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“Bato-me para que os homens e as mulheres sejam iguais em dignidade e estatuto”

Mário de Carvalho volta a surpreender-nos com o seu novo livro – Ronda das mil belas em frol – que se desenrola no universo das relações íntimas. Ousado, o livro rasga preconceitos e homenageia as mulheres na sua luta pela conquista da igualdade. Por Pedro Ferreira.

Escreveu um livro sobre sexo algo que não é comum na sua obra. Porque é que o fez agora?

Digamos que em muitos dos meus livros já há aflorações sobre o tema. Por isso, não é de todo uma novidade.

Mas não são tão evidentes. Pretendeu deixar os leitores estupefatos?

Em todos os meus livros utilizo o efeito surpresa.

Não acha antes que é uma enorme surpresa?

Não. Respondo da mesma maneira que o alpinista que subiu ao Evereste, ou seja, fê-lo porque ele está lá [o monte Evereste].

Pode ser mais objetivo?

Já andava a pensar em escrever um livro como este há algum tempo E tive também algumas solicitações.

Resultou de um pedido da sua editora?

De maneira nenhuma. A decisão foi da minha exclusiva responsabilidade.

Teve algumas hesitações antes de decidir escrevê-lo?

Não. Tive apenas cuidado na utilização da linguagem para não cair no mau gosto o que também não é novidade porque é um princípio que não dispenso quando estou a escrever independentemente do assunto que pretendo abordar.

Mas sentiu-se constrangido?

Tenho consciência que o sexo é um tema que facilmente se presta ao ridículo, a incompreensões e também à aplicação de certos estereótipos.

Mas esses factos não o fizeram recuar.

Estou preparado para eles. Posso até dizer que após a saída do livro já houve que me tivesse chamado idólatra tendo considerado que este livro dava um mote de fornicação. Isto foi escrito por um crítico, ou melhor alguém que se apresenta como tal e escreve aquilo pensando que é crítica.

Escrevendo sobre um tema que encerra alguma delicadeza presumo que já esperasse esse tipo de observações.

Já estava a contar com estas reações porque a sociedade portuguesa conserva ainda muitos laivos de hipocrisia, censura ocultada e por isso ainda há restrições e condicionantes a um certo tipo de liberdade autoral.

Ponderando todos esses aspetos decidi ainda assim assumir o risco e escrevi-o como todo o à vontade tanto mais que evitei sempre cair na vulgaridade a tal ameaça que sempre me cercou.

Na literatura portuguesa e não só houve grande escritores que nos legaram excelentes obras de teor erótico.

Nessa linha de raciocínio, posso dizer-lhe que este livro não representa uma inovação tão grande como se possa pensar, embora nos últimos anos não se tenha escrito muito sobre sexo pelo menos de uma forma tão direta.

E há alguma razão que justifique esse abandono?

Talvez por haver consciência das dificuldades na sua abordagem e consequentemente os riscos que pode representar para o próprio escritor. Não é fácil encontrar o tom adequado que é a única defesa para não resvalar em direção ao abismo do mau gosto.

No seu caso, ancorou-se na ironia que cultiva com uma inteligência invulgar acabando desta forma por nos transmitir a mensagem de que as relações íntimas fazem parte da natureza humana e é preciso encará-las com naturalidade.

Há determinados aspetos que são constantes nos nos meus livros independentemente do assunto que abordam. E eu não os abandonei neste livro, não me descaracterizei enquanto escritor até porque recusaria pagar esse preço.

Mas destacaria alguns escritores portugueses que tenham escrito sobre relações íntimas?

Seria bom ter presente Afonso Ribeiro que chegou a ter problemas com a censura nos anos 50, bem como José Manuel e Silva que escreveu um livro chamado Sedução que não era exatamente um livro sobre sexo mas está lá perto e obviamente José Régio e também Jorge de Sena que tem poemas que são perfeitamente claros em matéria de sexo.

Mais recentemente importa destacar Maria Velho da Costa que publicou Corpo Verde que é um livro muito bem escrito sobre encontros íntimos.

O livro tem 16 contos e um epílogo em cada um deles há uma mulher que tem uma relação breve mas intensa com o narrador. São todas mulheres emancipadas, que não se subjugam à vontade do homem. Pretende homenagear a luta pela igualdade empreendida pelas mulheres?

Sem dúvida que sim. Aliás tanto no livro como na vida eu bato-me para que os homens e as mulheres sejam perfeitamente iguais em dignidade e estatuto. Por essa razão, não perpassa por nenhum deles a ideia, por vezes ainda tão cultivada, da superioridade do homem que surge sempre numa posição de soberania.

As mulheres têm aqui opinião e poder assumindo sem complexos a sua sexualidade. Mas nem sempre foi assim.

Infelizmente ainda há muitas situações em que não é permitido às mulheres terem atitude e iniciativa sem que lhes apontem o dedo. No livro, ao contrário da vida, não há ninguém que obrigue, engane, manipule ou viole. O homem e a mulher estão precisamente no mesmo patamar e o desejo, as deceções ou a condução da relação resulta do jogo de vontades estabelecido entre os dois.

Encontramos também esse apego à igualdade de género quando deixa expresso no epílogo o repúdio à misoginia, da “mais palonça à mais alambicada”.

Mas há ainda muito que tem de ser feito nesse campo para que o estatuto entre os homens e as mulheres seja de plena igualdade.

A sociedade portuguesa ainda enferma de tiques machistas?

Estão à vista de todos. Não basta a previsão constitucional, não basta a lei do trabalho. A norma trabalho igual, salário igual é frequentemente violada e ainda há quem ache natural que a mulher ganhe menos que o homem fazendo o mesmo trabalho, muitas vezes com mais eficiência e profissionalismo.

E quais são os alicerces em que assenta essa mentalidade?

Ainda há na nossa sociedade velhos avatares que nos oprimem e tentam puxar-nos para a regressão. A violência doméstica é a afloração disso, o abuso de uma superioridade física que acabou por levar à dominação da mulher  que tem persistido ao longo dos séculos.

Mas no seu livro, as mulheres já são livres e não têm receio da censura social.

É necessário alagar significativamente esse universo para que acabem todas as inibições impostas e floresça inequivocamente a liberdade individual.

Corre o risco de alguns pensarem que está a fazer a apologia da poligamia.

De forma nenhuma. Deus me livre. (risos)

Mas deixa escrito que “ o proselitismo” da monogamia – felizmente mais declarado do que praticado - chega a ser fanático”.

De uma forma geral geral podemos dizer que esta instituição matrimonial é transgredida e, deva dizer-se, não vem daí grande mal ao mundo.

Uma afirmação polémica.

Sinceramente não penso que seja até porque as bases sociais não são abaladas por isso.

Aceita a observação de que escreveu um livro voyeurista?

Não. Porque não é verdade e nunca tive a intenção de o fazer.

Mas entrou no círculo mais íntimo da privacidade das pessoas?

 Tenho a certeza que um voyeur não veria tudo o que está contido no livro porque este está para além daquilo que se pode observar através do buraco da fechadura ou atrás do cortinado.

Escolheu um título muito rebuscado, com laivos que nos remetem para um certo arcaísmo. Foi uma manobra de marketing editorial?

Tem uma vaga ressonância prussiana. Hesitei muito sobre ele e fiz várias tentativas, mas foi um trabalho solitário.

E como é que chegou até lá?

Primeiro pensei em Madrigal, depois belas sem colocar o mil até que as juntei e ficou mil belas. A palavra ronda pareceu-me interessante porque se trata de um percurso à volta de encontros neste caso de relacionamentos entre um homem e várias mulheres. A palavra mil vem das Mil e Uma Noites.

E a expressão frol?

É uma palavra mais bonita do que flor. É uma forma divergente do latim, usado na Idade Média e mesmo depois dessa época. Frol de La Mar foi uma nau portuguesa comandada por Afonso de Albuquerque.

O trabalho que teve para chegar ao título é quase equivalente à construção de um puzzle.

Foi um exercício muito pensado.

Foi complicado escrever sobre a anatomia do sexo feminino?

Exigiu-me um cuidado extremo. Não podia ser de outra maneira.

Está preparado para um coro de críticas?

Vivemos em democracia e consequentemente a opinião é livre. Estou tranquilo.

Não teme os fariseus e os pudibundos?

Não. Dedico-lhes o livro tal como aos filisteus.

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Ronda das mil belas em frol, Porto Editora

1ª edição: setembro de 2016

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