Enquanto Israel prossegue o seu incessante bombardeamento e cerco de Gaza, onde a fome e a desidratação atingiram níveis mortíferos, o Hamas acusou Israel de "inviabilizar" os esforços para chegar a um acordo de cessar-fogo. Uma delegação do Hamas no Cairo afirmou que Israel tem insistido em rejeitar elementos de um acordo para um processo faseado que culminaria no fim do ataque de Israel a Gaza, bem como em garantir a entrada de ajuda e facilitar o regresso dos palestinianos deslocados às suas casas em Gaza. Entretanto, a administração Biden está a pressionar o Hamas para que aceite os termos em cima da mesa, alegando que foi feita uma oferta "racional" para uma trégua de seis semanas em troca da libertação dos reféns israelitas. As declarações da Casa Branca parecem ser "uma jogada politicamente muito calculada para que possam essencialmente apontar as culpas ao Hamas se isto falhar", diz Tahani Mustafa, analista para a Palestina do International Crisis Group. Mustafa também fornece actualizações sobre o colapso das operações da UNRWA, a repressão na Cisjordânia e a utilidade do direito internacional para a Palestina de hoje.
AMY GOODMAN: Bem-vinda ao Democracy Now!, Tahani. Pode começar por falar da situação no terreno e destas conversações de cessar-fogo? O Hamas está a dizer que Israel sabotou as conversações e o Hamas abandonou o Cairo. E estamos a receber notícias de que, na verdade, algumas negociações ainda estão em curso.
TAHANI MUSTAFA: Penso que as negociações neste momento são muito precárias. Vimos que o acordo de cessar-fogo, ou pelo menos o que está a ser oferecido por Israel e pelos EUA, que, a propósito, apresentaram unilateralmente algumas destas condições em vez de negociarem efetivamente com o Hamas - parece ser uma jogada politicamente muito calculada para que possam essencialmente apontar as culpas ao Hamas se o acordo falhar. Mas o que vimos nestas propostas que foram apresentadas é que elas oferecem muito pouco tanto ao Hamas como a Gaza. Não há qualquer garantia em termos de ajuda, de quanta ajuda será permitida. Israel já está a afirmar que está a permitir quantidades suficientes de ajuda, ao contrário do que dizem até as organizações de direitos humanos, pelo que já vimos que estão a manipular a realidade.
E há também a preocupação, e com razão, de que isso simplesmente - quero dizer, em termos do que foi oferecido, é uma pausa de seis semanas, é o que Israel e os EUA estão a oferecer. E assim, para o Hamas e para os habitantes de Gaza, eles veem isso basicamente como uma pausa na máquina de matar, essencialmente, em que o Hamas entrega esses reféns, entrega todas as cartas à sua disposição, e depois a máquina de matar recomeça.
NERMEEN SHAIKH: O que é extraordinário nas conversações, uma das coisas, é que Israel se recusou, de facto, a participar nas conversações que tiveram lugar no Cairo, dizendo que o Hamas tem de apresentar uma lista de 40 reféns idosos, doentes e mulheres que seriam os primeiros a ser libertados como parte de uma trégua. Pode explicar-nos quais são os obstáculos à revelação dessa lista e por que razão o Hamas hesita em fazê-lo?
TAHANI MUSTAFA: Não se trata necessariamente de hesitação. É a dificuldade em tentar avaliar quantos reféns estão efetivamente vivos, especialmente tendo em conta que o Hamas não tem todos esses reféns. Portanto, pode haver - pode muito bem haver reféns que estejam a ser mantidos em cativeiro por outros grupos. Agora, dada, obviamente, a dificuldade em termos de movimento devido ao ataque israelita, tornou-se muito difícil reunir quaisquer números concretos, especialmente em termos de quantos deles estão realmente vivos. Portanto, trata-se mais da logística de ser capaz de fornecer uma lista confirmada que está a impedir o Hamas de o fazer.
NERMEEN SHAIKH: Tahani, quais são os riscos de não se chegar a um acordo na próxima semana? Porque, inicialmente, havia receios de que Israel pudesse avançar com a invasão de Rafah.
TAHANI MUSTAFA: A próxima semana marca o início do Ramadão. Sabe, nos últimos dois anos, vimos que o Ramadão tem sido uma época incrivelmente agitada. Maio de 2021 marcou o anterior conflito transfronteiriço entre Israel e o Hamas, que nada teve a ver com os acontecimentos em Gaza e tudo a ver com as provocações a que assistimos em locais como Jerusalém Oriental.
Se não assistirmos - o que é muito provável - a um cessar-fogo ou a uma espécie de pausa antes do Ramadão, tendo em conta a escalada da violência e o clima no terreno, isto poderá ser catastrófico, não só para Gaza, em termos do que isto significa em termos de uma invasão iminente de Rafah, que os analistas israelitas alertam não ser uma questão de "se" mas de "quando", mas também em locais como a Cisjordânia e mesmo Jerusalém Oriental, onde Israel tem afirmado até agora que não vai limitar o acesso a locais como o complexo de Al-Aqsa, mas já vimos no passado que de facto o fez, e muitas vezes de forma muito arbitrária em termos dos horários e das condições que impôs em termos de limitações ao acesso, mas, mais importante, como isso conduziu, especialmente nos últimos dois anos, a graves escaladas de violência.
AMY GOODMAN: Na próxima reportagem, vamos falar mais detalhadamente sobre esta revelação do Washington Post que diz que os EUA inundaram Israel discretamente com cerca de uma centena de remessas de armas, que não foram, na sua maioria, aprovadas pelo Congresso. Pode falar sobre o significado de o Presidente Biden ter dito: "Temos de levar mais ajuda para Gaza. Não há desculpas. Nenhuma", mas, ao mesmo tempo, o que está a impedir isso, o bombardeamento israelita, o impedimento dos grupos de auxílio, que os EUA têm apoiado quando se trata de Gaza, com bombas, mísseis e munições?
TAHANI MUSTAFA: Exatamente. Quer dizer, o que está em causa é o facto de os EUA terem feito muito pouco para pressionar Israel a limitar a violência no terreno e a intensidade da sua campanha militar. E, ao mesmo tempo, queixam-se agora de que não existem rotas de ajuda suficientes.
Os EUA têm influência para garantir a existência de rotas de ajuda suficientes. Os EUA têm influência para garantir que Israel cumpra as medidas provisórias estabelecidas pelo TIJ quando afirma que Israel tem um processo para responder no que se refere a genocídio. Mas simplesmente não o fizeram. Não há absolutamente nenhuma linha vermelha, nenhuma pressão a ser exercida sobre Israel. E, pior ainda, estamos a assistir a coisas como este tipo de ajuda que, mesmo em termos de valor nutricional e de suficiência, não chega nem perto de satisfazer as necessidades da maioria dos habitantes de Gaza no norte. Sinceramente, é mais uma espécie de atitude da diplomacia ineficaz dos EUA do que qualquer outra coisa.
NERMEEN SHAIKH: Tahani, para além do que se está a passar em Gaza, pode falar-nos da situação na Cisjordânia ocupada desde 7 de outubro?
TAHANI MUSTAFA: Bem, a situação tem sido incrivelmente má. E, infelizmente, dada toda a atenção dos meios de comunicação social sobre Gaza, não tem havido muita atenção a muitas das violações que têm acontecido na Cisjordânia,. Só no primeiro mês, assistimos a um aumento da violência dos colonos israelitas, vimos cerca de 15 comunidades palestinianas deslocadas, vimos a Cisjordânia ser submetida a um cerco económico, que tem durado até hoje. Houve restrições à circulação, com a capital administrativa da Autoridade Palestiniana (AP) isolada da parte norte da Cisjordânia devido à construção de postos de controlo improvisados e ao encerramento de estradas e bloqueios de estradas.
Pior ainda, antes de 7 de outubro, a maior parte dos focos de tensão na Cisjordânia situavam-se sobretudo no norte, em locais como Jenin e Nablus. Agora, isso espalhou-se praticamente por todo o território. Estamos a assistir ao aparecimento de lugares onde a militância não era um problema antes de 7 de outubro, em lugares como Tubas, em lugares como Hebron. Pior ainda, estamos a ver imagens semelhantes às que vimos na destruição de localidades em Gaza, mas em menor escala, em locais como o campo de refugiados de Jenin, o campo de refugiados de Tulkarm, onde os soldados israelitas entraram e arrasaram estas localidades, estes bairros, onde destruíram linhas de eletricidade, saneamento, água, centros culturais, que costumavam servir como uma forma de expressão cívica e mecanismos para os palestinianos mais jovens descarregarem as suas frustrações de formas mais pacíficas, certo? Mas, agora, as gerações mais jovens estão a ser mais influenciadas, por necessidade, pela militância e pela resistência armada, e estes bairros tornaram-se praticamente inabitáveis.
Assistimos, portanto, a um aumento significativo da violência, não só por parte dos colonos, mas também dos soldados israelitas. Desde o dia 7 de outubro até hoje, só na Cisjordânia, foram mortos cerca de 420 palestinianos, a maioria dos quais através de operações de busca e detenção e de assassinatos selectivos.
AMY GOODMAN: Uma das partes do cessar-fogo que tem sido noticiada é a libertação de reféns e de prisioneiros palestinianos. Fale-nos do número de palestinianos que foram presos desde 7 de outubro - por exemplo, na Cisjordânia ocupada. São cerca de 7.000? Quantos deles são crianças? Quantos deles têm menos de 18 anos? E de que é que foram acusados?
TAHANI MUSTAFA: Bem, a maioria dos que foram detidos - cerca de 7000 - são crianças, isto é, pessoas com menos de 18 anos. E em termos de acusação, quero dizer, é essa a questão. Não foram acusados de nada. Trata-se de detenção administrativa, em que podem ser mantidos indefinidamente sem acusação ou julgamento. E isso acontece por qualquer tipo de atividade, seja gostar de um post no Facebook ou simplesmente expressar qualquer tipo de solidariedade com Gaza. Os israelitas não precisam de qualquer desculpa ou razão legítima para prender pessoas na Cisjordânia. Estas detenções têm sido muito arbitrárias. E podem variar entre 50 e 100 por dia, são alguns dos números que temos visto, desde o início do dia 7 de outubro.
E penso que vale a pena recordar aos vossos telespectadores que isto se refere a uma população que nada teve a ver com os acontecimentos de 7 de outubro. O presidente da AP, Mahmoud Abbas, veio a público imediatamente após os ataques de 7 de outubro e condenou tanto o Hamas como a resistência armada, afirmando que a resistência armada não era um meio para a autodeterminação. No entanto, assistimos à punição coletiva de uma população que, como já disse, nada teve a ver com os acontecimentos de 7 de outubro.
NERMEEN SHAIKH: Houve uma série de detidos em Gaza, 27, que morreram sob custódia. Pode explicar-nos de quantos tem conhecimento e quem são essas pessoas?
TAHANI MUSTAFA: Mais uma vez, estas detenções são incrivelmente arbitrárias. Têm estado, efetivamente, a prender homens, mulheres e crianças. Vimos soldados israelitas, muito literalmente, a publicar imagens e vídeos de si próprios a torturar e a prender e a reter, mais uma vez, jovens, mulheres e crianças em contas de redes sociais como o Telegram, o TikTok, a publicar muitos destes crimes de guerra nas redes sociais, o que mostra bem o nível de impunidade com que Israel sabe que pode escapar.
E, como já disse, estas detenções são muito arbitrárias. Muitas vezes, estas pessoas não estão filiadas no Hamas. De facto, penso que há alguns meses vimos - e até surpreende que tenha sido referido pelos meios de comunicação ocidentais - a forma como Israel tentou manipular essas imagens para mostrar que eram militantes, quando na realidade não eram. Assim, muitos dos que foram detidos são civis normais de Gaza que não têm qualquer filiação em qualquer fação política em particular.
AMY GOODMAN: Quero perguntar-lhe sobre o facto de a África do Sul ter recorrido mais uma vez ao Tribunal Internacional de Justiça, pedindo-lhe que tomasse medidas de emergência adicionais em Gaza, incluindo a ordem de um cessar-fogo. É claro que a África do Sul apresentou o processo por genocídio contra Israel perante o tribunal, mas disse: "A ameaça de fome total materializou-se agora. O tribunal precisa de agir agora para impedir a tragédia iminente".
TAHANI MUSTAFA: Na prática, penso que o direito internacional é inútil. Só é útil na medida em que os poderosos o permitam. Em muitos aspetos, as audiências do TIJ têm sido empoderadoras, no sentido em que é a primeira vez que Israel é responsabilizado pelo luxo de décadas de impunidade de que tem sido capaz de se safar. Mas, ao mesmo tempo, verificámos que, desde que o TIJ ordenou a Israel que tomasse medidas provisórias, este não o fez. E, pior ainda, não houve absolutamente nenhuma pressão para garantir que Israel o fizesse. Assistimos à redução do financiamento de organizações como a UNRWA, que têm sido a principal fonte da ajuda e assistência aos que estão no terreno. Assistimos à morte de mais de 15.000, se não 20.000, palestinianos desde que o TIJ emitiu medidas provisórias. E não vimos absolutamente nenhuma pressão sobre Israel para tentar chegar a um cessar-fogo ou a qualquer tipo de pausa.
NERMEEN SHAIKH: Quero fazer uma pergunta sobre a UNRWA. O Canadá afirma que vai retomar o financiamento da agência, depois de ter suspendido o apoio em janeiro, na sequência das alegações israelitas de que 12 funcionários estariam envolvidos no ataque de 7 de outubro. Pode explicar-nos o que se passa com o financiamento da agência e qual foi o impacto da retirada de tantos países, incluindo os EUA, que são o maior financiador, ou eram?
TAHANI MUSTAFA: Bem, neste momento a UNRWA está a aguentar-se por um fio. Assistimos a uma retoma dos financiamentos e a alguns financiamentos suplementares provenientes de várias outras fontes, mas a UNRWA está realmente por um fio. E o pior de tudo é que não há absolutamente nenhuma organização capaz de preencher esse vazio. Houve tentativas para tentar obter organizações como o Programa Alimentar Mundial, mas simplesmente não têm capacidade para fazer o que a UNRWA faz. Nenhuma organização está tão integrada na infraestrutura cívica de Gaza como a UNRWA. E, mais importante ainda, não pode - não pode substituir a maior parte dos serviços que a UNRWA presta, algo que o próprio PAM admite. Por isso, neste momento, a UNRWA está a aguentar-se por um fio e as consequências de uma eventual redução dos fundos, que esperamos que não chegue a esse ponto, mas se chegar será incrivelmente catastrófica.
AMY GOODMAN: Tahani, só temos um minuto, mas queríamos perguntar-lhe sobre a ida de Benny Gantz, que faz parte do gabinete de guerra de Israel - aparentemente não autorizada por Netanyahu - a Washington, para se encontrar com Anthony Blinken, com a Vice-Presidente Kamala Harris, e sobre o facto de Netanyahu ter dito à embaixada israelita para não cooperar com esta viagem, que ele chamou de não autorizada. Vê aqui uma divisão que pode derrubar Netanyahu?
TAHANI MUSTAFA: Houve certamente uma divisão no seio da administração israelita. E isso tem sido algo que está a começar a vir à tona nos últimos meses entre o establishment político e militar, mas mesmo internamente dentro do establishment político. Obviamente, o acolhimento de Gantz é substancial para a política israelita. Mais uma vez, é um sinal da ineficácia da diplomacia norte-americana, que, para reiterar o seu descontentamento com as políticas de Netanyahu, está agora a dar as boas-vindas e a envolver-se com um político da oposição.
Mas, mais uma vez, isso não altera em nada a realidade no terreno para os palestinianos. Nada saiu dessa reunião, não houve linhas vermelhas estabelecidas em termos do que Israel pode ou não pode fazer em Gaza. Mais uma vez, não foi exercida qualquer pressão sobre Israel. Reafirmar simplesmente o seu descontentamento com a estratégia de Netanyahu, neste momento, através de um encontro com um político da oposição não é suficiente para mudar a realidade no terreno para os palestinianos.
Transcrição da entrevista publicada a 7 de março pelo Democracy Now!. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net