A austeridade é um projeto profundamente antidemocrático

05 de janeiro 2025 - 20:11

Austeridade não é só uma conceção económica má. É sobretudo um projeto centenário para minar a democracia em áreas cruciais das nossas vidas.

por

Clara E. Mattei e Aditya Singh

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Question Austerity
Foto de badsci/Flickr.

A austeridade é omnipresente. Aumentos nas taxas de juros, novas privatizações, contratos de trabalho cada vez mais flexíveis, cortes na assistência médica e na educação pública, redução de impostos sobre ganhos de capital e aumento de impostos sobre o consumo. Qualquer reforma económica é-nos apresentada como uma necessidade: devemos apertar os cintos, para que o nosso Estado não vá à falência. Precisamos ser realistas e fazer escolhas difíceis, conforme a situação económica exigir. Uma visão da economia entendida como uma ciência pura, objetiva e lógica encanta-nos. Não há alternativa, nem opção, a não ser confiar nos especialistas.

Mas o que esses especialistas querem dizer quando usam este termo aparentemente omnipresente? A maioria descrevê-lo-á como políticas económicas que envolvem corte de gastos públicos e aumento de impostos. Aqui está a primeira armadilha: os economistas usam a lente do agregado, do todo. Estes especialistas falam sobre as economias dos EUA, França ou Brasil como entidades nacionais coesas. Numa inspeção mais detalhada, no entanto, estas são abstrações grosseiras que escondem as profundas divisões de classe dentro e entre as economias nacionais.

Se olharmos para os gastos agregados do Estado no país em que vivemos e trabalhamos, os Estados Unidos, não vemos nenhum traço de austeridade. Na verdade, o Estado está a gastar muito – especialmente para garantir o lucro dos acionistas, com doações públicas para entidades privadas no complexo militar-industrial e outros setores. Sob Joe Biden, os Estados Unidos assumiram dívidas para incentivar os gestores de ativos a investir na transição verde, impulsionar o setor financeiro norte-americano e enviar pelo menos 2,5 bilhões de dólares em ajuda militar a Israel em menos de dez meses. Somado a mais “ajuda” enviada em agosto, isto garante negócios para mais de cinquenta multinacionais envolvidas num massacre israelita que especialistas médicos estimam que já matou 186.000 pessoas, 70% delas mulheres e crianças.

Então os gastos públicos não estão a cair, mas a questão relevante é outra. Austeridade não é simplesmente sobre se o Estado está gastando, mas onde ele gasta — ou, melhor ainda, para quem. A mentira da austeridade serve como uma ferramenta para garantir que, não importa qual partido esteja no poder ou onde esteja a opinião pública, a democracia não interfira com o business as usual.

De quem é o Estado, de quem são os interesses?

Quando o Estado dos EUA, como a maioria dos Estados, aumenta os gastos militares ou resgata bancos enquanto simultaneamente corta os gastos com saúde, educação, transporte, habitação pública ou apoios para desempregados, transfere estruturalmente recursos da maioria trabalhadora para o 1% da população que subsiste principalmente da propriedade de capital (ou seja, dividendos de ações, rendas e juros). Por outras palavras, austeridade não é sobre gastar menos, mas sobre gastar da maneira “correta” – a favor da elite económica e financeira e em detrimento da maioria da população. Enquanto lutamos para pagar o tratamento médico básico, somos forçados a enviar os nossos filhos para escolas sobrelotadas e subfinanciadas e esperamos em longas filas para renovar nossos documentos oficiais, os cofres da Lockheed Martin e da BlackRock são constantemente reabastecidos. O Estado dos EUA comprou quase 50 bilhões de dólaresem armas à Lockheed Martin somente em 2023. Embora os gastos sociais possam ser cortados, para a classe capitalista, a ideia de que não há dinheiro não existe.

O mesmo princípio se aplica às receitas estatais, o outro lado da moeda da austeridade: não se trata de se o Estado aumenta os impostos, mas para quem ele aumenta. Hoje, a maioria dos governos promulga reformas tributárias regressivas, continuando a cortar impostos para aqueles com rendimento de capital (para não mencionar generosas brechas fiscais) enquanto aumenta os impostos para aqueles que obtém rendimento através do trabalho, que têm pouco espaço para evasão, já que são tributados diretamente nas suas folhas de pagamento. Nos Estados Unidos, as pessoas que ganham o seu rendimento com o trabalho são tributadas desproporcionalmente mais do que aquelas que ganham rendimento através de ganhos de capital – a maioria dos quais são ganhos pelos ricos (em 2019, o 1% mais rico foi responsável por 75% de todos os ganhos de capital nos EUA, e o 0,1% mais rico sozinho quase a metade). Além disso, enquanto os impostos sobre vendas, impostos especiais de consumo (sobre combustíveis) e impostos sobre o álcool – que todos pagamos igualmente, independentemente do rendimento – estão a crescer na maioria dos estados americanos, os impostos corporativos federais foram reduzidos (de 35% para 21% em 2017), bem como os impostos sobre as faixas de rendimento mais altas (de 92% em 1953 para 37% em 2023).

Isto leva-nos à situação absurda em que, numa corporação como a Walt Disney, um zelador teria que trabalhar dois mil anos para ganhar tanto quanto o CEO ganha num, e os acionistas pagam muito menos impostos do que os trabalhadores cujo trabalho gera lucros. A Walt Disney não é uma maçã podre, mas sim um padrão que empalidece em comparação a alguns outros negócios. Em 2018, as corporações americanas que pagaram zero dólares em imposto de rendimento federal incluíam empresas como IBM, Starbucks, Netflix, Delta, Chevron, GM e Amazon. O exemplo mais flagrante de tributação regressiva é o corte do imposto sobre herança, um imposto que se tornou substancialmente irrelevante para as receitas fiscais em todo o mundo. Nos Estados Unidos, graças ao mecanismo de um fundo de anuidade (o chamado Grantor Retained Annuity Trust), os multimilionários podem passar a sua riqueza para as próximas gerações completamente livres de impostos.

Tendo estes factos em mente, podemos descartar o tropo comum pelo qual as políticas de austeridade são concebidas como um jogo de soma zero entre o Estado e o mercado. O capitalismo de austeridade não significa menos Estado, mas sim um Estado que constantemente desempenha um papel ativo no reforço do mercado, agindo de acordo com a lógica de expropriar recursos de muitos (que ganham a vida com salários) para favorecer poucos (que subsistem principalmente do capital). A austeridade “administra” a economia no sentido mais radical: ela torna-nos precários e dóceis e garante que o sistema económico nunca seja questionado. A austeridade atravessa as linhas partidárias. Frequentemente, é paradoxalmente a auto-intitulada esquerda que alavanca a austeridade, do governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil ao Partido Trabalhista no Reino Unido. Este foi particularmente o caso da coligação social-democrata-verde da Alemanha sob Gerhard Schröder, que empreendeu cortes sociais abrangentes e reformas no mercado de trabalho que, sem dúvida, nenhum governo conservador ousaria.

A trindade da austeridade

A austeridade fiscal geralmente anda de mãos dadas com políticas monetárias de aumento das taxas de juros, como o Banco Central Europeu tem feito quase mensalmente desde julho de 2022. Esta é uma boa notícia para os donos de capital (aqueles mesmos indivíduos que o Estado escolhe não taxar, mas em vez disso toma emprestado, rendendo juros). É uma má notícia para as famílias que dependem de empréstimos para a sua sobrevivência diária e que se verão a pagar hipotecas mais altas e a acumular mais dívidas de cartão de crédito.

As famílias trabalhadoras são atingidas não apenas no âmbito do consumo, mas ainda mais duramente no do trabalho. Primeiro, o custo mais alto do dinheiro aumenta as despesas de empréstimos do governo para serviços sociais, o que é então citado para justificar novos cortes. Isto, por sua vez, aumenta a mercantilização destes direitos básicos, como assistência médica e educação, e, portanto, a disposição dos trabalhadores de aceitar qualquer emprego que possam encontrar para pagá-los. Além disso, a austeridade monetária impacta diretamente o mercado de trabalho. O alto custo do dinheiro, de facto, desacelera a economia; menos oportunidades de emprego e maior desemprego minam o poder de negociação dos trabalhadores. A austeridade monetária determinou a agenda do Federal Reserve dos EUA em 2022 e 2023 e aumentou o número de desempregados em 1,3 milhão entre julho de 2023 e julho de 2024.

A atual onda de austeridade monetária foi precedida por mais de uma década de taxas de juros muito baixas, especialmente no momento pós-2008, que beneficiou diretamente a concentração de poder económico nas mãos de gestores de ativos e “capital-nuvem”. No entanto, como nos lembra a atual secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, “as taxas de juros podem ser baixas apenas quando os trabalhadores estão fracos”.

Dinheiro fácil e formas recentes de flexibilização quantitativa que imediatamente garantiram os ativos de grandes corporações eram politicamente compatíveis com a ordem do capital por causa de ondas anteriores de austeridade. Este é o papel desempenhado nos EUA pelo infame choque de Volcker. Este leva o nome do presidente do Fed, Paul Volcker, que aumentou as taxas de juros para 20% no início dos anos 1980, causando uma recessão económica nos Estados Unidos e uma ainda maior nos países latino-americanos que estavam fortemente endividados em moeda dos EUA. Como em muitas outras partes do mundo, esta dosagem de dinheiro caro aumentou o desemprego para 10% e quebrou a espinha dorsal do trabalho organizado num momento em que os trabalhadores estavam a partir para a ofensiva de maneiras não vistas em décadas.

No entanto, a elite governante sabe que não há vitória permanente. Como eventos recentes demonstram, qualquer aceleração do crescimento salarial no contexto de aperto dos mercados de trabalho é uma ameaça potencial que precisa ser eliminada. O risco de levar uma economia à recessão é um custo de curto prazo comparado ao pré-requisito vital da acumulação de capital: garantir a subordinação dos trabalhadores e uma taxa saudável de exploração. Longe de “calamidades naturais”, as recessões económicas são frequentemente resultados deliberados projetados para garantir a contração salarial e manter o domínio inquestionável do lucro.

Finalmente, não podemos esquecer o terceiro elemento da trindade da austeridade – a saber, a austeridade industrial visível na intervenção direta do Estado no mercado de trabalho por meio da privatização, desmantelamento de direitos laborais duramente conquistados e enfraquecimento dos sindicatos. As três facetas da austeridade – fiscal, monetária e industrial – reforçam-se mutuamente e trabalham em uníssono para transferir continuamente recursos dos trabalhadores para os detentores de capital.

Mais do que uma estrutura falha

Várias pesquisas já estabeleceram que a austeridade quase nunca estimula o crescimento nem reduz a dívida. Dado isso, a questão relevante não é sobre o histórico da austeridade, mas por que ela continua a ser o plano de ação preferido dos governos, mesmo assim.

Ao pensar sobre as razões por detrás da austeridade, o maior erro que podemos cometer é tratá-la meramente como uma política errada que impede o crescimento económico. Esse tipo de posição é tipicamente assumida por economistas que são críticos da austeridade, mas ainda operam numa estrutura tecnocrática que assume uma separação absoluta entre problemas económicos e políticos. O domínio da austeridade não é o resultado de pura estupidez ou corrupção por parte daqueles no governo; pelo contrário, os últimos aderem à primeira porque a consideram particularmente eficaz no reforço das relações de classe. Não se pode entender as políticas fiscais e monetárias sem considerar o seu impacto nas relações de trabalho e, em última análise, no que chamamos de ordem do capital como a relação social fundamental do nosso sistema económico. A austeridade nunca foi sobre conter a inflação ou manter os gastos sob controle – as suas manipulações da procura agregada sempre foram um meio para um fim mais profundo: ou seja, garantir que, para a maioria das pessoas neste planeta, não haja alternativas à venda de seu trabalho para ganhar a vida.

Este objetivo tem precedência sobre todos os outros, mesmo ao custo de uma recessão económica temporária ou de uma dívida maior. É fácil desmascarar as prioridades políticas em jogo ao considerar, por exemplo, o custo para os cidadãos americanos de não tributar os ricos. De acordo com o Tesouro dos EUA, tributar ganhos de capital na morte em vez de permitir que eles sejam repassados sem impostos arrecadaria mais de 400 bilhões de dólares na próxima década, quase exclusivamente do 1% mais rico. Isto é três vezes o que o governo dos EUA gastou em programas de assistência alimentar para famílias de baixo rendimento em 2023. O desfinanciamento sistemático do Internal Revenue Service é um caso emblemático. A demissão de funcionários públicos sob o pretexto de cortar custos custou ironicamente cerca de US$ 7,5 trilhões em mais de uma década devido à falha em arrecadar dinheiro de impostos, quase 4,5 vezes o déficit do ano fiscal de 2023.

Em resumo, o principal objetivo que as elites buscam atingir com a austeridade é aumentar a dependência dos trabalhadores em relação ao mercado. Se, por exemplo, um trabalhador norte-americano teme perder o seu emprego e, com ele, a capacidade de pagar por cuidados médicos, torna-se mais controlável. Se as oportunidades de emprego são escassas, os salários diminuem. À medida que o Estado corta os cuidados de saúde, educação, habitação social, transporte e serviços públicos, as pessoas preocupam-se em ter dinheiro no bolso para garantir uma boa educação para os seus filhos, tratamento médico adequado, um teto para viver e o direito ao transporte. Estão cada vez mais presas à necessidade de ter dinheiro suficiente, que a maioria pode obter de apenas uma maneira: vendendo a sua força de trabalho em troca de um salário. Mal têm energia para chegar ao fim do mês, muito menos se envolver numa luta coletiva para mudar as suas condições de trabalho.

Há, no entanto, um segundo motivo: a trindade da austeridade apoia o investimento de capital atraindo os investidores mais ricos por meio de subsídios e incentivos estatais, impostos obscenamente baixos (sobre ganhos de capital, riqueza e lucro corporativo), salários baixos e a destruição de garantias e proteções laborais. Ao garantir as melhores condições possíveis para que os lucros disparem, as políticas de austeridade tornam-se ferramentas para redistribuir a riqueza para cima, beneficiando uma minoria da elite poupadora-investidora (que tende a considerar-se a mais virtuosa e merecedora de qualquer maneira).

Portanto, a verdadeira medida da eficácia da austeridade está na sua capacidade de impor e reforçar uma estrutura de classe para servir e, acima de tudo, proteger a ordem capitalista, a própria ordem que sustenta o crescimento económico. Nesse sentido, a austeridade nunca foi um cálculo irracional.

Disciplinar por design

As instituições financeiras dominantes da nossa era, do Federal Reserve ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional, aparentemente servem ao propósito principal de “estabilizar” a economia. No entanto, uma leitura mais atenta da história revela que o pré-requisito fundamental para esta estabilização é manipular o jogo contra os trabalhadores para que eles não tenham alternativa a não ser aceitar um papel subordinado no processo de produção. Como o economista americano Duncan Foley brilhantemente colocou, as políticas monetárias e fiscais que aparentemente visam a inflação devem ser melhor descritas como “metas de taxa de exploração”. A caixa de ferramentas da gestão macro-económica – aumentos nas taxas de juros, cortes de gastos sociais, tributação regressiva, privatizações – é baseada no sacrifício direcionado dos trabalhadores na forma de perdas de empregos, precariedade social e dependência do mercado.

Podem achar estes cenários paradoxais ou até mesmo a expressão de um fracasso das nossas políticas económicas. Não vos culpamos. O que queremos enfatizar, no entanto, é que estes resultados não são um fracasso, mas sim o resultado desejado da lógica do nosso sistema económico. O confisco dos recursos dos trabalhadores aumenta a sua vulnerabilidade económica, a sua precariedade e dependência do mercado. Estes são definitivamente problemas para nós, mas não para o sistema – garantir a dependência do mercado significa garantir os fundamentos da ordem do capital.

É hora de parar de comprar a ideia de que, dentro de uma sociedade capitalista, faz sentido discutir políticas económicas de acordo com o critério de “certo” e “errado” para um bem comum ilusório. Quando aprofundamos a história do capitalismo, fica claro que o que os críticos descrevem como problemas do sistema (pobreza, desigualdade e desemprego) são, na verdade, soluções, embora soluções para problemas diferentes. Num sistema capitalista, as políticas económicas sempre funcionam em benefício de alguns e em detrimento da maioria. A nossa maquinaria económica não está destinada nem estruturada para atender às necessidades das pessoas comuns, mas para aumentar as rendas e lucros dos poucos detentores de capital. O que é vantajoso para os lucros é certamente desvantajoso para a maioria das pessoas, uma vez que a vantagem para os primeiros é amplamente baseada no sacrifício dos últimos.

O papel vital da austeridade, tão profundamente enraizado na formulação de políticas a ponto de ser quase invisível, torna-se gritantemente aparente quando o sistema económico que ela sustenta entra numa crise existencial e a ilusão de um capitalismo estável diminui. Muito mais do que uma mera desaceleração no crescimento económico, estas crises são momentos em que a própria essência do sistema (venda de bens visando o lucro) e os seus pilares (propriedade privada dos meios de produção e trabalho assalariado) são questionados pela maioria da população, particularmente pelos trabalhadores, em cuja aquiescência o sistema se baseia.

O rescaldo da Primeira Guerra Mundial foi um desses momentos, quando mesmo no coração do Ocidente capitalista, visões de uma alternativa ao capitalismo conquistaram ampla simpatia popular. Da Grã-Bretanha à Itália e Alemanha, mudanças institucionais concretas estavam a ocorrer: em alguns casos, conselhos de trabalhadores organizaram a produção horizontalmente e posicionaram-se como o embrião de novas organizações políticas autenticamente democráticas. A mobilização social em larga escala estava a alcançar uma profunda redistribuição.

O que interrompeu a transição para uma maior democracia económica foi uma campanha conduzida por especialistas para codificar a austeridade como uma resolução objetiva para a crise do capitalismo. Uma minoria de tecnocratas poderosos interveio para remediar o que eles consideravam um mundo em desordem. Em nome do combate à inflação e da obtenção de um orçamento equilibrado – argumentos-chave que permanecem como pedras angulares na retórica dos especialistas hoje – os economistas trabalharam ao serviço de um objetivo específico: re-subjugar a maior parte dos cidadãos à ordem económica dominante. Conforme discutido em The Capital Order [A Ordem do Capital], para impor austeridade contra os trabalhadores italianos, os especialistas económicos podiam contar com a mão forte do regime fascista de Benito Mussolini, que era amplamente apoiado pela elite liberal internacional. Mussolini formalizou a aliança da expertise neoclássica com o governo autoritário, o que não é exceção na história do capitalismo dos séculos XX e XXI.

A conexão explícita entre austeridade e repressão política – tão evidente sob o fascismo – revela como o tratamento económico dos cidadãos italianos não era de facto tão diferente do tratamento que os especialistas britânicos previam para o seu próprio povo. De facto, os tecnocratas britânicos pressionaram arduamente por uma implementação não democrática da política económica por meio da independência e autoridade dos bancos centrais. As continuidades entre as versões fascista e liberal da austeridade mostram como proteger a ordem do capital requer um esforço constante para isolar os controles da gestão macroeconómica da interferência popular. A dinâmica de cem anos atrás ainda fala connosco ao revelar tendências insidiosas na economia política contemporânea.

Investigar o que aconteceu naquela época, quando a austeridade surgiu para disciplinar trabalhadores por toda a Europa, permite-nos ir mais fundo na sua lógica atual e desmantelar melhor aqueles mal-entendidos que silenciam a dissidência e a resistência. A história revela que a austeridade não é meramente uma aberração da viragem neoliberal na década de 1970, como muitas vezes se acredita. Em vez disso, é uma ferramenta estrutural do nosso sistema económico, usada para preservar uma taxa saudável de exploração. Embora a austeridade se torne mais explicitamente visível como uma contraofensiva em tempos de maior protesto por trabalhadores e movimentos sociais, ela representa a regra fixa dos governos – e o limite muito estreito da democracia eleitoral – dentro de um sistema capitalista como tal.

Acabar com a austeridade exigirá, portanto, mais do que vencer algumas eleições com uma plataforma progressista. Temos que entender de onde ela veio para traçar um caminho para onde queremos ir. Estudos históricos podem penetrar em abstrações económicas para divulgar uma mensagem fortalecedora: diferentemente do que os especialistas querem que acreditemos, o nosso sistema económico não é natural nem espontâneo. O capital como “dinheiro” e como “crescimento do PIB” é baseado numa ordem política específica que depende da subjugação da maioria. Por esse motivo, o nosso sistema económico requer suporte constante. Ele é inerentemente frágil, e a austeridade foi aperfeiçoada ao longo do tempo como meio de protegê-lo. A nossa ordem do capital depende da intervenção ativa do Estado para controlar o mercado de trabalho e enfraquecer a possibilidade de que qualquer sistema económico alternativo possa surgir. Se atentar às estratégias políticas continuamente implementadas para proteger a ordem do capital demonstra que nosso atual sistema socioeconómico não é inevitável. Nem deve ser aceite passivamente como o único caminho a seguir. Daí a mensagem fortalecedora: ele pode ser subvertido através de ação coletiva. O estudo da lógica e do propósito da austeridade é um primeiro passo nessa direção.


Clara E. Mattei é professora assistente no departamento de economia da New School for Social Research e autora do livro "The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism".

Aditya Singh é doutorando em economia na New School for Social Research, com foco na influência histórica do conceito de independência do banco central e seu impacto nas políticas dos países do Sul Global.

Artigo publicado originalmente na Jacobin de língua alemã. Traduzido por Pedro Silva para a Jacobina. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.