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As crianças refugiadas da greve dos mineiros de Aljustrel em 1922

Há cem anos, os mineiros de Aljustrel iniciaram uma greve prolongada contra a exploração e as más condições de trabalho. A fome obrigou à retirada de mais de 200 crianças, embarcadas em comboios pela CGT para serem acolhidas por famílias operárias de Lisboa, Beja e Barreiro. Por Paulo Eduardo Guimarães.

Há cem anos, os mineiros de Aljustrel iniciaram uma greve prolongada contra a exploração e as más condições de trabalho. A fome obrigou à retirada de mais de duzentas crianças, embarcadas em comboios pela CGT para serem acolhidas por famílias operárias de Lisboa, Beja e Barreiro. O texto que se segue é um trecho do livro Indústria e Conflito no Meio Rural - Os mineiros alentejanos (1858-1938), de Paulo Eduardo Guimarães, historiador da Universidade de Évora.


Foto publicada originalmente no Almanaque de A Batalha para 1926 Legenda: “28 de Outubro de 1922 – Chegam a Lisboa os primeiros filhos de grevistas de Aljustrel que ficam entregues ao carinho e à solidariedade do operariado de Lisboa que lhes fez comovente recepção. Ao passarem por Beja o povo operário toma a seu cuidado vinte e cinco das crianças que vinham para Lisboa”. Foto incluída na rubrica “Revolução e contra-revolução (Resenha dos factos mais importantes ocorridos de Fevereiro de 1919 a Junho de 1925)”. Foto recolhida no blogue do Coletivo Libertário de Évora.

A introdução de novos métodos de exploração que penalizavam a saúde dos mineiros agrava o mal-estar. Surgem queixas devido à deficiente ventilação provocada pela redução do número de poços, devido à falta de segurança e por causa do imenso pó que as máquinas barneiras produziam. O agravamento das condições de trabalho no subsolo é acompanhado pela dureza das novas imposições: a impossibilidade de sair do local de trabalho, quando se trabalhava sob temperaturas acima dos 40 graus.

Entretanto, a sociedade belga SABMA decidira apostar na mina do Lousal e no porto de Sines. Nesta estratégia de expansão, que envolvia avultados investimentos, a companhia contou com as variações cambiais, mas explorou sobretudo a degradação dos salários dos mineiros. Ao mesmo tempo, o patronato procurou prolongar a jornada de trabalho.

A greve mineira do Inverno de 1922 insere-se no quadro da difícil recuperação económica do pós-guerra, um período de greves «de resistência», iniciado com o movimento dos ferroviários do Sul e Sueste e o dos operários da CUF, no Barreiro, em 1919.

A greve foi preparada com antecedência, na fase de maior pujança da CGT. Houve visitas de militantes confederais à vila, nomeadamente, a de Manuel Joaquim de Sousa, em finais de Julho e em Agosto. A 3 de Outubro, os mineiros declararam-se em greve por não verem satisfeitos os pedidos de aumentos de salário. Uma semana depois, recebiam a oferta de ajuda dos comerciantes. A moral entre os grevistas era excelente. Mas depressa surgiram sinais de hostilidade das autoridades. O governador civil recusou-se a receber uma comissão de grevistas. Enquanto isso, o diretor afirmava esperar ainda uma resposta da Bélgica. O tempo jogava a seu favor. No fundo, tentava quebrar a resistência pela fome. Ao fim de quinze dias, havia já quem se apresentasse ao serviço durante a noite, para não ser visto pelos companheiros.

Então, a 15 de Outubro, a associação dos caixeiros de Lisboa inicia um vasto movimento de solidariedade para com os grevistas, logo coordenado pela CGT. Assim, no dia 17, a companhia lança a proposta de aumentar os salários em um escudo, que foi rejeitada pelos trabalhadores na assembleia reunida para o efeito na associação de classe.

Com a visita de Jerónimo de Sousa, delegado da Confederação Geral do Trabalho, a greve recebia o apoio oficial do órgão superior do operariado português, surgindo agora na primeira página d'A Batalha. O jornal apelava à defesa dos filhos dos mineiros de Aljustrel «para que os pais não se rendam». As crianças eram descritas como tendo um «aspeto esquálido e nu», sinal do «martírio da fome que atravessa os lares de tão honrados proletários, aspeto esse só comparável ao dos famintos russos, retratados nas gravuras dos jornais de grande informação». Depressa surgem manifestações de solidariedade a título individual ou em nome de sindicatos, um pouco por todo o país.


Esta fotografia mostra diversas Associações de Classe e Sindicatos de vários pontos do País, com as suas bandeiras, que em 1923 vieram apoiar e solidarizar-se com a greve dos mineiros de Aljustrel travada alguns meses antes. Muitas destas associações já tinham demonstrado a sua solidariedade quando os filhos dos mineiros – eventualmente alguns ou a totalidade das crianças que estão na foto –  foram recebidos em Beja, Lisboa ou Barreiro por famílias operárias, enquanto a greve decorria. Foto recolhida no blogue do Coletivo Libertário de Évora

Nos fins de Outubro, chegam crianças a Beja, a Lisboa e ao Porto. Nas minas havia já notícias de galerias inundadas que alimentavam a intransigência dos operários. Na primeira página d'A Batalha, a greve é dada como invencível, enquanto chegam à vila mais 160 praças da GNR. De todo o país chega algum dinheiro, em primeiro lugar das minas do Lousal e de São Domingos. Tal como acontecera na greve de 1912, o dinheiro era aplicado na cozinha comunista que funcionava no sindicato. Os filhos dos mineiros de Aljustrel tornaram-se então motivo de atração na festa realizada para angariar fundos para A Batalha.

Um mês e meio depois, a 19 de Novembro, mantinha-se o impasse, apesar de a empresa ameaçar com o lock-out. «É a greve do silêncio», diz A Batalha. Mas os primeiros sinais de desespero faziam-se já sentir com o rebentamento de petardos nas minas e junto da casa do diretor. Embora aqueles atos fossem condenados pelo sindicato, as autoridades mandam-no encerrar e fazem prisões. De imediato, os trabalhadores e as mulheres que andavam na apanha da azeitona abandonam os campos para reclamar a libertação dos seus companheiros. Estes são libertados perante uma multidão compacta que não dispersou apesar das intimidações da GNR.

Com a associação encerrada, a assembleia funcionava defronte do edifício, construído pelos próprios mineiros. Perante o impasse, o administrador do concelho e o tenente da guarda abandonam os seus cargos na esperança de que a autoridade fosse entregue a um militar.

A 1 de Dezembro, uma comissão de trabalhadores reúne-se com a empresa, chegando a acordo no dia seguinte: a SABMA comprometia-se a proceder a aumentos salariais próximos dos que inicialmente eram exigidos e a aceitar todo o pessoal que anteriormente trabalhava na empresa, sem exercer represálias. Segundo o administrador do concelho que serviu de mediador, tratou-se de uma solução de compromisso: «não houve vencedores nem vencidos».

Porém, reiniciados os trabalhos, Charles Leroy recusou-se a aplicar o acordo celebrado. Ao mesmo tempo, corriam rumores na vila de que o diretor enviava para Antuérpia folhas de pagamento fraudulentas, ficando ele com a diferença entre o que realmente pagava e o que constava nos livros da empresa. Os operários decidem então reiniciar a greve.


“Receberam-me com muito carinho e vestiram-me dos pés à cabeça, e durante os seis meses que permaneci na sua companhia meteram-me numa oficina de serralheiro para aprender o ofício e à noite ia à escola. A senhora Ilda e o seu marido Pelágio, carregador de mar e terra, queriam que eu ficasse com eles na Cova da Piedade, mas os meus pais, depois da greve, mandaram-me ir para Aljustrel”. Depoimento de Porfírio Silva, que tinha 14 anos durante a greve, dado a Lígia Oliveira (A Batalha, outubro de 1985)

Os estragos existentes na contramina, provocados pela falta de manutenção, levaram o governo a enviar praças da marinha que, com o auxílio dos capatazes, tentaram minimizar os prejuízos. A chegada de mais forças da GNR conduziu a um controlo mais apertado da ação das comissões de trabalhadores. Entretanto, o correspondente d'A Batalha foi barbaramente espancando no posto da GNR, o que levou ao protesto imediato dos trabalhadores junto da administração.

O ano de 1923 abria assim num impasse, com a GNR em desfiles vistosos pela vila. A 6 de Janeiro, Charles Leroy publicava a nova tabela salarial, de acordo com as instruções de Antuérpia. Os mineiros mantiveram-se intransigentes. Então, realizou-se no sindicato um comício que contou com a presença do secretário-geral da CGT, Santos Arranha, vindo de Lisboa «para esclarecer o operariado». Assim, os operários decidiram aceitar esta tabela como base de negociação, mas o diretor das minas recusou-se a fazê-lo. Perante esta situação, o administrador substituto do concelho demitiu-se e o presidente da câmara, irmão do conhecido político unionista [republicando de direita] Brito Camacho, recusou-se a aceitar o cargo, forçando a entrega da administração à GNR.


Chegada a Lisboa dos filhos dos operários em greve em Aljustrel, arquivo do jornal O Século. A data na folha de arquivo (24/IX/1922) não pode ser a correcta porque o próprio jornal, datado de 29/10/1922, refere que o grupo de crianças partiu “Antehontem de Aljustrel para Beja” (dia 27), “chegando hontem, no comboio da manhã, (…) a Lisboa”, (dia 28). Foto recolhida no blogue do Coletivo Libertário de Évora

Entretanto, Charles Leroy, apoiado no presidente do sindicato agrícola local, outro unionista, criou a Associação Comercial e Industrial de Aljustrel que teve por missão pressionar o governo para abandonar o terreno da neutralidade. Ao mesmo tempo, tentava convencer os lavradores e comerciantes a não dar trabalho, nem crédito, nem pão aos grevistas. A 18 de Janeiro, ao fim de três meses e meio de greve, os trabalhadores mineiros, cansados e esgotados, capitulavam.

O saldo foi uma derrota para a classe, apesar dos salários terem sido elevados. As expectativas criadas pelo movimento eram demasiado grandes. Os mineiros tinham contado com a orientação directa dos delegados da CGT e com o apoio de quase todos os sindicatos do país. Muitas crianças tinham sido enviadas para fora, «fez-se tudo o que se podia ter feito». Os mineiros sentiram-se impotentes perante a força do patronato e do Estado. O número daqueles que abandonavam o sindicato era cada vez maior, apesar dos apelos da CGT, enquanto outros seguiam uma linha mais radical.


Mineiros de fundo nos anos 30. Foto do livro Indústria e Conflito no Meio Rural - Os mineiros alentejanos (1858-1938), de Paulo Eduardo Guimarães.

A mesma estratégia foi seguida depois pelos mineiros de São Pedro da Cova com idênticos resultados. A 25 de Agosto de 1923, eles entravam em greve, exigindo aumentos salariais, melhores habitações e condições de trabalho. A greve durou cerca de dois meses e meio e a estratégia de solidariedade coordenada por A Batalha funcionaria uma vez mais. A 17 de Setembro, os operários do Porto recebiam 280 crianças, filhas de grevistas, e era criada a sopa comunista. A resposta das autoridades foi a mesma: prisões de sindicalistas, espancamentos, atitudes intimidatórias, encerramento da associação de classe e, finalmente, a GNR decide ajudar o patronato a acabar com a sopa comunista. A greve terminou a 5 de Outubro, com mais uma pesada derrota para os mineiros e para o sindicalismo local.

Na mina de São Domingos, a ameaça de greve em 1923 levou a Mason & Barry a conceder aumentos salariais enquanto o administrador Rich procurava impedir o funcionamento do sindicato operário. Sob este clima de tensão registou-se um atentado contra o «Palácio» e foi preso um elemento da Legião Vermelha que viera de Lisboa. Os operários imputaram o atentado à maquiavélica estratégia do próprio diretor. Foram feitas algumas prisões de mineiros, libertados 18 dias depois. A readmissão na empresa só teria lugar muito mais tarde. 

Apesar da derrota, a tensão em Aljustrel mantinha-se elevada ao rubro. Em Março de 1923, quando o administrador procedia ao visto nos livretes de distribuição de farinha foi agredido por vários indivíduos. No mês seguinte, a notícia do fim do «pão político» levou os operários a abandonarem o trabalho, tendo-se registado desordens e assaltos aos celeiros e à fábrica de moagens da mina. Em Dezembro realizou-se mais um comício no largo da associação sobre o problema do abastecimento dos cereais. Estes acontecimentos levaram a empresa a criar o seu próprio «pão político», fornecendo aos seus operários farinha abaixo dos preços correntes e aliviando a pressão sobre os níveis salariais. A Mason & Barry teria idêntico comportamento.

A partir de meados de 1923 notou-se um endurecimento da atitude das autoridades face à atuação dos operários. O comício comemorativo do 1.° de Maio desse ano não foi autorizado e as ações culturais do grupo anarquista Os Vencedores foram sistematicamente proibidas. O espaço de manobra dos sindicalistas foi progressivamente reduzido. As forças da ordem passaram a atuar preventivamente em colaboração com o patronato. O diretor das minas fornecia regularmente às autoridades uma relação de trabalhadores, com anotações sobre o seu comportamento individual. As ações intimidatórias e as prisões arbitrárias de dirigentes sindicais multiplicaram-se. Tratava-se agora e pela primeira vez, de eliminar de forma sistemática todo e qualquer indício de «bolchevismo».

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