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Brasil polarizado perante um dilema político

Como explicar este resultado dramático para o povo brasileiro? Eis a questão mais intrigante, nomeadamente no campo da esquerda. Artigo de Manuel Carlos Silva.
Foto Senado Federal/Flickr

Acabamos de constatar a vitória expressiva de Bolsonaro, candidato da extrema-direita, com 46% na primeira volta das eleições presidenciais no Brasil contra 29% do moderado social-democrata Haddad. Como explicar este resultado dramático para o povo brasileiro? Eis a questão mais intrigante nomeadamente no campo da esquerda, mais ainda tendo em conta 80% de popularidade de Lula no fim do segundo mandato. Como explicar tal resultado, quando, de facto, as políticas sociais do governo PT representaram a saída de 20 milhões de pobres da pobreza extrema, o acesso à alimentação básica pela Bolsa-Família e melhores níveis de formação nomeadamente no ensino superior (passando de 3 para 8 milhões de matriculados)? E outra questão se sobrepõe: como é que esta memória não é mais forte para conter a figura autoritária e incompetente, misógina, racista e apologista da tortura e da violência estatal por parte de Bolsonaro e, em última instância, o assalto da (extrema)direita ao poder político, além do económico?

Brasil é um país de enormes recursos e potencialidades mas atravessado por profundas desigualdades sociais, designadamente de classe, étnico-raciais e de género, com elevado grau de violência e insegurança. Apesar dos programas sociais dos governos PT, a burguesia brasileira continuou a reter elevadas taxas de lucro e renda como antigamente (10% retinham 41% do rendimento nacional). Nesta base os próprios governos do PT foram assumindo que a conciliação de classes seria possível e, por isso, as suas progressistas mas moderadas políticas – em parte por serem minoritários no Congresso e terem que fazer concessões a  partidos de centro-direita – deixaram de enfrentar interesses instalados, nomeadamente os do latifundismo, do agro-negócio e da burguesia compradore vivendo da importação-exportação, descurando propostas de movimentos sociais, sobretudo o Movimento dos Sem Terra (MST) através da implementação duma reforma agrária. Porém, o latifundismo, o agro-negócio, a burguesia financeira e compradore, reproduzindo e interiorizando o lastro da velha herança escravocrata e colonial dos protagonistas do império português, nunca aceitou a progressiva autonomização de classes subalternas e a melhoria das suas condições de vida (acesso a vida decente, ao consumo e à educação, direito a ter férias e viajar de avião, a não dependência de ‘velhos’ ou ‘novos’ senhores). Esta burguesia rentista e oligárquica, retrógrada, conservadora e mesmo reacionária, contrariamente a outras situadas noutros quadrantes, sobretudo do norte e centro Europa (que se permitiram construir Estados Sociais por reivindicações internas e por sobreexplorações neocoloniais), advoga práticas de colonialismo interno com regiões e populações pobres, visa desmantelar as políticas progressistas do PT e rejeita qualquer compromisso. Daí a estratégia do impeachment contra Dilma Roussef para arredar o PT do poder numa altura de crise económica, aproveitando o descontentamento de classes intermédias e sobretudo um movimento de massas descontente com a subida do preço dos transportes, o qual, não lhe tendo sido dada adequada resposta pelo Governo, foi cavalgado pela (extrema)direita e pela Rede Globo para remover o PT do poder, ao mesmo tempo que possibilitava a algumas das figuras de direita, envolvidas no passado e no presente em processos de corrupção, poderem escapar à justiça, como foi o caso Temer. 

Interrompido o curso democrático por um golpe institucional pelo impeachment no Congresso e derrubado o governo democrático eleito de Dilma Roussef com o apoio da monopolista Globo e derivados, eis que a ofensiva da burguesia brasileira prosseguiu um outro objetivo: o de judicializar discricionária e demagogicamente a política só em relação a este ou aquele dirigente do PT e travar a candidatura de Lula, servindo-se do poder judicial, em concreto, de Sérgio Moro, doutrinado nos EUA, comprometido com a estratégia montada pela direita política e sedento de protagonismo como juiz-estrela da operação Lava Jato sob os holofotes mediáticos, indo assim ao encontro dos interesses do imperialismo norte-americano, focado na privatização da Petrobras e doutras empresas públicas.

Apesar de toda a intoxicação e demonização mediáticas da venalizada Globo e da condenação judicial de Lula, gizada nos bastidores mas sem provas, com base em testemunhas arregimentadas e denúncias forjadas por delatores acusados em processos mas premiados com a diminuição ou isenção de pena, a popularidade de Lula nas intenções de voto, segundo várias sondagens, aumentou e reforçou-se mesmo em prisão.  Mais, os poderes executivo e judicial no Brasil ousaram  inclusive desrespeitar o tratado a que o Brasil se vinculou e subscreveu no quadro da ONU, a qual, dado o facto de a sentença sobre Lula não haver transitado em julgado no Supremo Tribunal Federal, instava o Governo e a Justiça a respeitarem o direito de Lula se candidatar à Presidência da República. Porém, as classes dominantes, a Rede Globo e sobretudo o sistema judicial, através do juiz Sérgio Moro, apercebendo-se justamente dos resultados de sondagens que dava Lula como vencedor, foram determinados não só na recusa da admissão e elegibilidade de Lula como candidato, como na colocação arbitrária de  obstáculos no acesso aos media e, sobretudo na última semana da campanha, na divulgação mediática de denúncias de delatores ‘arrependidos’ sobre os alegados esquemas de ‘corrupção’ seletiva na Petrobras e na Odebrecht.

A esquerda, enfraquecida com a retirada do poder, em vez de gizar uma plataforma mais ampla, reagrupou-se conjunturalmente perante as contrarreformas do governo golpista de Temer, mas persistiu dispersa, descartando assim uma oportunidade de construir uma unidade mais ampla e estratégica.

Ainda que aritmeticamente difícil, é ainda possível que Haddad possa conseguir uma reviravolta no segundo turno agora não apenas como candidato do PT mas de todas as esquerdas, contando com a grande parte dos votos do eleitorado de Guilherme Boulos, de Ciro Gomes e parte de Marina Silva e, mesmo, de (sociais)democratas doutros partidos que, entre Bolsonaro e Haddad, poderão optar por Haddad. Este, para garantir a vitória, terá de renegociar programa com movimentos sociais e líderes doutros partidos para futuro governo, congregando forças políticas de esquerda e do centro moderado. A contrarreação ao eventual sucesso desta estratégia – que, nesta profunda polarização, poderá no limite  induzir a oligarquia mais ultramontana, militarista e fascista, a intentar golpe pela via militar – tem já o aval de Bolsonaro que, se derrotado, afirmou não reconhecer Haddad como Presidente. Tal desfecho poderá todavia, no melhor dos casos, fazer repensar a direita sobre a velha estratégia fundamentalista e avessa ao compromisso, estando já a provocar considerações de dirigentes do PSDB a confessar ter sido um erro a aprovação do impeachment contra Dilma Roussef.

No caso da eleição de Bolsonaro, graças ao alinhamento do capital financeiro e à opção de ‘mal menor’ face ao PT e sua rejeição por grande parte do eleitorado de Geraldo Alkmin, João Amoedo, Álvaro Dias e Henrique Meireles –, tal, além de arredar o PT do poder e comportar algumas fissuras internas, constituirá um enorme retrocesso social e político. Tal representará prosseguir e aprofundar as políticas regressivas do governo Temer tais como a consumação da privatização total da Petrobras (já iniciada com o acordo do Pre-Sal com o capital financeiro norte-americano), a contrarreforma trabalhista e a da previdência social, os programados cortes, por 20 anos (!), na educação e ciência, assim como no já frágil sistema de saúde, o endurecimento e até militarização do regime, o aumento da repressão e da violência sobre as populações indígenas e quilombolas e seus líderes, sobre classes trabalhadoras e grupos sociais mais desprovidos, nomeadamente afrodescendentes negros/as e outras categorias sociais alegadamente consideradas ‘degeneradas’ ou ‘desviantes’ (LGBT, toxicodependentes), amiúde vítimas de assassinatos e mesmo genocídios.

Seguindo o designado ‘espírito do tempo’ em situações similares como nos Estados Unidos com Trump, a busca de ‘distinção social’ estatutária de parte de membros de classes intermédias ansiosas de subir e servir as elites dominantes ou manter as distâncias sociais e prerrogativas tradicionais, a raiva e o ressentimento prolongado de classes sociais populares desesperadas e indefesas, mais ainda em clima de violência extrema e insegurança em cidades, subúrbios e cidades-satélites, induzem à real tentação de buscar um ‘salvador’ providencial e messiânico nomeadamente por populações em privação económica e sobretudo despolitizadas. Com as políticas sociais os governos do PT geriram, acudiram e bem à situação de grupos sociais mais vulneráveis e em pobreza extrema, mas problemas sociais atuais como o elevado grau de desemprego (3.700.000) e mesmo de pobreza (45.000.000) persistem e só não seriam suscetíveis de ser instrumentalizados pela (extrema)direita, se tais cidadãos/ãs estivessem equipados de uma formação crítica e politizada e meios de comunicação públicos e plurais. Ou seja, o medo, o ressentimento e a insegurança, sendo ingredientes derivados de situações de privação, poderiam, com movimentos e partidos de esquerda bem organizados, ser até alimento para uma viragem mais à esquerda. Porém, no Brasil atual, em contextos de atomicismo individualista, desorganização e desespero social e sobretudo de violência e insegurança, tais situações de privação fermentaram ressentimentos e medos e estes têm sido alimentados por igrejas evangélicas retrógradas com prédicas centradas nos tradicionais valores da ordem e da família e com cantos religiosos de recorte emocional; e, em contexto eleitoral, eles são canalizados por figuras com um discurso anti-sistema e populista, de ódio e ‘anti-corrupção’ seletiva, mesmo quando sejam de facto figuras que se alimentam do ‘sistema’ (como, por exemplo, o próprio deputado Bolsonaro há 27 anos!).

Contrariamente ao que vulgarmente se pensa, reconstituindo períodos anteriores aos fascismos na primeira metade do século XX, os movimentos fascizantes e pró-fascistas não só emergem quando as classes dominantes se sentem ameaçadas por fortes movimentos sociais nomeadamente operários, mas avançam, sempre que forças democráticas se dividem ou sofrem refluxos. E hoje o capitalismo predatório e de saque no Brasil, nomeadamente agro-fundiário, financeiro e mediático, em vez de tolerar e/ou negociar com um governo trabalhista moderado liderado por Haddad, não tem qualquer pejo e prefere o ‘extremista’ Bolsonaro ‘legitimado’ pelo voto! Aí está o perigo que exige um pacto por parte das esquerdas e doutras forças moderadas com uma mobilização geral para a segunda volta!    


Manuel Carlos Silva é professor universitário

 

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