Mais de 700.000 pessoas, incluindo pelo menos 364.000 crianças, estão agora deslocadas, em resultado do conflito em Cabo Delgado, em Moçambique. Pelo menos 2.909 pessoas morreram, incluindo 1.437 civis. Pelo menos 51 crianças, a maioria meninas, foram raptadas nos últimos 12 meses. Algumas estarão destinadas a satisfazer os desejos dos insurgentes, outras serão encaminhadas para o tráfico sexual internacional. Todos estes números pecarão por serem bastantes inferiores à realidade. É o que é possível apurar num contexto de incertezas e insegurança.
A organização não governamental (ONG) Save the Children e os seus parceiros tentam responder às necessidades no terreno no que respeita ao apoio às crianças deslocadas e às suas famílias. No âmbito da sua atividade, que garante programas de proteção infantil, incluindo a reunificação de famílias e saúde mental e apoio psicossocial, esta ONG tem-se deparado com crianças que mostram sinais de impactos traumáticos profundos como resultado do conflito.
Num artigo publicado esta semana, a Save the Children alerta que as crianças deslocadas pelo conflito em Cabo Delgado mostram sinais de forte stress mental e angústia, incluindo choro constante e perda da vontade de comer e brincar. “Algumas dessas crianças têm menos de 10 anos e testemunharam violências horríveis, incluindo o assassinato dos seus pais”, escreve a ONG.
A Save the Children explica que, em alguns casos documentados, “as crianças mudaram o seu comportamento várias vezes, tornando-se agressivas, retraídas ou dominadas por acessos de choro incontroláveis”.
No artigo são-nos apresentados casos concretos, como o de Clara, de seis anos, que passou quatro dias escondida no mato com a mãe, Mariana, de 25 anos, e o irmão mais novo, Pedro, de três anos, quando a sua aldeia foi atacada e o seu pai foi morto. Clara está zangada e triste, não brinca mais com outras crianças e tem dificuldade para comer. A casa de Mariana, Clara e Pedro foi queimada, não sobrou nada.
A mãe e o pai de Emerson, de oito anos, foram decapitados no conflito. A sua irmã ainda está desaparecida. Emerson e o seu irmão mais velho escaparam para um campo de trânsito e, posteriormente, a Save the Children reuniu-os com a avó Sofia, de 46 anos.
Sofia recorda: “Os pais de Emerson – a minha filha e o seu marido - foram decapitados (…) Os homens da nossa aldeia tiveram coragem suficiente para enterrar todos os corpos juntos. Só pudemos cavar as sepulturas com um metro de profundidade, porque estávamos com medo e tivemos que correr ”.
Adelia, de 55 anos, e o seu neto Milton, de nove anos. Foto de Sacha Myers / Save the Children.
A mãe de Celina, de oito anos, e de Milton, de nove anos, foi decapitada quando a sua aldeia foi atacada. O pai ainda está desaparecido. A ONG conseguiu reuni-los com a avó, Adelia, de 55 anos: “[O Milton] ficou dois dias a chorar, comigo a segurá-lo. Eu e o meu vizinho dissemos-lhe para parar de chorar. No final, ele parou de chorar. Não verá seus pais novamente. Às vezes, passa o tempo a pensar nos pais, porque tem idade suficiente [para entender o que aconteceu]. Ele tem problemas de saúde mental porque não consegue ver a mãe, só me consegue ver”, recorda.
Milton, de nove anos. Foto de Sacha Myers / Save the Children.
“Este conflito passou despercebido por tempo suficiente”
Chance Briggs, diretor nacional da Save the Children em Moçambique, refere que “os perpetradores da violência em Cabo Delgado estão a usar táticas abomináveis que aterrorizam as crianças”.
“Como pai, parte-me o coração pensar em como essas crianças devem estar a lutar para processar o impensável. Como uma organização que trabalha para proteger as crianças, a Save the Children está extremamente preocupada com o seu bem-estar e perspetiva de recuperação. Existem pelo menos 364.000 crianças deslocadas por este conflito. Na melhor das hipóteses, foram forçadas a fugir das suas casas e da sensação de segurança. Na pior das hipóteses, testemunharam horrores que nenhuma criança deveria ver”, frisa.
O responsável da Save the Children adianta ainda que “este conflito passou despercebido por tempo suficiente” e deixa um apelo: “Apelamos à comunidade de doadores para garantir que o financiamento para as necessidades das crianças seja priorizado. O Plano de Resposta Humanitária da comunidade internacional para Cabo Delgado é até agora financiado com apenas 13% e são urgentemente necessários fundos para proteção, saúde, educação, saúde mental e apoio psicossocial”.
“Todas as partes neste conflito devem garantir que as crianças nunca sejam alvos. Eles devem fazer o máximo para minimizar os danos aos civis, incluindo o fim dos ataques indiscriminados e desproporcionais contra crianças. Deve haver maior monitorização e denúncia dessas violações, inclusive através do mecanismo do Gabinete do Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para Crianças em Conflitos Armados, por forma a que os autores de violência contra crianças possam ser responsabilizados”, remata.
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