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Brasil: Crise e incertezas num país em agonia

Às vésperas das eleições presidenciais e passados quase dois anos e meio do golpe (parlamentar, judicial e mediático) que afastou Dilma Roussef da Presidência da República, o Brasil continua imerso em profunda crise social, económica, institucional e política. Por Rosa Maria Marques e João Alfredo Telles Melo
A candidatura de Guilherme Boulos, como candidato a presidente, e Sonia Guajajara, a mais importante liderança indígena do país, como candidata a vice – pode desempenhar um papel fundamental nestas eleições, olhando para o futuro
A candidatura de Guilherme Boulos, como candidato a presidente, e Sonia Guajajara, a mais importante liderança indígena do país, como candidata a vice – pode desempenhar um papel fundamental nestas eleições, olhando para o futuro

O grande capital, dirigente principal do golpe que resultou no impeachment de Dilma e na condenação e prisão de Lula, não conseguiu, até o momento, recriar as condições de “normalidade democrática burguesa” para poder continuar seu projeto de reformas e de pilhagem do que ainda resta de património público e nacional no país. Antes pelo contrário, ensaia uma dança à beira do abismo com o apoio a uma candidatura de extrema-direita, como é o caso do fascista Jair Bolsonaro, capitão do exército brasileiro na reserva.

Lula, condenado sem provas e preso sem que todo o rito legal tenha sido cumprido, foi impedido de se candidatar a despeito da decisão favorável do Comité de Direitos Humanos da ONU e de mais de 40% dos eleitores declararem que nele iriam voltar no primeiro turno (agora, a justiça eleitoral tenta restringir ao máximo a menção ao seu nome no programa eleitoral)1. Seu substituto, Fernando Haddad, indicado há poucos dias por Lula e aprovado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), tem recebido crescente apoio da população, demonstrando que Lula está conseguindo transferir seus votos para seu sucessor. Dessa forma, continuando essa tendência de migração de votos, o Brasil poderá vir a ter um segundo turno com Haddad (PT) e Bolsonaro (Partido Social Liberal – PSL), este último representando o setor mais à direita da sociedade brasileira, dado que é defensor da ditadura militar e abertamente a favor da tortura, entre outras barbaridades, como a postura misógina e homofóbica, a defesa do estupro e os ataques racistas a indígenas e quilombolas.

Fernando Haddad tem recebido crescente apoio da população, demonstrando que Lula está conseguindo transferir seus votos para seu sucessor

Os dois candidatos mais identificados organicamente com o grande capital, Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Henrique Meireles, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), estão praticamente fora do páreo, especialmente, por sua identificação com o (des) governo Temer, que amarga uma impopularidade de mais de 80% de rejeição. Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, apesar de ter apoiado o impeachment (o que a afasta definitivamente do campo da esquerda), não é a candidata dos sonhos da burguesia (especialmente, pela resistência do agronegócio) e só cai nas sondagens de opinião pública.

Por sua vez, Ciro Gomes, do PDT (Partido Democrático Trabalhista), por meio de uma trajetória errante e ambígua, visa ganhar, a um só tempo, o apoio do chamado “mercado” e do eleitorado de Lula, misturando um discurso de revisão das contrarreformas neoliberais com acenos a um eleitorado mais conservador, preso à pauta do combate à corrupção e da segurança. Na disputa com Haddad pelo segundo lugar, Ciro tenta desqualificá-lo como um candidato “fraco”, submisso a Lula (repetindo, na opinião dele, Ciro, o fracasso que foi Dilma).

O Brasil que ora se apresenta é um Brasil polarizado, entre os que querem o retorno do passado recente, onde a memória dos ganhos sociais nos governos petistas é muito presente, e os que querem varrer da história qualquer traço de democracia e direitos

A partir desse quadro da corrida presidencial, fica evidente que, a despeito do golpe, seus articuladores maiores não conseguiram se legitimar frente à população brasileira, tanto que flertam despudoradamente com a alternativa protofascista para dar seguimento ao seu “programa máximo”. O Brasil que ora se apresenta é um Brasil polarizado, entre os que querem o retorno do passado recente, onde a memória dos ganhos sociais nos governos petistas é muito presente, e os que querem varrer da história qualquer traço de democracia e direitos. As últimas e graves declarações de militares da ativa (o Comandante do Exército, General Villas Boas) e da reserva (tanto o candidato fascista, como seu vice, General Mourão) que apontam na direção de um “auto-golpe” militar têm empurrado os setores da esquerda e da centro-esquerda para o chamado “voto útil” naquele que possa vir a derrotar Bolsonaro.

Assim, dadas essas circunstâncias, há pouquíssimo espaço de crescimento e manifestação para os candidatos mais à esquerda no espectro político (a não ser em nível dos Estados). Esses, que durante os governos Lula e Dilma, já não haviam conseguido se colocar como uma alternativa real frente às massas (muito embora, no plano parlamentar, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) tenha se firmado), foram ainda mais prejudicados pelo facto de a experiência com o segundo governo Dilma ter sido interrompida por força do golpe e pelas massas compararem a situação de descalabro económico e social atual com a anterior, principalmente em matéria de emprego e salário. Ganhe quem ganhar as eleições, a crise política, económica e social, terá continuidade – e poderá até mesmo se aprofundar – e será inevitável que os confrontos se acirrem, o que poderá levar a uma conjuntura de maior enfrentamento, com um protagonismo maior para a esquerda anticapitalista.

No plano económico e social, a situação é de estagnação ou de franca deterioração. Para o PIB, é esperado um crescimento pouco superior ao de 2017 (1,4%), insuficiente para compensar os dois anos anteriores de recessão profunda. Os empregos, quando criados, são informais, com contratos de curta duração e a salários muito baixos, já refletindo a reforma do trabalho aprovada depois do impeachment da Dilma, durante o governo Temer. A taxa de desemprego, por sua vez, caiu um pouco, mas foi fortemente influenciada pelo aumento do “desalento”, isto é, pelo facto de parte dos desempregados terem desistido de buscar emprego. O número de desempregados declarados é de mais de 13 milhões. Já o rendimento médio dos trabalhadores de baixa renda tem registado queda, o que torna a situação por eles vivenciada ainda mais precária.

Enquanto isso, o impacto da mudança do regime fiscal (aprovado em 12/2016), que congela o nível do gasto do governo federal por vinte anos e que tem como um de seus propósitos principais a garantia do pagamento do serviço da dívida pública, se faz sentir por toda a parte, com destaque para a redução de recursos na área da saúde e educação. No caso da saúde, começa a aumentar a mortalidade infantil e a morte materna (durante a gravidez), e cai o nível da cobertura vacinal. Embora esses indicadores sejam resultado de múltiplos fatores, a redução dos recursos para as ações e serviços de saúde certamente foi um dos que aturam para sua deterioração, No campo da educação de nível superior, não só obras foram paralisadas como bolsas e programas vinculados a linhas de pesquisa estão sendo colocados em risco de continuidade.

Como pano de fundo, temos o aumento da violência de toda sorte, com destaque para a militarização da polícia (cuja expressão maior é a presença militar na cidade do Rio de Janeiro), para a crescente repressão aos movimentos sociais e para o aumento de assassinatos de seus líderes, especialmente aos indígenas e aos demais que lutam pela terra.

Assim, quando todos os holofotes estão dirigidos para as eleições, essa é a realidade com que a população brasileira precisa conviver diuturnamente. E apesar de não se vislumbrar no curto prazo a resolução da crise política das classes dominantes, Temer, chamado de usurpador por muitos, no apagar das luzes de seu governo, faz avançar a venda da Eletrobrás e os projetos de privatização da Petrobrás. Nos planos do grande capital, restaria, ainda, ser liberada a abertura sem restrições da venda da terra para estrangeiros e o controle sobre a água. Por isso, a agonia a que se refere o título deste pequeno artigo. Ela diz respeito não só à situação sofrida pela imensa maioria da população brasileira, como à acelerada perda de soberania sobre seu património.

A candidatura de Guilherme Boulos e Sonia Guajajara pode desempenhar um papel fundamental nestas eleições, olhando para o futuro

Neste quadro, a esquerda radical – representada principalmente pelos candidatos da aliança do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) com o PCB (Partido Comunista Brasileiro), que são o líder do movimento dos sem Teto, Guilherme Boulos, como candidato a presidente, e Sonia Guajajara, a mais importante liderança indígena do país, como candidata a vice – pode desempenhar um papel fundamental nestas eleições, olhando para o futuro. Isto pode se dar seja travando um combate sem quartel contra o fascismo e sua candidatura de extrema direita, seja denunciando o golpe, os golpistas e seus cúmplices, seja agitando a bandeira da revogação de todas as reformas neoliberais antipopulares, seja finalmente se apresentando como alternativa anticapitalista e ecossocialista, levantando temas que nenhuma outra candidatura pode brandir, a partir das plataformas dos movimentos sociais, ecológicos, socioambientais, feministas, lgbts, de direitos humanos etc.

O acúmulo – mais político e simbólico, que eleitoral – que, por ventura, possam essas pautas alcançar no primeiro turno poderá dar à esquerda anticapitalista muita autoridade para um protagonismo muito forte no segundo turno, pressionando, pela esquerda a candidatura que por ventura se apresente contra a direita, tanto em sua versão protofascista (como é hoje o mais provável), como por meio das candidaturas orgânicas da burguesia predatória comprometidas com o programa do golpe.

Isso sem descuidar de se preparar e preparar o povo, os trabalhadores e os movimentos sociais para os enfrentamentos que se darão certamente a partir de 2019, em virtude da polarização que provavelmente se dará seja quem for o eleito nestas eleições pós (e do) golpe. As alianças (e lutas) sociais antifascistas e antirreformas neoliberais que ocorreram nos últimos dois anos, foram um belo e duro ensinamento de que a verdadeira união das esquerdas se dá mesmo é nas ruas, que é principal arena e trincheira das lutas sociais.

Artigo de Rosa Maria Marques e João Alfredo Telles Melo2


Notas:

1 Não seria exagero, de forma alguma, afirmar que o ex-presidente é um preso político de uma Justiça absolutamente comprometida, por meio do Juiz Sergio Moro e das maiorias de todos os tribunais (do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região ao Supremo Tribunal Federal, passando pelo Superior Tribunal de Justiça), com todo o retrocesso político, social, económico, cultural e ambiental por que passa o Brasil desde que o grande capital tomou de assalto a Presidência da República. A atitude persecutória com relação a Lula e a postura leniente quanto a Bolsonaro, denunciam a parcialidade dos aparatos do judiciário brasileiro.

2 Rosa Marques é professora titular de Economia da PUC/SP (Pontificia Universidade Católica de São Paulo) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); João Alfredo, é advogado, mestre em Direito e professor de Direito Ambiental no Centro Universitário 7 de Setembro. Foi vereador, deputado estadual e deputado federal anteriormente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), após pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no Estado do Ceará, seu partido atual.

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