Está aqui

Catarina Martins: "Preferimos soluções a promessas"

Na intervenção de encerramento do debate orçamental, a coordenadora do Bloco afirmou que as razões da rejeição pelo Governo das nove propostas do Bloco continuam a ser “um segredo bem guardado” por António Costa.
Catarina Martins no debate de encerramento do OE´22 - Foto de Mário Cruz | Lusa

No encerramento do debate parlamentar na generalidade sobre o Orçamento de Estado para 2022, Catarina Martins começou por referir que “o Governo passou dois dias a repetir que «este é o Orçamento mais à esquerda de sempre». A frase é tão oca que até a direita a repetiu”.

Mas a coordenadora do Bloco apresentou vários argumentos que contrariam aquela afirmação: a proposta de Orçamento “mantém um investimento anémico” e não trava a deterioração do SNS nem a perda de poder de compra para a generalidade dos salários e pensões; a promessa de investimento é realizar o que já tem vindo a ser orçamentado em anos anteriores, no entanto nem chega a um terço do que ficou por executar em 2016; repetem-se projetos com taxa de execução mínimas ou nulas como os hospitais do Seixal, Setúbal e Évora, mas deixam-se cair projetos que constavam em orçamento anteriores como os hospitais de Beja, Algarve e Barcelos.

Catarina Martins também referiu a situação “caricata” da promessa de execução em 2022 de milhões de euros para equipar um hospital, o de Lisboa Oriental, que ainda nem sequer deu início à sua construção.

Para a coordenadora bloquista, “o aumento de 0,9% (para a Função Pública) é irrisório face à perda acumulada de 10% do poder de compra, mas não só. É irrisório face às possibilidades do Orçamento: o valor líquido do aumento proposto aos funcionários públicos - 128 milhões de euros - é pouco superior ao imposto de selo que a EDP deixou de pagar pela venda da concessão de seis barragens em dezembro de 2020”.

“Estas escolhas não têm nada de esquerda, nem são resposta aos problemas do país. E são inexplicáveis, porque o momento devia mesmo ser de mudança”, vincou Catarina Martins.

A coordenadora do Bloco abordou as regras do Pacto de Estabilidade, já que “estão suspensas e os diversos governos apresentam orçamentos de recuperação e investimento”. Mas o Governo português “apresenta um orçamento de contenção, desperdiçando o momento de alívio da pressão europeia e a maioria que existe no Parlamento para medidas duradouras para a economia e para a sociedade”, afirmou.

Razões da rejeição das 9 propostas do Bloco são um “segredo bem guardado pelo primeiro-ministro”

O primeiro-ministro tinha invocado um documento onde o Governo justificava, ponto por ponto, o motivo da rejeição das 9 propostas do Bloco, no entanto Catarina Martins alertou que “o documento não circulou, mas tive a oportunidade de o ler e é com desilusão que constato que as razões da rejeição continuam a ser um segredo bem guardado pelo senhor primeiro-ministro”.

Na área da saúde, o Governo também não conseguiu justificar a rejeição às propostas do Bloco. Catarina Martins questionou o primeiro-ministro se “pensou mesmo que podia convencer-nos de que a solução para a falta de profissionais é um pagamento a quem faça o equivalente a três meses de trabalho extraordinário? Em vez de atrair mais gente para o SNS, a solução é sobrecarregar quem já está exausto com mais horas ainda?”.

Relativamente à lei laboral, o Governo diz que “a lei laboral não deve ser negociada no quadro do Orçamento do Estado. Mas fora do Orçamento também não, porque aí o PS usa sempre o seu voto para impedir a retirada da troika das leis do trabalho”, disse Catarina Martins. “Preferimos soluções a promessas”, contrapôs.

Enquanto os trabalhadores da cultura “olham incrédulos para um orçamento sem dotação”, os reformados das pedreiras continuam com os cortes, os trabalhadores com deficiência e os trabalhadores por turnos continuam à espera de sucessivos estudos. “Essas pessoas - que não são números - são a nossa obrigação e o nosso mandato”, referiu.

“É preciso um caminho de compromisso. Foi assim que fizemos na geringonça, fizemos um contrato para quatro anos, um acordo escrito, que o primeiro-ministro dispensou nesta legislatura. Trabalhámos durante meses sobre cada orçamento, cumpriu-se o que se prometeu, nada do que se viu agora”, afirmou Catarina Martins.

A coordenadora do Bloco considera que “a geringonça foi morta pela obsessão pela maioria absoluta, pela recusa das finanças de dar ao SNS carreiras profissionais, condições de contratação e investimentos planeados, pela intransigência que mantém a troika nas leis laborais”. Mas acrescentou que “a geringonça não foi tempo perdido, foi tempo ganho”. E prometeu que o Bloco continuará a lutar “por uma maioria para uma saúde digna para toda a gente, por uma democracia que protege a segurança social, por salários e empregos sem precariedade”.



Leia aqui o discurso de Catarina Martins na íntegra: 

Senhor Presidente

Senhor Primeiro-Ministro

Senhoras e senhores membros do governo

Senhoras e senhores deputados

O governo passou dois dias a repetir que “Este é o Orçamento mais à esquerda de sempre”. A frase é tão oca que até a direita a repetiu. E não resiste aos factos:

A proposta de Orçamento, mesmo adicionada dos anúncios dos últimos dias, mantém um investimento anémico, não trava a deterioração do SNS nem a perda de poder de compra para a generalidade dos salários e pensões.

A promessa de investimento é fazer agora o que já estava previsto em orçamentos anteriores, mas o aumento não chega sequer a um terço do que ficou por executar desde 2016. A saúde é o setor com mais anúncios grandiosos. Repetem-se para 2022 promessas de anos anteriores, com taxas de execução nulas ou muito baixas, como, por exemplo, as dos hospitais do Seixal, Setúbal e Évora.

Enquanto são esquecidos projetos que constaram em orçamentos anteriores, como Barcelos, Algarve e Beja, há o empolamento de investimentos que já todos sabemos que não vão acontecer. O mais caricato será a promessa da execução em 2022 de milhões de euros para equipar um hospital - Lisboa Oriental - cuja construção nem sequer se iniciou.

As pensões mais baixas continuarão em valores inferiores ao limiar de pobreza, enquanto as restantes perdem poder de compra, sob uma inflação que será bem maior do que a que o governo reconhece: em Setembro já ia em 1,48% e os preços, desde logo da energia, continuam a aumentar.

Aos trabalhadores do Estado também se pede que continuem em perda. O aumento de 0,9% é irrisório face à perda acumulada de 10% do poder de compra, mas não só. É irrisório face às possibilidades do orçamento: o valor líquido do aumento proposto aos funcionários públicos - 128 milhões de euros - é pouco superior ao imposto de selo que a EDP deixou de pagar pela venda da concessão de seis barragens em dezembro de 2020.

Estas escolhas não têm nada de esquerda, nem são resposta aos problemas do país. E são inexplicáveis, porque o momento devia mesmo ser de mudança.

Na Europa, as regras do Pacto de Estabilidade estão suspensas e os diversos governos apresentam orçamentos de recuperação e investimento. Em contra-corrente, o governo português apresenta um orçamento de contenção, desperdiçando o momento de alívio da pressão europeia e a maioria que existe no parlamento para medidas duradouras para a economia e para a sociedade. A bazuca, base de tantos anúncios, não tem correspondência no Orçamento.

Depois de meses de negociações, continua incompreensível este alheamento do governo. Dizer que o Bloco é intransigente é tão inútil e pouco credível como dizer que os profissionais do SNS estão a atacar o governo quando alertam para a situação insustentável em que se encontram.

O governo não trouxe nada de novo a este debate. O primeiro-ministro limitou-se a invocar um certo documento do governo onde estariam finalmente explicadas as razões da rejeição de cada uma das nove propostas do Bloco. O documento não circulou, mas tive a oportunidade de o ler e é com desilusão que constato que as razões da rejeição continuam a ser um segredo bem guardado pelo senhor primeiro-ministro.

Qual é o perigo de voltar à regra que durou um século sobre o pagamento das horas extra? Nenhuma resposta. Ou de aceitarmos a proposta do próprio PS para a indemnização por despedimento? Silêncio. Ou o limiar dos 25 dias de férias por ano? O governo não tem resposta que possa dar. Só num caso o governo se lançou numa justificação: tocar no fator de sustentabilidade é matar o sistema de pensões. Ora, nós já acabamos com o fator de sustentabilidade para quase todos os casos. Restam poucos casos e a enorme injustiça de uma pessoa com 64 anos e 43 anos de carreira contributiva ter um corte maior na pensão do que uma pessoa com 63 anos e os mesmos 43 anos de descontos.

Na saúde, o governo também não justifica a recusa das propostas do Bloco. Pior: as suas contrapropostas são um recuo face ao que prevê a Lei de Bases da Saúde que fizemos em conjunto.

Mas pergunto ao senhor primeiro-ministro:

Pensou mesmo que podia convencer-nos de que a solução para a falta de profissionais é um pagamento a quem faça o equivalente a três meses adicionais de trabalho extraordinário? Em vez de atrair mais gente para o SNS, a solução é sobrecarregar quem já está exausto com mais horas ainda?

O governo não podia estar à espera que aceitássemos continuar a assistir à drenagem do SNS pelo privado quando já ultrapassámos um milhão de utentes sem médico de família. Sei que o PS não gosta de o ouvir, mas vou repetir: somos fiéis à proposta Arnaut-Semedo; as carreiras no SNS devem ser em exclusividade, bem pagas e com toda a responsabilidade que é cuidar de quem precisa.

Diz que a lei laboral não deve ser negociada no quadro do Orçamento do Estado. Mas fora do Orçamento também não, porque aí o PS usa sempre o seu voto para impedir a retirada da troika das leis do trabalho. Claro que é no quadro da aprovação do Orçamento que se cria as condições de viabilidade de um governo minoritário.

Tivesse o governo aceitado a proposta de Arnaut e Semedo para a exclusividade das profissões da saúde, tivesse concretizado que o próprio PS já defendeu para as pensões antecipadas ou para as indemnizações por despedimento e teria o acordo do Bloco.

Mas o primeiro-ministro não avança. Preferiu abrir uma crise política, rompeu todas as pontes, recusou todas as propostas e preferiu ontem voltar ao infeliz discurso da campanha autárquica, prometendo milhões para todo o lado, embalado para eleições antecipadas.

Eu sei que em orçamentos há promessas abundantes e dramalhões convenientes. Lembra-se do ano passado?

Se o pagamento ao Novo Banco fosse sujeito a verificação prévia, era uma bomba atómica. Onde é que está o deputado que disse que era uma bomba atómica? Onde está o ministro que disse que ia queixar-se ao Tribunal Constitucional e ao Supremo Tribunal Administrativo? Já ouvimos de tudo.

É por isso que preferimos soluções a promessas.

As cuidadoras informais já ouviram falar de milhões em 2020, em 2021, mas só foram usados menos de 2% das verbas. Os milhões esqueceram as pessoas.

Os trabalhadores da cultura olham incrédulos para um orçamento sem dotação para a proteção na intermitência e onde não cabem mais do que 0,25% para a Cultura, depois da promessa do primeiro-ministro que nesta legislatura se chegaria não a um, mas mesmo a 2% do orçamento para a cultura.

Os reformados das pedreiras continuam com os cortes nas pensões que o último orçamento garantia recalcular.

Os trabalhadores com deficiência, tal como quem trabalha por turnos ou em trabalho noturno, depois de sucessivos estudos prometidos, continuam sem nenhuma solução que antecipe a sua reforma.

O povo que trabalha ou recebe pensão, as pessoas que não são números, são tantas vezes esquecidas no meio de tantos milhões parados.

Essas pessoas - que não são números - são a nossa obrigação e o nosso mandato. Por isso, apresentámos apenas nove propostas essenciais, era o nosso ponto de partida. Houvesse um compromisso nessas matérias e cá estaríamos para trabalhar na especialidade em muitas outras questões.

Como ontem dissemos, haveria imenso que fazer:

continua a não ser aceitável perder mais de 700 milhões com benefícios fiscais para os reformados nórdicos, quando quem aqui trabalhou paga o seu IRS; continua a não ser aceitável que as rendas pagas aos gigantes da energia tornem exorbitante o preço da eletricidade para as famílias e empresas.

Só que é preciso um caminho de compromisso. Foi assim que fizemos a geringonça, fizemos um contrato para quatro anos, um acordo escrito, que o primeiro-ministro dispensou nesta legislatura. Trabalhámos durante meses sobre cada orçamento, cumpriu-se o que se prometeu, nada do que agora se viu.

A geringonça foi morta pela obsessão pela maioria absoluta, pela recusa das finanças de dar ao SNS carreiras profissionais, condições de contratação e investimentos planeados, pela intransigência que mantém a troika nas leis laborais.

Mas a geringonça não foi tempo perdido, foi tempo ganho. Fica por isso hoje uma certeza que quero repetir com clareza perante todo o país: lutaremos. Lutaremos por uma maioria para uma saúde digna para toda a gente, por uma democracia que protege a segurança social, por salários e empregos sem precariedade. Medidas de que o país precisa e que respondem pelas pessoas.

O Bloco de Esquerda foi sempre uma solução, defendeu soluções, está pronto para soluções e sabe que elas fazem o seu caminho. É este o nosso mandato, não faltaremos.

 

Termos relacionados Orçamento do Estado 2022, Política
(...)