Contra o imperialismo multipolar, uma resposta internacionalista

14 de abril 2024 - 21:32

A “multipolaridade” funciona como leitmotiv das novas potências autoritárias, servindo para disfarçar as suas práticas capitalistas e imperialistas. Cabe à esquerda internacionalista colocar-se do lado das vítimas de todos os imperialismos. Com E.J. Ayoub, Kavita Krishnan, Promise Li e Romeo Kokriatski.

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Pormenor da capa do podcast que deu origem a este texto.

A "multipolaridade" tornou-se a bússola de uma parte da esquerda, a expressão de uma democratização anti-imperialista das relações internacionais. Mas também funciona como leitmotiv das novas potências autoritárias, servindo para disfarçar as suas próprias práticas capitalistas e imperialistas como alternativa à hegemonia ocidental. Cabe à esquerda internacionalista colocar-se do lado das vítimas de todos os imperialismos.

A conversa entre E.J. Ayoub, Kavita Krishnan, Promise Li e Romeo Kokriatski trata das razões pelas quais a ideia de multipolaridade deve ser compreendida e criticada e porque é que a esquerda não pode abandonar o anti-autoritarismo e o internacionalismo.

Joey Ayoub é um investigador libanês-palestiniano da Universidade de Zurique, chefe de redação da Shado Mag e apresentador do podcast The Fire These Times. Romeo Kokriatski é editor-chefe da New Voice of Ukraine e apresentador do podcast Ukraine Without Hype. Kavita Krishnan é uma ativista feminista marxista, ex-membro do Partido Comunista da Índia, líder da All India Progressive Women's Association. Promise Li é um ativista socialista anti-imperialista de Hong Kong empenhado em lutas de solidariedade internacional e faz parte do Coletivo da Diáspora de Esquerda de Lausan.


Joey Ayoub (JA): O que é a “multipolaridade” e porque é que este conceito continua a ser defendido por parte da esquerda? Porque o questionamos?

Romeo Kokriatski (RK): A multipolaridade é uma evolução do mundo bipolar em que os Estados Unidos e a União Soviética eram inicialmente as duas potências mundiais hegemónicas. Após a queda da União Soviética, os Estados Unidos dominaram um mundo "unipolar". Mas devido à marcha inexorável da história e a alguns erros cometidos pelo governo americano, os Estados Unidos perderam parte do seu estatuto, especialmente depois da desastrosa e imoral "guerra contra o terrorismo". Como resultado, outras potências, como a China e a Rússia, ganharam alguma da importância que os EUA costumavam ter unilateralmente. É a isto que chamamos "multipolaridade": um mundo definido por vários núcleos imperiais e não por um único.

"Núcleos imperiais", porque estamos sempre a falar de países que aspiram a tornar-se impérios ou que já são impérios, exercendo influência sobre os seus vizinhos, as suas proximidades e todo o planeta. Quando este domínio hegemónico está distribuído por várias entidades diferentes, torna-se ainda mais difícil abordar o problema, uma vez que estes diferentes polos cooptam a resistência. É a isto que assistimos, especialmente entre as pessoas de esquerda que defendem a multipolaridade: núcleos imperiais separados cooptam a resistência ao imperialismo norte-americano e promovem um outro imperialismo, diferente deste.

Promise Li (PL): Muitos pensam que o imperialismo se limita principalmente aos EUA e ao Ocidente. Estados-nação como os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – são considerados "não-alinhados" e potências políticas alternativas ao Ocidente. Isto é totalmente falso. Se estes Estados são vistos por alguns como vítimas da ordem mundial do FMI, as suas elites dirigentes, especialmente no Sul, trabalham de mãos dadas com a classe dirigente capitalista ocidental para explorar a classe trabalhadora e outras populações marginalizadas do Sul. A nossa tarefa, enquanto progressistas, é identificar estas interligações entre os Estados e as classes dominantes capitalistas, para revelar como isso conduz a novas formas de exploração dos trabalhadores. Confiar na multipolaridade tal como ela existe atualmente é, na realidade, confiar numa nova reconfiguração do capitalismo global.

Kavita Krishnan (KK): Desde há algum tempo, Vladimir Putin, Xi Jinping e Narendra Modi e outras forças autoritárias e de extrema-direita vêm declarando que querem um mundo multipolar. Afirmam que as normas universais de democracia e direitos humanos são impostos pelo Ocidente, através do imperialismo unipolar. A luta pela soberania e pelo anti-imperialismo implica, portanto, a rejeição desses padrões universais. Preocupa-me o facto de a esquerda ignorar as implicações perigosas desta história.

RK.: Estes Estados querem fazer o que lhes apetece e não toleram críticas. Esta postura baseia-se na rejeição da influência ocidental ou dos valores liberais e capitalistas dos Estados Unidos. Isto destrói a universalidade dos valores que defendemos e em torno dos quais tentamos construir um mundo melhor. As pessoas afirmam que os direitos humanos não são de esquerda ou que se trata de um conceito ocidental. Isso é ridículo. Os direitos humanos aplicam-se aos seres humanos e não a uma determinada nacionalidade ou grupo étnico. Mas, devido a esta confusão e à sua crítica por parte de conhecidos fascistas como Aleksandr Dugin na Rússia, tornou-se uma das tendências mais assustadoras da esquerda nos últimos dez anos. O discurso da multipolaridade impede-nos de compreender como lutar contra as forças capitalistas autoritárias.

JA: Muitas pessoas que se dizem progressistas defendem "em casa" – nos Estados Unidos, na Índia, na Europa ou em qualquer outro lugar – os direitos reprodutivos, os direitos LGBTQ ou a abertura das fronteiras, por exemplo, mas assim que nos encontramos em partes do mundo filtradas por um campismo binário, essas mesmas pessoas adotam posições conservadoras, ou mesmo de extrema-direita. Isto pode parecer muito contraditório, mas porque é que acha que é assim?

PL: Nos Estados Unidos, há um sentimento de culpa que se deve ao facto de se estar num núcleo imperial, de se ser branco e americano. Por isso, as análises internacionais acabam por ser eclipsadas por esta política de culpa. As vozes que emanam de outros países não são ouvidas e não há uma avaliação clara da economia política ou da forma como o poder funciona noutros locais. Há uma vontade de enfatizar que as populações do Sul podem governar-se a si próprias mas, de alguma forma, isso conduz a uma lealdade acrítica para com os governos autoritários e à identificação destes com as suas populações.

Outro discurso que se tem ouvido nos últimos anos é o de dizer que não podemos chamar aos Estados do Sul autoritários, mesmo quando o são, porque se trata de uma palavra de código racista. As pessoas de esquerda, especialmente no Ocidente, recusam-se a ver e a compreender as minorias críticas, especialmente os seus homólogos de esquerda nestes países, que denunciam estes regimes e os qualificam como o que são. Colocam o que consideram ser racismo e uma imposição do Ocidente acima das vozes da esquerda no terreno.

É certo que os Estados Unidos instrumentalizam o discurso do autoritarismo, "orientalizando" Estados como a China e outros países do Sul e idealizando os Estados Unidos como uma democracia liberal superior aos valores desses autoritarismos grosseiros. Isto é obviamente falso. Mas não se trata de pegar na contrapartida desta visão binária e colocar-se no lado oposto do tabuleiro de xadrez. É importante examinar a ascensão dos autoritarismos e abordá-los em toda a sua diversidade, especialmente tal como se manifestaram nos últimos dois anos.

Muitos no Ocidente não querem compreender que é quase impossível criar organizações independentes, lutar publicamente no seio da sociedade civil em países como a China, a Rússia, o Egipto, etc. A arena de lutas não é a mesma que nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Não se trata de dizer que alguns países ocidentais são "melhores", mas de reconhecer que o atual fenómeno do autoritarismo é diverso e desigual. Produz diferentes movimentos e regimes de extrema-direita que exigem diferentes tipos de movimentos para os combater. Este deveria ser o ponto de partida da conversa, mas grande parte da esquerda, especialmente no Ocidente, não está aí.

JA: Nos países do SWANA (Sudoeste Asiático e Norte de África) ou no mundo árabe, as tendências são semelhantes, mas partem de uma posição diferente. As conclusões são por vezes idênticas, embora sejam frequentemente orientadas para a impotência, o desespero, o cinismo e até a apatia. Assim, não apoiam totalmente a Rússia, mas também dizem: "Não temos nada a fazer nesta luta". Este tipo de argumentos é o resultado de uma posição específica, porque a maior parte do mundo árabe não é democrático. Na tua experiência, Kavita, quais são as semelhanças e as diferenças entre as diferentes esquerdas, entre a esquerda indiana e a esquerda americana, entre a esquerda de Hong Kong e a esquerda chinesa, e talvez entre a esquerda ucraniana e a esquerda russa?

KK:. Promise explicou como o sentimento de culpa faz com que, nos Estados Unidos, se chega a considerar que não devemos ter o mesmo discurso que o governo. Há outra forma de encarar o problema, nomeadamente como uma esquerda global. Muitos falam do facto de o Ocidente centrar tudo em si, de a esquerda americana fazer da América a fonte do mal. É claro que isto vem da culpa, da culpa, da culpa. É claro que isso tem origem na culpa, mas não explica por que razão a situação é por vezes pior no Sul. Na Índia, a esquerda não é um segmento minúsculo, tem uma audiência ampla em comparação com a maioria dos países ocidentais, daí a gravidade dos danos causados por esta atitude. Quando as poucas vozes democráticas que se ouvem no país legitimam a ideia dos "males menores" de Putin e Xi e dizem que os devemos apoiar criticamente, é a melhor parte da esquerda que descrevo! Há também a outra parte que diz abertamente que a ascensão da China e da Rússia é excelente e que estes países devem ser encorajados.

A esquerda parece perder os seus pontos de referência. No entanto, a ideia deveria ser simples: apoiar as lutas contra as classes dominantes e os opressores em todo o lado e em qualquer lugar. Porque é que isto é difícil? Porquê medir o grau de solidariedade a oferecer e reduzi-lo em alguns casos? Porquê investir, mesmo em pequena escala, na sobrevivência de regimes opressivos ou de imperialismos invasivos em qualquer lugar? É quase como a fórmula de George Bush: "Connosco ou contra nós". Os atores da má-fé da esquerda indiana também qualificam de "agentes da CIA" a quem se opõe a esta lógica.

E se criticas o autoritarismo na China, onde não há lugar para as lutas ou para os movimentos de cidadãos, essas pessoas pensam que, no fundo, és a favor da democracia liberal. E se és a favor da democracia liberal, então não podes ser de esquerda. Não és socialista. Dizer isto é desviar-se dos princípios da esquerda. É uma atitude reacionária considerar que existem "civilizações" isoladas e fundamentalmente diferentes. É uma ideia fascista. E retomá-la e apresentá-la como uma espécie de ideologia progressista é obsceno.

Em todos os nossos países lutamos para obter "direitos", chamados assim pelas democracias liberais. Todos estes direitos são obtidos através de lutas sociais, especialmente na Índia. Não foram concedidos por nenhum regime liberal. As liberdades civis são algo por que a esquerda tem lutado. A ideia de uma democracia socialista é muito simples: tudo aquilo por que se luta tem de ser melhor, mais democrático. Não é aceitável destruir as conquistas e depois construir o socialismo a partir do zero.

E é aqui que reside o problema: a ideia de que, independentemente dos direitos democráticos adquiridos, independentemente das instituições existentes, a partir do momento em que uma revolução socialista acontece algures (e estamos muito longe disso neste momento), todos os direitos democráticos desaparecem, não contam. Porque ter direitos seria "burguês" e por aí adiante.... Por exemplo, o debate de que o feminismo é burguês prevalece há muito tempo na Índia. E prevalece sempre na esquerda, onde se afirma que somos marxistas e isso é suficiente.

RK:. Um dos exemplos mais marcantes deste estranho estado de espírito é o apoio a regimes autoritários por parte de pessoas LGBTQ, trans ou homossexuais: "A China tem lidado melhor do que os Estados Unidos com a Covid, a falta de habitação, etc. Isto é absurdo porque estas pessoas não têm direitos na maioria destes países que defendem. Se forem para lá, é muito provável que sejam presas se atuarem publicamente como fazem no Ocidente.

JA: O mesmo problema coloca-se em todo o mundo de maioria árabe. As feministas palestinianas enfrentam este problema. Dizem que se ocuparão dos direitos das mulheres depois de se libertarem da ocupação israelita. O mesmo se passa com os direitos dos homossexuais. Estes argumentos acabaram sempre por servir a classe dominante, o Estado, o opressor. No Twitter, um jornalista americano afirmou que a Coreia do Norte é um dos poucos países do mundo que é realmente favorável às pessoas trans. No Qatar, também me desconcertou, durante o Campeonato do Mundo, escutar que não podíamos exigir que o país anfitrião respeitasse os direitos dos trabalhadores migrantes ou LGBTQ, etc. Este tipo de discurso está de acordo com os discursos homofóbicos, transfóbicos e racistas dos apoiantes do regime do Qatar.

RK: Um porta-voz do Qatar, ao falar sobre as críticas ao seu governo em matéria de direitos humanos, disse literalmente que o país não pode ser julgado pelas normas ocidentais, uma vez que pertence a uma civilização diferente. Esta afirmação está nos antípodas dos princípios da esquerda.

JA: No Egito, o próprio Sissi fez declarações desse tipo, e essas declarações prejudicaram a campanha de apoio aos presos políticos egípcios. Este argumento tornou-se quase hegemónico. O universalismo dos direitos humanos de "antes", com todos os seus defeitos, retrocedeu. Não posso deixar de pensar que esta é também uma forma de o neoliberalismo – o pensamento neoliberal, a atomização – ter sido interiorizado e reificado nos "nossos" espaços.

PL: Gostaria de voltar a esta relação entre a esquerda e outros movimentos progressistas baseados em identidades marginalizadas: movimentos LGBTQ, feministas, estudantis, etc. E também sobre a noção de democracia socialista. Não a social-democracia mas a democracia socialista revolucionária. O que é que significa imaginar o socialismo como um sistema político? Não se trata de um sistema de partido único ou de uma vanguarda iluminada que impõe os seus ideais aos outros, mas sim de uma organização socialista que respeita a autonomia das diferentes lutas marginalizadas. Por isso, como sugeriu Kavita, o nosso objetivo não deveria ser abandonar alguns avanços importantes da democracia burguesa, mas sim ampliá-los e maximizá-los. Na realidade, a democracia burguesa não garante essas liberdades. Precisamos da democracia socialista para as assegurar.

Quanto à multipolaridade, é interessante estabelecer um contraste com o facto de os seus seguidores de esquerda nos acusarem de sermos liberais burgueses, quando, na realidade, o seu próprio posicionamento aposta no capitalismo. Vejamos as coisas na cara: a multipolaridade é apenas capitalismo. É a concorrência capitalista entre diferentes Estados. Para eles, estes capitalismos nacionais são o "lado bom" da democracia burguesa e, por isso, devemos defendê-los. Mas isso é um passo atrás. É defender os vestígios do feudalismo e do fascismo, da perversidade que surge sobretudo quando se integra no capitalismo tardio.

O mais lamentável é a incapacidade da esquerda ocidental para ver e reconhecer a autonomia das lutas marginalizadas. Para ela, a ação dos povos do Sul só se encarna, de facto, na forma de Estados-nação com uma governação capitalista. Quando, na realidade, há todo o tipo de lutas diferentes que ela deveria conhecer melhor. Os movimentos estudantis e feministas, por exemplo, põem em causa o poder destes Estados autoritários. Porque é que esta esquerda ocidental os ignora e reserva a sua atenção apenas para as classes dirigentes destes Estados-nação que deveriam, de facto, ser o alvo das nossas lutas e contra as quais os movimentos se batem? Por detrás da questão da multipolaridade, estes elementos não são abordados, nem as lutas no terreno. Se apoiamos as vítimas do imperialismo, temos de apoiar as vítimas de todos os imperialismos. A Ucrânia foi durante muito tempo uma vítima colonial do imperialismo da Grande Rússia e continua a sê-lo atualmente.

KK: Pensar que não podemos impor as mesmas normas aos países do Sul ou a outras nações, onde é que isso deixa o antirracismo? Perguntem aos ativistas e militantes que lutam nos países do Sul. Na verdade, é uma demonstração de racismo não nos levar a sério, nós, os povos desses países que querem a democracia, que lutam pelos direitos e contra o autoritarismo. O exemplo que se segue tem-me incomodado muito nos últimos anos. Um antigo embaixador alemão na Índia esteve em Deli e decidiu visitar a principal organização fascista do país, o RSS, em Napur. As letras SS não são uma coincidência. Trata-se de uma organização criada na década de 1920, diretamente inspirada no fascismo europeu, que acredita que devemos fazer aos muçulmanos na Índia o que a Alemanha nazi fez aos judeus. O diplomata alemão foi fotografado a prostrar-se e a oferecer flores a uma estátua de um dos fundadores. Escandaloso.

Entrevistado, disse que o RSS era “parte del mosaico indiano” e que tinha ido aí para compreender. O que é que isto significa? Vais dizer que o KKK faz parte do mosaico americano? Irias visitar uma organização neonazi na Alemanha, oferecer-lhes flores e dizer que faz parte do mosaico alemão? Estás dispostos a dizer isto na Índia porque consideras a Índia diferente, como um espaço cultural ou civilizacional para além da política. Isto é puro racismo, não é anti-racismo.

A esquerda acaba por pensar como o embaixador alemão. Chega ao ponto de considerar os Estados em vez das pessoas. Quase diz que o Estado é igual ao povo e não distingue entre o Estado e aquilo por que os seus cidadãos lutam. É na Ucrânia que isso é mais evidente. À esquerda, se falas da Ucrânia, dirão que Zelensky segue políticas neoliberais, etc. É certo que o que Zelensky, o líder eleito, está a fazer em matéria económica é o que a maioria dos governos faz. Há críticas a este facto. Os trabalhadores ucranianos enfrentam certamente uma legislação social injusta, mas são eles que estão a lutar no exército ucraniano contra a invasão. Se o país sobreviver, haverá espaço para outras lutas. Cabe ao povo ucraniano decidir quais as lutas que prefere e quando.

RK:. É certo que é insultar a experiência da esquerda ucraniana dizer que "concordamos" com o alinhamento do nosso país com o modelo liberal-democrático e burguês da União Europeia, que todos querem a mesma coisa. Isso não é verdade. Estamos na Ucrânia dos que lutam. Especialmente no que se refere à política económica de Zelensky. A única razão pela qual não vemos mais resistência é porque estamos em guerra. Os meus camaradas estão a lutar na frente, em Bakhmut, em Soledar… e se o fazem em vez de protestarem contra a legislação laboral, é porque, se o país não existisse, todos estes argumentos não serviriam para nada. A Rússia quer matar-nos. Os mortos não podem defender os seus direitos, como bem sabem os regimes autoritários. Substituir as pessoas pelo Estado-nação é simplista e incompreensível. A maior parte do progresso que a esquerda conseguiu foi o resultado da resistência não-estatal às políticas oficiais. Esquecer esta ideia é considerar sectores inteiros da população como indignos dos direitos dos quais beneficiamos.

JA: Quando falamos da fetichização do Estado, isso divide o mundo em "esferas de influência". Alguns representantes da esquerda britânica, por exemplo, disseram literalmente que, no "conflito" EUA-Rússia na Ucrânia, devíamos ser sensíveis à "esfera de influência" da Rússia. Trata-se de uma visão do mundo muito conservadora, até mesmo isolacionista. De realpolitik. Democracia para mim e fascismo para si. É estranho, mas é uma tendência comum que remonta a algumas décadas. Será uma herança da Guerra Fria? Será apenas uma reificação, uma reciclagem desta visão binária? Ou será outra coisa? Permitam-me que coloque a questão da seguinte forma: existe uma análise de classe neste tipo de posicionamento?

PL: Gostaria de citar aqui um ou outro argumento "de boa-fé", apresentado pelos defensores da multipolaridade: não, não é que o socialismo se tenha de alguma forma cristalizado nestes Estados-nação; é que ter mais Estados-nação aliados entre si, e não apenas os EUA como única potência dominante, abre mais condições para levar a cabo uma luta revolucionária. Todos estes diferentes imperialistas em competição terão menos poder, deixando mais espaço para os movimentos progressistas.

Outro argumento que se ouve é justificar a lógica lembrando que a Segunda Guerra Mundial, por causa de todos os imperialistas que nela lutaram, abriu caminho para a descolonização e o surgimento de movimentos anti-coloniais. Mas será que já esqueceram a Segunda Guerra Mundial e as suas consequências? É ridículo apelar a um regresso a essas condições de guerra mundial para desbloquear o potencial da descolonização. Enquanto ativistas de esquerda, apoiamos a descolonização e os movimentos anticoloniais: não apelamos a um conflito multipolar para desbloquear estas lutas!

Quando falamos de multipolaridade, não podemos simplesmente concentrar-nos no Brasil de Lula e ignorar os movimentos de protesto chineses, iranianos, russos, ucranianos, etc. Isso seria apenas uma análise de má fé. Como socialistas e marxistas, precisamos de um balanço honesto. Não podemos simplesmente apostar nas vitórias e ignorar outras situações. No entanto, é assim que eles fazem: dizem que a multipolaridade fortalece os movimentos em todo o mundo, de uma forma ou de outra, mas na prática não é verdade.

KK: É estranho que a esquerda apresente as suas posições internacionais como o resultado de uma escolha entre multipolaridade ou unipolaridade. Sempre que os EUA agem como imperialistas, apoiamos os atores que lutam contra eles. No entanto, a menos que se pense que os regimes russo ou chinês não são também imperialistas, porque raios investirias na sua sobrevivência? O mesmo se aplica ao Irão. Na Índia, alguns sectores da esquerda permanecem em silêncio sobre as revoltas no Irão. Se estamos do lado das vítimas do imperialismo, temos de estar do lado das vítimas de todos os imperialismos.

A Ucrânia foi durante muito tempo uma vítima colonial do grande imperialismo russo, e continua a sê-lo atualmente. E é contra isso que os ucranianos estão a lutar. Por que razão, em certas situações, a esquerda se liberta da responsabilidade de ser solidária com aqueles que estão a lutar? Como seria uma solidariedade significativa? Pode parecer-se com o que estamos a fazer com a Palestina, por exemplo. Estamos a fazer uma campanha para informar as pessoas sobre o que está a acontecer na Palestina e estamos a fazer uma campanha ativa contra a desinformação, contra a propaganda israelita. Por que não haveríamos de fazer o mesmo em relação à Ucrânia?

Além disso, esta não é uma questão reservada à esquerda. Na Índia, a esfera pública está saturada de propaganda russa. Não só na extrema-direita como na esquerda. Mesmo as vítimas da extrema-direita na Índia, por exemplo a comunidade muçulmana, acreditam que os EUA são o primeiro inimigo dos muçulmanos. Não sabem quantos muçulmanos Putin matou ou deslocou. Não fazem a mínima ideia. A esquerda indiana tem um papel real a desempenhar aqui para contrariar a desinformação, empenhando-se na guerra de informação a favor da Ucrânia.

O que dissemos anteriormente sobre o facto de não se poder impor as mesmas normas ao Qatar, à Índia ou a outros países é exatamente o que os defensores da multipolaridade estão a dizer neste momento: unipolaridade é sinónimo de valores universais. E multipolaridade significa que não nos podem impor as vossas ideias de igualdade! Quando a esquerda pensa nestes termos, não se dá conta de que tem exatamente o mesmo discurso que a extrema-direita no Qatar, mas também que a extrema-direita em todo o mundo.

RK: Na Índia, uma das grandes iniciativas do RSS foi promover a ideia de que o sistema de castas é um elemento fundamental da sociedade indiana. Nenhuma pessoa de esquerda dirá que as castas são uma coisa boa. O significado prático de apoiar o conceito de um mundo multipolar é o de apoiar simplesmente o fascismo. Deste ponto de vista, torna-se obviamente absurdo imaginar que possa ser uma ideia progressista ou que possa criar um espaço para movimentos anti-coloniais e socialistas. A promoção de uma política fascista não abre espaço para o marxismo.

Quando a guerra eclodiu na Ucrânia, os jornalistas ucranianos foram inundados por pedidos dos meios de comunicação social indianos. No início, ficámos contentes por responder. Tínhamos de garantir que a história ucraniana tinha o seu lugar, que a informação não era dominada pela propaganda russa. Mas depressa nos apercebemos de que não estavam interessados em questionar as causas do conflito ou as agressões imperialistas de que a Ucrânia foi vítima ao longo dos últimos séculos. Os meios de comunicação social indianos limitavam-se a repetir as afirmações russas, sem qualquer análise. Ou a apresentar a guerra como tendo caído do céu, do nada, como uma tempestade que se abateu sobre o território ucraniano. Não, a guerra não é um fenómeno meteorológico. É uma agressão levada a cabo por seres humanos contra outros seres humanos.

KK: De facto, muitos de nós deixaram de participar na televisão indiana desde 2015, porque está a acontecer exatamente o que descreve. Depois, sobre as castas na Índia, quando comecei a ler Dugin, descobri que ele repetia que a ideologia anti-hierarquia deve ser combatida, para preservar o "sistema de castas indiano". Segundo ele e outros fascistas como Julius Evola, o mundo está atualmente no que se chama Kali Yuga. Esta expressão hindu refere-se a uma mudança na boa ordem da sociedade, que permite o domínio das castas oprimidas ou das mulheres. Uma catástrofe.

JA: O termo "mudança de regime" foi mencionado anteriormente. As revoluções haitiana e francesa foram mudanças de regime, tal como a revolução russa de 1917. O principal slogan da primavera Árabe foi "O povo quer a queda do regime" (Ash-shab yureed isqat an-nizam). Quando as pessoas saíram à rua no Egito, na Tunísia, no Bahrein, na Síria e no Iraque, disseram: "Queremos a queda do regime" e isso não era metafórico. No Irão, as pessoas dizem literalmente "Morte ao ditador" ou "Vão-se embora" quando se referem ao regime. Quando os ucranianos, por sua vez, dizem que Putin tem de sair, que não pode ficar, há silêncios. A vacilação é palpável. É perigoso.

Gostaria de abordar um último ponto: qual é, na vossa opinião, o papel das diásporas em todo este processo? Vimos que a diáspora palestiniana é muito reativa. Quando Israel lança campanhas de bombardeamento ou assassina jornalistas, saem à rua para protestar. A diáspora indiana que conheci no Reino Unido e nos EUA é de direita e de extrema-direita. Muitos dos seus membros são nacionalistas do BJP. Vimos isso na associação de Trump ao BJP e à diáspora indiana nos EUA. Como compreender então o papel da diáspora?

PL: Uma razão muito clara para a importância das diásporas de Hong Kong, chinesa, tibetana e uigur (e outras diásporas na região de Xinjiang) é que as populações destas regiões não podem agir e organizar-se aberta e publicamente, de forma autónoma. Estamos a entrar numa nova fase em que qualquer pequeno protesto ou dissidência expresso na Internet (e já não na rua) pode levar à aplicação de leis de segurança nacional. Isto significa que a diáspora é um espaço muito importante para organizar e reconstruir um movimento de oposição.

Quanto à esquerda, o Governo chinês tem uma experiência única no silenciamento de movimentos independentes. Enfrentou um poderoso movimento anti-colonial e operário e sabe exatamente o que significa sufocar um movimento desse tipo. Desde Tienanmen, as autoridades chinesas tornaram-se muito hábeis em fazê-lo com um mínimo de derramamento de sangue. Atacam estrategicamente os organizadores e as lutas dos trabalhadores. Silenciam e fazem desaparecer algumas pessoas. Não é necessário levar a cabo massacres como no Irão ou na Rússia. Basta fazer o suficiente para que não haja mais movimento. Penso que as pessoas não compreendem a eficácia desta ação.

A ideia de uma esquerda independente na perspetiva de um movimento está realmente extinta há gerações. É limitada a minorias muito pequenas. As pessoas nem sabem o que significa ser de esquerda nesse sentido. Quando dizes “esquerda” em Hong Kong, as pessoas muitas vezes pensam que te estás a referir ao governo. Do ponto de vista discursivo, há muitas coisas a esclarecer. Para a população só existe liberalismo e comunismo (que é autoritarismo). A diáspora é um espaço importante onde as pessoas, especialmente chinesas e de Hong Kong, estão expostas a diferentes lutas. A participação de estudantes internacionais chineses nas recentes greves de trabalhadores da Universidade da Califórnia, a maior greve do ensino superior na história dos EUA, é um exemplo.

O que significa para estes estudantes serem expostos a novos tipos de movimentos, a novas comunidades de luta? Como isso remodela a sua própria consciência política e que lições podem aprender com eles? Isto permite que as diásporas comecem a refletir sobre como agir concretamente, especialmente em questões relacionadas com as intersecções do capital internacional. Onde se cruzam os capitais americanos e chineses? Um exemplo são os projetos de desenvolvimento imobiliário “super-gentrificantes” em Nova Iorque, que são financiados com empréstimos estatais chineses. Trata-se de um espaço de intervenção concreto, onde capitais chineses e americanos, promotores e bancos chineses estão em relação. Construir um movimento aqui seria mobilizar as comunidades da diáspora e estabelecer a ligação com as lutas de esquerda, as lutas contra a gentrificação.

Outro exemplo é a greve internacional dos estudantes chineses. Para combater o capitalismo no seu conjunto, devemos ligar as lutas entre si, para que o slogan “nem Washington nem Pequim” não seja apenas idealista, mas seja a forma mais prática de combater o imperialismo multipolar e o capitalismo. A diáspora tem um papel essencial a desempenhar na criação de laços, na proposta de novas tradições políticas, na revitalização das coisas, mas também na continuação da luta no estrangeiro.

Com a globalização, o poder do Estado chinês já não se limita à China continental. Também obtém poder através dos seus investimentos no exterior. Estas reconfigurações são uma oportunidade para envolver a diáspora chinesa no diálogo com as populações indígenas que lutam contra as empresas agroalimentares financiadas pela China no Brasil e na Amazónia. Nestes casos, a diáspora desempenha um papel motor e permite estabelecer vínculos. Como podemos não considerar isto em termos geopolíticos?

R.K: Cresci tanto na comunidade do Sul da Ásia, nos Estados Unidos, como na diáspora ucraniana pós-soviética. Tenho visto muitas dessas tendências se desenvolverem ao longo da minha vida. Como mencionaste, Joey, grande parte da diáspora indiana é conservadora, para dizê-lo de forma educada. Pelo menos, apoia os candidatos apoiados pelo BJP; muitas vezes frequenta templos financiados pelo BJP ou pelo RSS. Historicamente, as comunidades migrantes tendem a ser mais conservadoras e a endurecer-se à medida que o seu estatuto se fortalece no seu novo país e ganham aceitação social.

JA. Ouvimos o seguinte argumento da esquerda: “poderemos abordar esta crítica mais tarde”. O que pensas?

P.L: A minha reação não é muito original. Se a esquerda não tomar a iniciativa de refletir criticamente sobre a sua própria história, os seus erros passados e presentes, repetirá os mesmos erros no futuro. Se queremos transformar a sociedade e construir um mundo melhor, devemos aceitar os nossos erros e explicá-los. Se não o fizermos, a direita fá-lo-á. E será socialismo ou barbárie. É preciso saber traçar uma linha e ser crítico quando certos movimentos ou regimes o ultrapassam. Dizer que “agora não é hora de criticar” significa que nunca é o momento adequado para criticar.

Esta retórica historicamente abriu caminho para o desastre dentro da esquerda. Trata-se de uma tática estalinista clássica que consiste em dizer: “É o capitalismo ocidental, não podemos falar dos nossos erros internos”. A conclusão lógica desta atitude é que aqueles que denunciam erros internos serão considerados inimigos, excluídos e assassinados, e então repetiremos os mesmos erros cometidos no século XX. A esquerda precisa de fazer um balanço dos seus fracassos passados e dos seus sucessos. Escolher cuidadosamente o que continuar a impulsionar e defender e o que deixar cair e abandonar no caixote do lixo da história.

KK: Na Índia, estou sempre a tentar compreender porque é que tem havido tanta hostilidade, até vinda da melhor parte da esquerda indiana, à adoção do que deveria ter sido uma posição normal e intuitiva de solidariedade com a Síria, com a Ucrânia, com os movimentos populares, sem “se” e sem “mas”. Um dos obstáculos é que a esquerda realmente não se sente cómoda para afrontar a história da Ucrânia. Isto implica enfrentar-se, em detalhe, com o legado do estalinismo. Num lado da esquerda, não houve vontade de revisitar erros passados ou atuais.

Quanto à China, o partido ao qual pertenci publicou uma crítica ao último documento do congresso do Partido Comunista Chinês. É sobre violações dos direitos humanos e outras coisas. Mas qual é a conclusão? “A China está a afastar-se do socialismo e a avançar em direção ao capitalismo com características chinesas.” O que significa isto? A questão não é se a China é socialista ou não. O importante é saber o que acontece com as pessoas afetadas por este regime. Onde está tua avaliação do mal que está a ser cometido? O que se pode fazer para apoiar as pessoas prejudicadas por este regime?

E isto não se aplica apenas ao interior do país. A China financia e apoia os militares de Myanmar. Na Índia, a islamofobia é agravada pelo facto de existir em Myanmar e de existir na China. Quem fala de geopolítica: como não ver isso em termos de geopolítica? Será uma coincidência que tantos regimes nesta região sejam ativamente islamofóbicos? Não há conexão entre eles? Não se pode encontrar uma maneira de pensar sobre esta questão que vá além da sua situação nacional específica? Estas são perguntas que temos nos fazer.


Texto publicado original e completamente no The Fire these times. Editado e republicado no Sin Permiso com tradução de Enrique García. Traduzido a partir desta versão para português por Carlos Carujo.