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Ceuta e a Fronteira Sul

Para o rico dum país rico, a fronteira não é mais do que uma formalidade superável com a simples exibição dum passaporte. Para o pobre dum país pobre, pelo contrário, a fronteira aparece como um obstáculo no qual pode perder a vida. Por Gerardo Pisarello, no portal Sin Permiso.
Em vez da Cruz Vermelha, como nesta foto de 2010, hoje os imigrantes que ultrapassam as barreiras de acesso a Ceuta com balas de borracha da Guardia Civil. Foto Asier Solana Bermejo/Flickr

Há pouco mais de cinco anos, um grupo de ativistas e investigadores publicou na editorial Vírus um livro demolidor, intitulado Fronteira Sul. O trabalho começava por recordar algo elementar. Que as fronteiras não são instituições naturais nem politicamente neutrais. Que são criações convencionais que variam no tempo. E que não afetam a todos por igual.

Para o rico dum país rico, a fronteira não é mais do que uma formalidade superável com a simples exibição dum passaporte. Para o pobre dum país pobre, pelo contrário, a fronteira aparece como um obstáculo no qual pode perder a vida. Ou como uma experiência, em todo caso, que o acompanhará como a sua sombra, que determinará a sua vida quotidiana e a sua relação com a lei, os tribunais, a administração e a polícia.

Quando a União Europeia procedeu à sua ampliação, ou fez sob a promessa da abertura das fronteiras interiores, essa abertura nunca foi plena. E teve lugar em troca duma contrapartida: a bunquerização das fronteiras exteriores. A livre circulação de capitais e de mercadorias exigia travar o passo às multidões empobrecidas do Sul e do Este. Isso, ou deixá-las entrar a conta-gotas, adaptando os fluxos migratórios às necessidades de um mercado de trabalho precarizado e discriminatório indispensável para manter a "prosperidade" do Norte.

A União Europeia e os Estados guardiões da fronteira sul - Itália, Espanha, Grécia - tiveram um papel central nesta política. Para isso, desenvolveram legislações de controlo cada vez mais autoritárias e repressivas com as exigências garantistas mais elementares. Essas medidas não só afetam as fronteiras exteriores. Criam, na realidade, múltiplas fronteiras. Espaços de restrição de direitos, dentro e fora dos Estados, que aos poucos operam de maneira opaca, sem controlo, e inclusivamente como espaços de morte.

A primeira fronteira situa-se nos países que colidem com a União Europeia. Em troca da ajuda para o desenvolvimento e doutras chantagens, os seus governos encarregam-se de manter a raia aos que queiram entrar. Muitas dessas atuações constituem uma violação flagrante do artigo 13º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconhece o direito de toda a pessoa a migrar, a sair do seu país.

Quando esta valia não funciona, entram outras em cena: a colaboração policial e militar, através de agências como a Frontex, a militarização dos postos fronteriços ou o recurso a "retornos", como os previstos na chamada Diretiva da Vergonha, de 2008. E depois há, naturalmente, uma fronteira menos visível, mas igualmente incisiva: a que constitui as identificações e ações policiais nas ruas, entradas do metro, estações de comboio ou de autocarro, ou a presença sempre ameaçante dos infames Centros de Internamento de Estrangeiros (denunciados de maneira implacável por Patricia Orejudo neste blog).

É dentro deste contexto de degradação anti-garantista que deveriam ser lidos os factos de Ceuta do passado dia 6 de fevereiro. Factos que não constituem um fenómeno isolado, mas a expressão de um padrão mais amplo do abuso do poder e da negação de direitos básicos. Como está a ficar evidente, as ordens da Guarda Civil ocultaram os disparos com balas de borracha realizados na praia contra as pessoas migrantes. Esses disparos, de todo desproporcionados, foram negados pelo director da Guarda Civil, Arsenio Fernández de Mesa. E poderiam ter provocado a morte de 15 pessoas afogadas em águas marroquinas fronteriças com águas espanholas. Sendo assim, as atuações poderiam ser constitutivas, entre outros, de delitos de homicídio e da negação de auxílio, como se apontou já no debate decorrido no Congresso.

O piedoso e crente ministro do Interior, Jorge Fernández Díaz, justificou que se dispararam balas de borracha, já que não se apontou diretamente para as vítimas. Não só isso: decidiu passar à ofensiva anunciando uma contrarreforma da Lei de Estrangeiros que facilite as "expulsões a quente". Uma medida assim reduziria a papel mais molhado a Constituição e os tratados internacionais. Alguns membros do seu Partido foram mais longe. O presidente de Melilla, Juan José Imbroda, sugeriu que quem criticava a actuação da Guarda Civil aspirava, no fundo, a que os migrantes fossem acolhidos por "hospedeiras e comités de receção".

Nesta altura, a indecência destes comentários não deveria surpreender. Quando Fernández Díaz anunciou o seu projeto de Lei da Segurança Cidadã, reconheceu que um dos seus principais inspiradores tinha sido o secretário de Estado da Segurança, Francisco Martínez. Martínez foi um dos poucos membros do Governo que defendeu sem ambiguidades as redes anti-migrantes nas valas de Ceuta e Melilla. Portanto, não seria estranho que estivesse por detrás dos preceitos do anteprojeto que prevê sanções de expulsão do território espanhol ou de falta de acesso aos vistos de residência e de trabalho aos estrangeiros que cometam infrações muito graves ou graves (como poderia ser a participação numa ação para evitar um despejo).

Discutir sobre Ceuta, sobre Lampedusa, é discutir sobre a Fronteira Sul. O melhor, sobre os múltiplos regimes de fronteiras que, de maneira secreta e arbitrária, se desenvolvem na Europa, oferecendo proibições, controlo e mão dura, só para os mais vulneráveis. Se os factos de 6 de fevereiro ficarem impunes, o precedente será nefasto. Levantar-se-ão novos muros, autorizar-se-ão novos tiros e a corrupção moral acabará por nos envenenar a todos. Para que isso não ocorra, devem ser denunciados e sancionados de maneira exemplar. Em nome das vítimas, dos direitos de todos e dessa "outra Europa" que só será credível se conseguir sacudir, com algo mais que declarações, o vergonhoso lastro do colonialismo, do racismo e da xenofobia.

 


*Gerardo Pisarello é jornalista.

Publicado em: http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=6716

Tradução: António José André

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