Daniel Oliveira quer transformar o Bloco de Esquerda para corrigir a sua orientação e mudar a sua direcção. Escreve-o com uma sinceridade que deve ser elogiada. Nada temos contra o Daniel Oliveira, que tem direito à sua opinião; queremos, no entanto, rebater as propostas que apresenta porque elas implicam, do nosso ponto de vista, uma nova ideia da natureza do Bloco com a qual discordamos.
Há poucos dias (18 de Junho), o Daniel Oliveira publicou no jornal Expresso a sua proposta de plataforma comum, dirigida, no plano partidário, a socialistas, bloquistas e comunistas. A plataforma é apresentada de forma muito definitiva: «Antes de sabermos como pode a esquerda conquistar o poder temos de saber quem o quer fazer e para quê».
Vale a pena discutir as ideias expressas nesse texto. Cremos que uma discussão séria reclama, no entanto, que se junte política concreta às declarações ideológicas. Só assim poderemos perceber do que se está a falar. Esse é o exercício que tentaremos fazer.
1. A plataformapara juntar a esquerda para o governo
Comecemos pelo detalhe da plataforma, citando o texto de Daniel Oliveira, para que saibamos do que falamos:
«Primeiro: enquanto o Estado nacional for o espaço de legitimidade política a esquerda deve ser intransigente em relação a perdas de soberania. Todas as transferências de poder para instituições transnacionais só são aceitáveis com a garantia de igual controlo democrático àquele que foi conquistado nas democracias modernas.
Segundo: apesar deste princípio todos os combates políticos fundamentais passam por uma articulação entre o espaço nacional e o espaço europeu e global, sendo a via nacionalista um refúgio para a derrota.
Terceiro: o regresso do primado da política sobre a economia. O mercado é necessário mas não é democrático. Não é nele que reside o poder legítimo do povo.
Quarto: a defesa da autoridade democrática do Estado. O ataque populista e indiferenciado a todos os agentes políticos serve para reforçar os poderes não legitimados pelo voto. E acima de todos um poder económico apostado em enfraquecer a autoridade daqueles que o povo elege.
Quinto: a defesa da estabilidade na vida dos cidadãos. A liberdade individual e a democracia têm uma relação direta com a igualdade e a segurança no trabalho na saúde na educação e na velhice.
Sexto: redução drástica do poder das instituições financeiras. A transferência de recursos do sector produtivo das famílias e dos Estados para o jogo especulativo é um ataque à saúde das economias, ao pleno emprego, à democracia e à sustentabilidade do Estado social.
Sétimo: a defesa de um crescimento económico sustentado que tenha na boa gestão dos recursos naturais no equilíbrio ambiental e num planeamento racional do território condições primeiras para o desenvolvimento».
É esta a plataforma exigida a quem queira mostrar que quer conquistar o poder: «Antes de sabermos como pode a esquerda conquistar o poder temos de saber quem o quer fazer e para quê».
2. Ideologia sem política
Vejamos então a plataforma no seu detalhe. A parte mais importante é totalmente ideológica e abstracta. O que quer dizer que pode ser aceite por quem tenha políticas completamente antagónicas. Não incomoda ninguém, não serve a ninguém. Ou seja, é um jogo retórico sem qualquer clarificação. Veja-se o caso da Europa, que ocupa duas das sete propostas:
«Primeiro: enquanto o Estado nacional for o espaço de legitimidade política a esquerda deve ser intransigente em relação a perdas de soberania. Todas as transferências de poder para instituições transnacionais só são aceitáveis com a garantia de igual controlo democrático àquele que foi conquistado nas democracias modernas.
Segundo: apesar deste princípio todos os combates políticos fundamentais passam por uma articulação entre o espaço nacional e o espaço europeu e global, sendo a via nacionalista um refúgio para a derrota».
O que quer isto dizer? Tudo e o seu contrário. O texto começa bem: não pode haver transferência de soberania sem devolução democrática. Portanto, presume-se, não se pode aceitar o fim da soberania cambial (o euro) sem controlo democrático do BCE. Não se pode aceitar os poderes reforçados do directório (Tratado de Lisboa) sem democracia cidadã na União Europeia. Certo. Mas logo a seguir escreve-se que tem de haver uma «articulação entre o espaço nacional e o espaço europeu». Que articulação? Nem uma palavra. No entanto, essa articulação existe: chama-se BCE e Comissão Europeia, com os seus poderes reforçados. Serve? Não serve? Nem uma palavra. A plataforma é o silêncio e, portanto, pode ser apoiada por quem impõe uma Europa autoritária (como quer o PS que impediu o referendo europeu), como por quem queira uma Europa social com democracia cidadã.
Nos pontos seguintes a plataforma vai pelo mesmo caminho. Veja-se os terceiro e quarto pontos:
«Terceiro: o regresso do primado da política sobre a economia. O mercado é necessário mas não é democrático. Não é nele que reside o poder legítimo do povo.
Quarto: a defesa da autoridade democrática do Estado. O ataque populista e indiferenciado a todos os agentes políticos serve para reforçar os poderes não legitimados pelo voto. E acima de todos um poder económico apostado em enfraquecer a autoridade daqueles que o povo elege».
O «primado da política sobre economia» quer dizer o quê? Desçamos ao concreto. Pode ser por impostos progressivos e por tributação do capital, imposto sobre grandes fortunas e transparência das contas bancárias. É isso que o autor propõe? Imagina-se que pode ser; isso é pelo menos o que defende o Bloco de Esquerda. Mas essa proposta tem um pequeno problema: o PS não a aceita. E portanto a plataforma fica coxa. Solução: em vez de política concreta (que é a de um governo) a plataforma fica-se por boas intenções e todas e todos sabemos que as boas intenções tendem a não incomodar ninguém.
Contra o populismo, diz o quarto ponto. Completamente de acordo. No entanto, é preciso concretizar a parangona em proposta política. Porém, nada se diz sobre a proposta populista de nova lei eleitoral, que o PS apresenta agora para recuperar os círculos Daniel Campelo. Nada, nem uma palavra. A política concreta é aquela que incomoda e essa, cremos, a bem da clarificação, não pode ser evitada.
A plataforma segue no mesmo tom:
«Quinto: a defesa da estabilidade na vida dos cidadãos. A liberdade individual e a democracia têm uma relação direta com a igualdade e a segurança no trabalho, na saúde, na educação e na velhice».
Novamente de acordo. Mas porquê o silêncio sobre o Serviço Nacional de Saúde? Porque o PS entregou os hospitais públicos ao BES e Grupo Mello. E sobre a segurança social? Não se pode também concretizar porque o PS comprometeu-se com a troika a baixar a TSU.
«Sexto: redução drástica do poder das instituições financeiras. A transferência de recursos do sector produtivo, das famílias e dos Estados para o jogo especulativo é um ataque às poupanças, ao pleno emprego, à democracia e à sustentabilidade do Estado social».
Certíssimo, novamente. Mas como se controla a especulação? Com controlo dos fluxos de capital? Mas o PS não deixa. Com tributação à Tobin? O PS nem quer ouvir falar. Com o fim dos offshores? Mas o PS protege o offshore da Madeira como se fosse doutrina de fé. Acabando com o abuso das PPP? Mas não foi o PS que as fez? Criar emprego, mas como? Com investimento público? Não, o PS assinou que não haveria investimento público.
E finalmente:
«Sétimo: a defesa de um crescimento económico sustentado que tenha na boa gestão dos recursos naturais, no equilíbrio ambiental e num planeamento racional do território condições primeiras para o desenvolvimento».
Boa gestão, planeamento racional, tudo claro. O problema é que nesta plataforma não há nenhuma política concreta. Apresentar esta plataforma como clarificadora transforma-se assim num puro jogo retórico. As propostas são boas e interessantes, mas não concretizando ficam reduzidas ao espaço das boas intenções e da fantasia. São como as aventuras de Flash Gordon no planeta Mongo: são bonitas, bem apresentadas, mas pura fantasia. Não dizem nada a quem vive na Terra, com os problemas concretos da Terra, com a economia da Terra, com a sociedade da Terra. Se voltássemos ao planeta Portugal, então seria tempo para o que é preciso: política de propostas concretas e opções.
O problema é que se houvesse política concreta na plataforma ela excluiria o PS.
3. Mas porque é que a plataformase esqueceu da troika?
Já deverão ter reparado que o principal problema da plataforma é ter-se esquecido da troika e fazê-lo é dizer-nos que a plataforma é alheia à política que afecta a nossa vida concreta. Sobre a alteração da lei laboral para facilitar despedimentos? Nada. Sobre a precarização do contrato dos e das jovens? Nada. Sobre a redução dos salários? Nada. Sobre a redução de pensões? Nada. Sobre o aumento dos impostos? Nada. Sobre as privatizações? Nada. Nem uma palavra, pois uma única palavra excluiria o único PS que existe.
O que define a política portuguesa agora, em 2012, em 2013 e muito depois disso chama-se memorando com a troika, extorsão financeira, rendas garantidas e desemprego máximo. Infelizmente, esta plataforma (que quer definir «quem quer fazer e para quê») esqueceu-se de mencionar o pequeno detalhe do acordo que define o governo nesta era dos credores. Esse novo regime é um acordo de governo escrito pelo PS e assinado pelo PSD e CDS. É claro, pode haver quem tenha a ingenuidade de propor, à esquerda, salvar a alma do PS. No entanto, essa salvação só poderá concretizar-se se o PS quiser rasgar o seu acordo com a troika. Caso contrário, ou há acordo de bancarrota ou se recusa a bancarrota.
Todos os governos imediatos serão governos da troika. Um governo de esquerda só existirá quando houver vontade popular de ruptura com a troika, para governar sem a troika e contra a troika. Para isso, a esquerda precisa de votos e precisa de luta social. Para ter votos e para construir a luta social é preciso vir ao planeta Portugal e apresentar respostas concretas, propostas mobilizadoras, vontade unitária e acção convergente. O que certamente não serve a luta da esquerda é fugir à responsabilidade de palavras claras. Pode-se ir para o governo por muitos caminhos. Mas, se for um governo de esquerda, não deixará a esquerda pelo caminho, nem abandonará o compromisso com o mundo do trabalho e a luta pelo socialismo.
Adriano Campos, Andrea Peniche, Cristina Andrade, Ricardo Sá Ferreira