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Como os governos ocidentais manipulam a internet

Documentos de Snowden revelam: serviços de espionagem intervêm maciçamente na rede, de modo clandestino, para desinformar, difamar adversários e espalhar intrigas. Por Glenn Greenwald

Uma das histórias urgentes que falta contar, a partir dos arquivos de Edward Snowden, é como as agências de espionagem ocidentais estão a agir para manipular e controlar as narrativas online, com táticas extremas de construção de versões e destruição de reputações. É hora de contar um pouco desta história, e de apresentar os documentos que demonstram a sua existência.

Nas últimas semanas, trabalhei com a NBC Newspara publicar uma série de artigos sobre as “táticas sujas” empregadas pelo JTRIG (Grupo de Inteligência Conjunto para a Investigação de Ameaças), uma unidade até há pouco secreta dos serviços de informação britânicos (Quartel-General de Comunicações do Governo, ou GCHQ, em inglês). Os textos baseiam-se em quatro documentos apresentados à Agência Nacional de Segurança norte-americana (NSA) e aos três outros serviços parceiros [da Austrália, Canadá e Nova Zelândia], que integram a aliança “Five Eyes”. Agora, estamos a publicar na íntegra, na Intercept, um novo documento do JTRIG document, intitulado “A arte da Manipulação: Capacitar-se para Operações Online Encobertas.”

Ao publicar estas histórias, uma por uma, a nossa reportagem para a NBC destacou algumas das revelações-chave: a monitorização do YouTube e do Blogger; o ataque ao grupo Anonymous, com o mesmo tipo de ataques DDoS que os “hacktivistas” são acusados de praticar; o uso de “ciladas de mel” (honey traps), que implicam atrair pessoas para situações comprometedoras, usando sexo; o emprego de vírus destrutivos. Mas agora, quero focar e elaborar sobre o ponto mais importante revelado por todos estes documentos. Estas agências estão a agir para controlar, infiltrar, manipular e distorcer as narrativas online. Ao fazê-lo, estão a atentar contra a própria integridade da internet.

Ente aquilo que chama de seus objetivos centrais, o JTRIG identifica duas táticas: (1) introduzir todo tipo de material falso na internet, para destruir a reputação de seus alvos; e (2) usar as ciências sociais e outras técnicas para manipular as narrativas e o ativismo online, gerando os efeitos políticos que a agência considera desejáveis. Para compreender como estes programas são extremos, basta considerar as táticas que eles se vangloriam de empregar: “operações de bandeira falsa” (false flag operations – postar material na internet e atribuí-lo falsamente a terceiros); postagens em blog para vitimização falsa (fake victim blog posts – fingir-se de vítima de um indivíduo cuja reputação se quer destruir), e várias formas de postagem de “informação negativa”. Eis uma lista ilustrativa das táticas elencadas no último documento do GCHQ, que publicamos.

Rutura:
Cartilha Operacional
- Operação de Infiltração
- Operação de Engano
- Operação de Falsa Bandeira
- Operação de Falso Salvamento
- Operação de Rutura
- Operação Sting (operação onde normalmente um agente infiltrado adquire a confiança)

 

 

Outras táticas voltadas para indivíduos estão listadas aqui, sob um título revelador: “desacreditar um alvo”:

 

Desacreditar um alvo:
- Criando uma armadilha sexual (honey-trap)
- Alterar suas fotos em sites de rede social
- Escrever um blog simulando ser uma das suas vítimas
- Enviar emails e mensagens de texto para colegas, vizinhos, amigos, etc.

 

Em seguida, as táticas usadas para destruir empresas que a agência vê como alvos:

 

Desacreditar uma empresa:
- Divulgar informação confidencial para empresas/imprensa via blogues, etc.
- Postar informação negativa em fóruns apropriados
- Interromper negociações, arruinar relacionamentos de negócio

 

 

A GCHQ descreve os objetivos do JTRIG em termos de clareza chocante: “usar as tecnologias online para fazer com que algo aconteça no mundo real ou virtual”, incluindo “operações de informação (influência ou rutura)”

 

Efeitos: Definição:
- “Usando técnicas online para fazer algo acontecer no mundo real ou virtual”
- Duas amplas categorias:
- Operação de Informação (influência ou rutura)
- Rutura técnica
- Conhecida no GCHQ como Online Covert Action (Ação Clandestina Online)
- Os 4 “D”s: Negar / Romper / Degradar / Enganar

Os objetivos desta manipulação e destruição de reputação vão muito além dos alvos costumeiros da espionagem normal: nações hostis e seus líderes, outras agências militares e serviços de informação. Na verdade, a discussão de muitas destas técnicas ocorre no contexto de usá-las como substitutas do “processo judiciário tradicional” contra pessoas suspeitas (mas não processadas, nem condenadas) de crimes comuns, ou, de maneira muito mais ampla, “hacktivismo” – referência a quem adota ações de protesto online com objetivos políticos.

A capa de um destes documentos revela: a agência tem consciência de que está “a mover fronteiras”, ao usar técnicas “ciber-ofensivas” contra pessoas que nada têm a ver com terrorismo ou ameaças à segurança nacional — e que envolvem agentes da lei que investigam crimes comuns.

 

 

 

Sessão de Ciber-Ofensa: Movendo os limites e Ação contra o Hacktivismo
- (Nome apagado) – Efeitos de Crimes Sérios – GCHQ
- (Nome apagado) – JTRIG, GCHQ

 

 

Não importa quais sejam as suas opiniões sobre o Anonymous, os “hacktivistas” ou crimes banais. Não é difícil perceber a gravidade de permitir às agências secretas do governo perseguir os indivíduos que elas desejem — pessoas que nunca foram acusadas, muito menos condenadas, por crime algum— com estes tipos de táticas baseadas em manipulação e destruição de reputações. Como Jay Leiderman demonstrou, no The Guardian, no contexto do processo contra os hacktivistas do Paypal 14, as táticas de “negação de serviço” empregadas por hacktivistas provocam, no máximo, danos triviais (muito menos graves que as operações de ciberguerra promovidas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido.

O ponto principal é que, muito além dos hacktivistas, as agências de vigilância investiram-se do poder de arruinar deliberadamente reputações de indivíduos e bloquear a sua atividade política online. Isso ocorre mesmo quando estes indivíduos não foram acusados de crimes e quando as suas ações não têm nenhuma conexão concebível com terrorismo ou ameaças à segurança nacional. Como afirma Gabriella Coleman, estudiosa do Anonymous na Universidade McGill, “perseguir o Anonymous e os hacktivistas equivale a perseguir cidadãos por expressar as suas convicções políticas — o que resulta em sufocar a dissidência política legítima. A partir de um estudo que publicou, a professora Coleman contesta veementemente a afirmação de que “haja algo de terrorista ou violento nas suas ações.”

Os planos do governo para monitorizar e influenciar as comunicações por internet, e infiltra-se secretamente em comunidades online, para semear dissidência e disseminar falsas informações são, há muito, objeto de especulações. Cass Sunstein, um professor de Direito de Harvard, conselheiro próximo de Obama e ex-chefe do Escritório de Informação e Assuntos de Regulação escreveu um documento controverso em 2008. Nele, propõe que o governo norte-americano empregue grupos de agentes secretos, e de mobilizadores pseudo-“independentes” para “infiltrar cognitivamente” grupos online e websites, assim como outros grupos ativistas.

Sunstein também propôs enviar agentes secretos a “salas de chat, redes sociais online ou mesmo grupos presenciais”, que difundem o que chamou de “teorias conspiratórias” sobre o governo. Ironicamente, o mesmo Sunstein foi recentemente nomeado por Obama como membro de um grupo de revisão das atividades da NSA criado pela Casa Branca. É a mesma equipa que contestou acusações-chave contra a agência, limitando-se a propor um conjunto de reformas cosméticas aos poderes da agência (a maior parte das quais foi ignorada pelo presidente).

Mas estes documentos da GCHQ são a primeira prova de que um governo ocidental destacado está a usar algumas das técnicas mais controversas para disseminar desinformação online, e atingir as reputações dos seus alvos. Por meio destas táticas, o Estado está deliberadamente a difundir mentiras na internet, sobre quem quer que identifique como inimigo. Isso inclui o uso do que o próprio GCHQ chama de “operações de falsa bandeira” e emails para as famílias e amigos dos alvos. Quem ofereceria a sua confiança para que um governo exercitasse estes poderes, com o agravante do sigilo, sem nenhuma supervisão e sem os limites de qualquer norma legal conhecida?

Os documentos também revelam o uso da psicologia e outras ciências sociais não apenas para entender, mas conformar e controlar o discurso do ativismo online. O documento que publicamos hoje expõe o trabalho da “Célula de Operações em Ciências Humanas” do GCHQ, que se dedica à “inteligência humana online” e à “influência e rutura estratégicas”.

Sob o título de (Ação Online Encoberta”, o documento detalha uma vasta gama de meios para promover “operações de influência e info”, bem como “rutura e ataque em rede de computadores”. Também analisa “como os seres humanos podem ser manipulados por meio de “líderes”, “confiança”, “obediência” e “conformidade”:

O documento desenvolve teorias sobre como seres humanos interagem, particularmente online. A partir disso, tenta identificar meios de influenciar desfechos políticos:

 

 

Identificando e Explorando Pontos de Fratura
- à esquerda: “Coisas que juntam um grupo: oposição compartilhada, ideologia compartilhada e crenças comuns”- à direita: “Coisas que separam um grupo: poder pessoal, divisões pré-existentes, competição, diferenças ideológicas”

 

A partir das reportagens, formulámos diversas questões à GCHQ, entre as quais: (1) A GCHQ empenha-se de facto em “operações de falsa bandeira”, nas quais posta-se na internet e atribui-se falsamente a autoria a outros?; (2) A GCHQ envolve-se em esforços para influenciar ou manipular o discurso político online?; e (3) O mandato da GCHQ inclui perseguir criminosos comuns (em operações como “boiler room”), ou apenas ameaças externas?

Como de costume, as questões foram ignoradas. A GCHQ optou por usar a sua resposta protocolar: “Mantemos há muito uma política de não comentar assuntos relacionados com informação. Além disso, todo o trabalho da GCHQ é executado de acordo com normas legais e políticas estritas, que asseguram que as nossas atividades são autorizadas, necessárias e proporcionais, e que há rigorosa supervisão, inclusive da Secretaria de Estado, da Comissária de Serviços de Intercetação e Informação e do Comité Parlamentar de Informação e Segurança. Todos os nossos processos operacionais apoiam rigorosamente esta posição.”

A recusa das agências ocidentais a “comentar assuntos de informação” equivale a uma negativa a falar sobre tudo e qualquer coisa que fazem. Exatamente por isso, as divulgações internas são tão urgentes e o jornalismo que a apoia é de enorme interesse público. Também é perfeitamente possível entender os ataques cada vez mais desequilibrados destas agências. Os sinais de que órgãos de informação do governo estão a infiltrar-se em comunidades online e a envolver-se em “operações de falsa bandeira”, para desacreditar os seus alvos, são frequentemente apresentados como fruto de teorias conspiratórias. Porém, estes documentos não deixam dúvidas sobre as práticas.

Nenhum governo deveria ter poderes para envolver-se em tais táticas. Que justificação pode haver para que agências governamentais persigam pessoas — que não foram acusadas de crime algum –, destruam reputações, infiltrem-se em comunidades políticas online e desenvolvam técnicas de manipulação das narrativas online? Permitir que estas ações sejam executadas, sem nenhum conhecimento do público, é particularmente injustificável.

Artigo de Glenn Greenwald*, no The Intercept.Tradução de Antonio Martins eVila Vudu. Publicado em Outras Palavras.


* Glenn Greenwald é advogado constitucionalista norte-americano, colunista, blogueiro e escritor. Trabalhou como advogado especializado em direitos civis e constitucionais, antes de se converter em colaborador de Salon, onde se concentrou na análise de temas políticos e jurídicos. Também colaborou noutros jornais e revistas de informação política, como New York Times, Los Angeles Times, The American Conservative, The National Interest e In These Times. Em agosto de 2012, deixou Salon para colaborar com o The Guardian. Publica atualmente no The Intercept.

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