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Como as claques brasileiras estão na frente da luta antifascista

Das Jornadas de Junho de 2013 ao antagonismo ao processo neoliberal de “arenização” dos estádios e à ascensão do bolsonarismo, as claques antifascistas proliferam no Brasil. Estão na linha de frente da luta pela democracia. As suas práticas e cultura têm muito a ensinar à tradicional militância progressista. Por Micael Zaramella.
Movimento Somos Pela Democracia. Foto de Danilo Fernandes/Twitter.
Movimento Somos Pela Democracia. Foto de Danilo Fernandes/Twitter.

Ao contrário do que frequentemente se afirma, futebol e política entrelaçam os seus caminhos na sociedade brasileira há tempos. Enquanto componentes fundamentais da sociabilidade e da cultura coletiva de diferentes segmentos da população, não haveria nenhuma razão para estranharmos estes cruzamentos. Desde que o desporto se consolidou como um amplo campo de interações, anseios e empenhos coletivos, constituindo-se a partir de práticas associativas, a sua politização tornou-se inevitável.

Durante todo o século XX, a expansão do futebol brasileiro deu-se em permanente intersecção com os domínios expressamente políticos da nossa sociedade. Aspetos deste cruzamento estão presentes nas trajetórias dos diversos clubes, ainda que a ênfase das suas narrativas históricas oficiais procure, muitas vezes, evitá-los. Esta também é, afinal, uma escolha de teor político, que no âmbito futebolístico frequentemente opta por desviar dos dissensos para consolidar unidades identitárias: se na arquibancada as diferenças e as suas tensões são sobrepostas pelo referencial comum dos adeptos pela equipa da sua preferência, muitas vezes acredita-se justamente que o ideal seja não tumultuar a pretensa harmonia deste espaço uno com as divergências que habitam o domínio espinhoso das discussões políticas.

No entanto, diante da escalada de retóricas e atos antidemocráticos nos últimos anos – protagonizados pelo bolsonarismo nas suas formas institucionais (ocupando o poder) e militantes (ocupando o espaço público) –, o pretenso distanciamento entre as esferas futebolística e política vem sendo abertamente contestado (e progressivamente dissolvido) pela multiplicação de iniciativas de adeptos de confronto com imaginários e práticas de teor golpista.

Nos últimos anos, as atividades realizadas por coletivos de adeptos e adeptas antifascistas, a presença das cores e símbolos de diversos clubes em manifestações do campo progressista, e o protagonismo das claques organizadas em eventos atravessados por significados políticos (como a dissolução de bloqueios golpistas realizados em estradas), ganharam a atenção de analistas políticos até então desinteressados por futebol, ao mesmo tempo que estimularam discussões entre adeptos sobre a pertinência possível da sua politização.

O surgimento dos coletivos antifascistas

Se a luta política das claques se tornou tema quente no momento, entretanto, cabe pontuar que o surgimento deste campo explicitamente politizado de agrupamentos de adeptos é anterior aos acontecimentos mais recentes: conforme já mapeado por investigadores como o sociólogo Vitor Gomes, pelo menos desde 2013 vislumbra-se a proliferação de coletivos auto-intitulados “antifascistas”, formados por adeptos de diversos clubes em várias partes do país. O surgimento de alguns destes coletivos remete, inclusive, a momentos anteriores, como a torcida Ultras Resistência Coral, do Ferroviário Atlético Clube, criada em 2004 em Fortaleza e considerada a primeira torcida antifascista do Brasil.

A multiplicação do fenómeno na década de 2010, em particular, pode ser associada a transformações significativas ocorridas na esfera das formas de organização e militância política: especialmente a partir das chamadas Jornadas de Junho de 2013 vemos a proliferação de coletivos formados por adeptos antifascistas, que inclusive se organizavam e atuavam utilizando as ferramentas digitais (especialmente redes sociais) de forma similar àquela dos militantes envolvidos na organização dos protestos contra o aumento das tarifas do transporte público.

Conforme assinalado por observadores políticos da época, o uso de redes como Facebook e Twitter estava a deslocar-se de um sentido meramente informativo ou descritivo dos eventos políticos ocorridos fora do ambiente virtual, consolidando-se progressivamente enquanto plataformas de debate e construção política. Ao mesmo tempo, o uso destas tecnologias enquanto espaços de difusão e comunicação ganhava força com a cobertura alternativa das manifestações, cuja narrativa dos acontecimentos diferia radicalmente dos meios de comunicação social tradicionais e alimentava-se de farta documentação audiovisual produzida pelos próprios participantes dos atos. Esta forma de protagonismo político, aliado aos demais elementos inaugurados pela politização dos espaços virtuais, manifestar-se-ia com intensidade na atuação dos primeiros coletivos de adeptos antifascistas surgidos neste contexto.

Simultaneamente, o surgimento em ampla escala destes coletivos não pode ser dissociada, também, das condições que se expressavam no campo específico do futebol, então atravessado pela agressiva investida de modelos de gestão neoliberal expressados no processo de “arenização” dos estádios brasileiros (ocorrida, sobretudo, na esteira dos preparativos para o Campeonato do Mundo de 2014), na elitização promovida pelos significativos aumentos nos preços de ingressos e nas propostas de transformação dos clubes em “Sociedades Anónimas do Futebol” sob o discurso da eficiência e profissionalismo empresarial.

Não à toa, a máxima traduzida pela atitude “Contra o futebol moderno” – adotada desde fins da década de 1990 pelos grupos de adeptos ultras na Europa – também passava a ser incorporada naquele contexto pela discursividade das claques organizadas, cujas ações contra as diversas expressões de um “futebol negócio” se multiplicavam juntando-se às demais formas de protesto já tradicionalmente voltadas para os dirigentes dos clubes. No âmbito dos coletivos antifascistas que surgiam, a luta contra a investida neoliberal apresentava-se nos termos próprios de uma disputa classista do futebol, procurando realizar ações de agitação e propaganda articuladas à incidência direta dessa investida no quotidiano torcedor, progressivamente atravessado por exclusões.

Anti-bolsonarismo

No meu livro No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Autonomia Literária, 2022), discuto de forma mais aprofundada este contexto de formação dos coletivos e claques antifascistas, assim como a sua multiplicação vinculada ao campo progressista no cenário futebolístico brasileiro. Embora destaque especificamente a trajetória dos coletivos existentes entre adeptos e adeptas palmeirenses, na minha abordagem procuro demonstrar a relevância do trabalho político realizado por estes coletivos (junto dos adeptos dos seus clubes) ao insistir na urgência da discussão sobre questões como racismo, sexismo, LGBTfobia e outras formas diversas de discriminação no futebol, bem como a elitização do desporto a partir uma perspetiva classista. A esta insistência devemos o facto de que, hoje, parte destes temas atravessam os discursos dos comentaristas desportivos (ainda que com notável superficialidade), e se tornam objeto de alguma atenção das diversas esferas institucionais do circuito futebolístico, especialmente na realização de ações e campanhas pelos clubes e entidades.

Ao longo dos anos transcorridos desde o surgimento dos primeiros coletivos, percebe-se que a sua existência conjunta se caracterizou por uma certa irregularidade, visto que existiam agrupamentos mais mobilizadas que outros e alguns particularmente dedicados a ações de rua, ao passo que outros se empenhavam quase exclusivamente numa atuação nas redes sociais. A acumulação de experiência política ao longo dos seus anos de existência, entretanto, resultou num inventário significativo de ações realizadas por estes coletivos, tanto no âmbito da sua organização e articulação – visível no esforço associativo de iniciativas como a Frente Nacional Futebol Popular (FNFP), as Torcidas Antifascistas Unidas (TAU) e a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) – quanto na sua atuação junto a outras organizações, como movimentos pela habitação, partidos políticos, coletivos antifascistas e outras entidades de luta situadas politicamente à esquerda.

Em 2018, por ocasião da eleição presidencial que elegeria Bolsonaro como presidente da República, verificou-se uma proliferação de coletivos antifascistas de adeptos, tanto nas redes sociais quanto nas manifestações que tomaram as ruas em posicionamento contrário à possível eleição de um candidato com posições extremamente conservadoras. Ainda que parte destes coletivos surgidos na ocasião não tenha mantido uma regularidade nas suas atividades políticas após o contexto eleitoral, a sua proliferação naquele momento reforçou a intensidade das trocas entre práticas de adeptos e o domínio da política.

No mesmo contexto, claques organizadas e movimentos formados por adeptos promoveram ações e campanhas relevantes em oposição à candidatura bolsonarista: são exemplos o texto “Gavião não vota em Bolsonaro”, assinado por Rodrigo Gonzalez Tapia (o “Digão”, então presidente da torcida organizada corintiana Gaviões da Fiel); o manifesto “Palmeirenses contra o fascismo”, assinado por coletivos como Palmeiras Antifascista, Porcomunas e Palmeiras Livre, além de nomes como os dos músicos Simoninha, Maria Gadú e João Gordo, o ator Marco Ricca, o neurocientista Miguel Nicolelis, e conselheiros da agremiação; e notas desaconselhando o voto dos seus associados em Bolsonaro, publicadas por claques organizadas como Os Imbatíveis (do Vitória), a Torcida Jovem do Sport e a Torcida Jovem do Santos.

Após a eleição de Bolsonaro e ao longo de seu governo, o crescimento de uma discursividade antidemocrática cada vez mais organizada – na forma de uma militância disposta a ocupar as ruas com símbolos tradicionais da extrema-direita – deflagrou a urgência de uma disputa em várias frentes, incluindo o espaço público. Se o potencial de mobilização em torno de políticas conservadoras já se expressara anteriormente, com as manifestações pelo golpe da destituição de Dilma Rousseff em 2015 e 2016 abrigando uma quantidade alarmante de símbolos e palavras de ordem associadas à extrema-direita, um quadro evidente destas forças políticas tornou-se explícito durante a gestão bolsonarista no estado de mobilização permanente da sua militância e base de apoio mais orgânica.

Um momento particularmente crítico da ascensão destas mobilizações expressou-se entre abril e maio de 2020, durante o contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil: diante de um cenário de indecisão das forças de esquerda a respeito das formas de agir politicamente no contexto pandémico, a realização contínua de atos pela militância bolsonarista, carregados de teor antidemocrático (e, na ocasião, negacionismo científico perante a pandemia), foi confrontada com firmeza por mobilizações protagonizadas por adeptos organizados de diversos clubes que saíram às ruas.

A primeira destas manifestações, organizada em São Paulo no dia 9 de maio por adeptos corintianos que se reuniram com faixas em defesa da democracia, intimidou bolsonaristas que se tinham vindo a agrupar recorrentemente na Avenida Paulista. Nos finais de semana seguintes, novas mobilizações ganharam força, inclusive noutras cidades: em Porto Alegre, componentes dos coletivos Inter Antifascista e Grêmio Antifascista marcharam lado a lado, assim como em Belo Horizonte, onde integrantes da Cruzeiro Antifa caminharam junto à torcida organizada antifascista Resistência Alvinegra, do Atlético Mineiro.

Em São Paulo, manifestações cada vez mais numerosas e incisivas contaram com a participação de adeptos organizados do Palmeiras e Corinthians (clubes caracterizados por acirrada rivalidade) que, em blocos separados, protagonizaram conjuntamente a ocupação das ruas em defesa da democracia. Entre os membros das claques organizadas palmeirenses deu-se a criação do Movimento Palestra Sinistro, cujo nome procurava referenciar tanto o seu posicionamento político (a palavra “sinistra” significa “esquerda” em italiano) quanto à sua disposição ao enfrentamento direto contra as movimentações neofascistas e de extrema-direita que estavam a ocupar as ruas. Embora os integrantes de coletivos políticos palmeirenses já viessem participando dos atos em defesa da democracia realizados em maio, foi no dia 14 de junho que o Movimento Palestra Sinistro saiu às ruas de forma unificada, passando a protagonizar, desde então, a composição dos blocos de adeptos palmeirenses presentes em manifestações contra o governo Bolsonaro.

Entre as primeiras manifestações protagonizadas por adeptos corintianos em meados de maio e o início do mês de junho, coordenou-se a criação do movimento “Somos Democracia”, que passou a articular a organização de manifestações cada vez mais amplas junto a outros movimentos sociais e organizações de esquerda – como o movimento negro, à época mobilizado pela urgência da luta antirracista deflagrada pelo assassinato de George Floyd por forças policiais nos Estados Unidos.

Apresentando-se publicamente como um movimento composto por integrantes das diversas torcidas organizadas, o Somos Democracia contou inicialmente com o numeroso contingente de membros das claques organizadas corintianas, especialmente na medida em que nasceu como um desdobramento das suas mobilizações iniciais, tendo como um dos seus principais coordenadores Danilo Pássaro, membro dos Gaviões da Fiel. Atuando em proximidade à Anatorg na construção dos seus atos, o Somos Democracia procurou expandir a sua atuação para além da capital paulista, estimulando a realização de manifestações noutros estados e organizando um ato em Brasília em junho.

Reassumindo a linha de frente contra os golpistas

A partir destas manifestações, ocorridas num momento crítico da pandemia e motivadas pela falta de ação das forças políticas de oposição tradicionais, a entrada em cena das claques e coletivos políticos enquanto agentes ativos na disputa política das ruas consolidou-se: durante os anos de 2021 e 2022, a presença de blocos de adeptos ostentando faixas e bandeiras carregadas de símbolos referentes ao seu posicionamento progressista, junto com outros componentes estéticos da cultura de arquibancada – sinalizadores, rojões, cânticos –, continuou a protagonizar a composição de manifestações convocadas contra o governo Bolsonaro e em defesa da democracia brasileira.

Simultaneamente, os coletivos e movimentos de adeptos também continuaram a realizar ações políticas voltadas a seu próprio campo, concebendo a politização do adepto comum e organizado como uma tarefa fundamental naquele contexto: em última instância, não se tratava meramente de instrumentalizar o futebol no amplo campo das lutas democráticas, mas de enredar genuinamente os domínios destes campos.

Após a realização da eleição presidencial em outubro de 2022 e a apertada vitória conquistada por Lula, novas ações ganharam a atenção da opinião pública na imprensa e nas redes sociais, especialmente a partir do momento em que uma disposição mais radicalizada de militantes de extrema-direita passou a realizar bloqueios em estrada a protestar contra o resultado eleitoral. Diante de tal cenário, caravanas de adeptos organizados viajando para acompanhar as suas equipas em jogos fora de casa – prática comum na cultura dos adeptos – passaram a desfazer os bloqueios, assumindo novamente a linha de frente do confronto direto face às manifestações golpistas.

A “tropa dos fura bloqueio”, como se identificaram os torcedores da Galoucura (claque organizada do Atlético Mineiro) ao inaugurar a dissolução dos fechamentos de estradas, cresceu e espalhou-se com energia entre as caravanas de outras claques organizadas, estimulando também a realização de ações similares por outros movimentos e organizações – como a Ação Antifascista São Paulo, que desmontou um bloqueio que ocorria na Marginal Tietê, em São Paulo, junto com integrantes de claques e outros coletivos antifascistas.

Assim, se as torcidas mais uma vez estiveram nas ruas no dia 9 de janeiro, em resposta à mobilização golpista ocorrida em Brasília no dia anterior, a sua presença é expressão de um largo processo de politização dos ambientes futebolísticos e torcedores. Abraçar abertamente a junção dos seus domínios com os debates políticos só tem a enriquecer as práticas dos adeptos, hoje capazes de promover algumas das mais significativas mobilizações sociais no nosso país. Ao mesmo tempo, o campo tradicional da militância progressista também tem muito a ganhar com as práticas e saberes próprios da cultura dos adeptos, na elaboração de formas combativas, autónomas e criativas de consolidar urgentes modos de existência antifascistas.


Micael Zaramella é historiador, professor e adepto do Palmeiras. Mestre em História Social, é autor do livro No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Autonomia Literária, 2022).

Texto publicado originalmente na Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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