos interesses privados. Expõem no meio da praça as entranhas envelhecidas da nova República. Por Guilherme Boulos.
Protesto contra a reforma da Previdência, em São Paulo. Foto Carta Capital
Protesto contra a reforma da Previdência, em São Paulo. Foto Carta Capital

Aqui jaz a Nova República. As delações da Odebrecht são uma verdadeira aula de como o Estado brasileiro foi capturado pelos interesses privados. Expõem no meio da praça as entranhas envelhecidas da Nova República. O seu modo de funcionamento, baseado no financiamento empresarial das eleições, consolidou uma relação de mútua dependência, pela qual o dinheiro para a campanha era trocado por favorecimento em contratos e aprovação de legislação conveniente.

Mais antiga ainda é a cobrança de percentagens em contratos públicos. Aliás, a relação promíscua que antecede o próprio sistema político atual. O historiador Pedro Henrique Campos mostrou no livro Estranhas Catedrais como as grandes empreiteiras – incluindo a Odebrecht – cresceram ao longo da ditadura. E que a relação incestuosa dos seus negócios com o Estado remonta pelo menos a 1939, quando o cunhado de Adhemar de Barros fundou a Camargo Corrêa.

Os relatos de Emílio, Marcelo Odebrecht e de todos os diretores da empresa mostram o caráter sistémico desta corrupção nos últimos 30 anos. Matam, portanto, a falácia alimentada pela própria Lava Jato de que a corrupção era coisa do PT.

Este discurso, repetido de forma prolongada pelos média, impulsionou o golpe parlamentar e deu o tom das manifestações de rua contra a corrupção. Basta lembrar a quantidade de políticos agora denunciados que frequentaram, com sorridente hipocrisia, os protestos dominicais.

Questões fundamentais

A operação de demonização do PT para salvar o sistema caiu por terra com os novos relatos. Precisamos, é claro, de ter cuidado com aquilo que nunca preocupou os adoradores do cadafalso: a delação não é prova e a abertura de investigação não significa culpa. Não deveria ter sido quando Dilma, Lula e o PT foram submetidos a um linchamento e não deve ser agora, quando os então linchadores passaram para o banco dos réus. A ampliação dos investigados tão pouco apaga a postura seletiva e frequentemente inconstitucional com que a Lava Jato foi conduzida durante mais de dois anos.

De toda a forma, a força e o impacto das delações da Odebrecht devem trazer consequências para a situação política do país e a atuação da esquerda. Coloquemos-nos então três questões fundamentais.

1. Como ficam o governo Temer e o Congresso? Foi aberta investigação contra oito ministros, a maior parte deles por acusação de receber luvas para favorecer a Odebrecht. Moreira Franco, por exemplo, foi denunciado por ter recebido quatro milhões de reais para facilitar a vida da Odebrecht na concessão de aeroportos. A empreiteira ganhou o controle do aeroporto do Galeão, um dos maiores do país.

Temer só não foi investigado porque um presidente não pode responder por atos anteriores ao mandato, mas as acusações contra ele são muito mais fortes do que qualquer uma que tenha recaído sobre Dilma. Além do jantar de 10 milhões de reais com Marcelo Odebrecht no Jaburu, teria sido no seu escritório e com a sua presença que foi negociada uma quantia de 40 milhões de dólares – sim, 40 milhões de dólares – para garantir um contrato da Odebrecht na Petrobras.

Além disso, os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Eunicio Oliveira, são acusados pelo recebimento de luvas para aprovar medidas provisórias do interesse da empresa. Ou seja, temos o presidente, oito ministros e os chefes do legislativo em xeque.

Por mais que se deva aguardar o julgamento, a gravidade das acusações faz com que este governo não tenha autoridade moral para continuar. Está sob grave suspeita. Desde o princípio sem a legitimidade do voto popular, Temer perde agora as condições políticas para governar.

Ainda mais para aprovar medidas tão impactantes como as reformas da previdência e laborais. Nem o governo nem este Congresso têm autoridade para isso. O primeiro passo para solucionar a crise política é a saída imediata de Temer e a convocação de eleições gerais antecipadas.

2. O que vem depois da "terra arrasada"? É preciso sondar os interesses dos atores políticos envolvidos na construção das denúncias e na sua divulgação. O que querem os procuradores do Ministério Público? O que quer a Rede Globo? Quando o Jornal Nacional atacava somente Lula havia uma lógica mais compreensível.

Ao atacar Temer, Aécio e o tucanato, mostram que algo mudou. Seguramente, não se deve depositar muita fé no espírito público dos Marinho ( a família proprietária da rede Globo) em condenar a corrupção. Como disse Emílio Odebrecht, este grupo sabia de tudo há pelo menos 30 anos.

Os senhores do caos trabalham quase sempre por uma nova ordem. Das ruínas da Nova República algo surgirá, não necessariamente algo melhor. Talvez a Lava Jato tenha fornecido a oportunidade de uma transição conservadora diante da crise de legitimidade do atual regime, enquanto isso ainda seria possível sem participação popular. Uma nova operação Golbery, mas quiçá para um regime mais fechado.

Aparentemente, há duas opções de saída conservadora para a crise política. A primeira seria a "solução Waldo" – tratada em artigo anterior – pela qual um suposto outsider, com um discurso baseado na antipolítica, seria capaz de vencer eleitoralmente e recompor de uma nova forma os velhos poderes. Neste caso, João Doria (PSDB) aparece como o nome mais cotado.

A segunda alternativa seria deixar a própria "República dos Procuradores" assumir a frente do poder político. Os responsáveis pela "limpeza", aqueles que prenderam empreiteiros e políticos, dariam uma nova legitimidade ao sistema. Collor foi eleito apenas com a fama de caçador de marajás, quem dirá alguém com "obra" para mostrar. Neste caso, Sérgio Moro seria um nome possível, afinal ninguém constrói a imagem de um herói nacional para o deixar toda a vida despachar na primeira instância de Curitiba. É um joker à disposição.

Nos dois casos seriam alternativas regressivas, sem a menor condição de tocar nos grandes temas da crise que o Brasil atravessa.

3. Qual o papel da esquerda? A esquerda precisa de ser capaz de apresentar uma saída para a crise, que não seja a posição de fiadora de uma República que perdeu a credibilidade social. A defesa das garantias constitucionais contra os arbítrios do sistema judicial e o reacionarismo da antipolítica não pode confundir-se com um pacto de salvação do regime.

Precisamos de enfrentar a realidade para perceber a Nova República faliu e apresentarmos à sociedade saídas ousadas, que possam redefinir o modo de fazer política no Estado brasileiro. A esquerda que se confunde com uma ordem declinante está a declinar em conjunto por todo o mundo.

Quando, por outro lado, tem coragem de ser contra-hegemónica obtém resultados surpreendentes. Basta ver o recente crescimento de Mélenchon na França, o fenómeno Podemos na Espanha, ou ainda a empolgante pré-campanha de Bernie Sanders nos Estados Unidos.

A nossa alternativa deve ser a de uma transformação profunda do sistema político, com um programa de combate aos privilégios – incluindo-se aí os do sistema judicial e dos média – e de abertura à ampla participação popular.

"Se o Estado não nos representa, vamos defender o aumento da participação popular". Foto do blogue Anézio Ribeiro

O Estado e os interesses privados

Se o Estado está capturado pelos interesses privados, apresentemos medidas como o financiamento público das campanhas, o fim da "porta giratória" em que agentes de corporações privadas assumem cargos públicos, o combate a privilégios e ganhos excessivos de políticos e juízes, entre outras tantas.

Se o Estado não nos representa, vamos defender o aumento da participação popular com plebiscitos para grandes temas nacionais, referendo para qualquer alteração constitucional, revogabilidade de mandatos, controle social e elegibilidade para o sistema judicial. A esquerda precisa de se comprometer com uma alternativa de radicalização democrática como única forma legítima de superar a grave crise atual.

A dificuldade de alguns setores em fazê-lo parece ser a avaliação de que o confronto com sistema político poderia engrossar o caldo de linchamento a Lula. É preciso diferenciar bem as coisas. Os ataques brutais a que a Lava Jato e os média submeteram Lula nos últimos dois anos, sem apresentar provas consistentes, não podem ser aceites pela esquerda.

Se pairam suspeitas, Lula deve ser investigado como qualquer outro, mas sem presunção de culpa e resguardando o seu direito de ampla defesa. Sabemos bem que não é isso que tem ocorrido e a esquerda, concordando ou não com as posições de Lula, deve ser enfática ao condenar qualquer linchamento.

As alternativas de esquerda

Mas isso não pode significar uma atitude defensiva política, que interdita o debate de qualquer saída para a crise da Nova República. Senão, o que nos resta? Adotar a mesma seletividade, só que com sinal invertido? Ou então aderir ao grande acordo nacional de Romero Jucá? Não, a esquerda brasileira precisa ir além disso e oferecer alternativas políticas, sem udenismo (1),  sem desrespeito às garantias constitucionais, mas com a ousadia necessária para disputar a insatisfação social com o regime.

Ou assumimos o nosso papel de propor ao povo uma saída, apoiada numa ampla mobilização social, ou assistiremos ao sentimento de descrença geral com a política – amplificado ainda mais com as novas delações – cair no colo da velha direita de cara nova. É hora de ir para as ruas sem vacilar para derrubar as reformas, exigir eleições gerais e apresentar um programa de democratização radical do sistema político.

 

(1)-Udenismo: referência à União Democrática Nacional (UDN), partido político brasileiro fundado em 7 de abril de 1945, frontalmente opositor de Getúlio Vargas e de orientação conservadora, que conseguiu reunir setores diversos da oligarquia e até de esquerda em torno de um programa pragmático e cheio de ambiguidades. Daí nasceu o udenismo, ou prática udenista.

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Artigo publicado no site Carta Capital em 17 de abril de 2017

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