A proposta subscrita pelo movimento de Rui Moreira e aprovada em janeiro na Câmara do Porto com os votos do PS e do PSD defende o regresso à criminalização do consumo em espaços públicos como uma resposta ao aumento da toxicodependência na cidade.
Numa carta aberta publicada esta quarta-feira no Público, associações, profissionais de saúde e ativistas repudiam "liminarmente o regresso a uma retórica e abordagem proibicionista e judicializante à chamada 'problemática das drogas', por esta se situar nos antípodas da visão que se encontra na base das políticas de saúde pública que, comprovada e reiteradamente, produziram e produzem ganhos em saúde e segurança das populações, no respeito pela autonomia e dignidade da pessoa humana".
Em alternativa à "perspetiva exclusivamente securitária" do autarca, os subscritores reclamam o início do diálogo "para a criação de respostas robustas para um problema complexo, em que interagem questões de saúde pública, cidadania e acesso a condições mínimas ao nível da satisfação de necessidades básicas".
Lembrando que a descriminaização aprovada em Portugal em 2001 conduziu à "redução da prevalência de consumos de risco, overdoses e infeções associadas à partilha de material de injeção, como as hepatites víricas e a infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH)" e ainda hoje é considerada um exemplo a nível mundial, criticam quer a proposta aprovada no executivo municipal como a intervenção policial no dia 6 de janeiro no Bairro da Pasteleira, por estarem "em direta contradição com a mentalidade despenalizadora que sustentou a reforma legislativa pela qual somos aplaudidos, visitados e estudados por todo o mundo, e que produziu ganhos de valor inequívoco no que à saúde das populações diz respeito".
"Nas tendas descritas como 'tendas de consumo de drogas' viviam várias dezenas de pessoas em situação de sem abrigo, algumas das quais aguardando algum tipo de orientação dos serviços de Apoio Social da cidade", prossegue a carta aberta, apontando o papel desempenhado pela "gentrificação da cidade, acompanhada da subida astronómica dos preços das rendas e a redução do número de espaços disponíveis para alojamento temporário" no aumento do fenómeno. "Estas tendas, como tantas outras espalhadas pela cidade, aumentam a cada dia, perante uma autarquia inerte, negacionista e negligente em relação ao número de pessoas em situação de pobreza extrema na cidade", enquanto as pessoas em situação de sem-abrigo "são expulsas de uma rua para qualquer outra, sem que nada se altere em relação às condições desumanas em que vivem".
Por outro lado, o consumo nessas tendas ou em espaço público resulta também da ausência de espaços seguros para a utilização de drogas, com a sala de injeção aberta em agosto de 2022, com "limitados recursos físicos e humanos", a não operar de noite. "Invisibilizar o fenómeno e empurrar estas pessoas para zonas menos visíveis da cidade não fará com que as suas situações se alterem, nem fará com que desapareçam", explicam os subscritores.
"Nas ditas 'tendas de chuto' desmanteladas, grupos de pessoas protegiam-se mutuamente da morte por overdose. Partilhavam conhecimento para reduzir o risco de várias doenças infeciosas. Cuidavam de si, na ausência duma estrutura que delas cuide de forma articulada, integrada e respeitosa perante os seus direitos e dignidade enquanto pessoas, independentemente e além dos seus consumos", prossegue a carta aberta, comparando a situação com a que se vive na cidade de Toronto, no Canadá, onde "os célebres 'overdose prevention sites', localizados em tendas, carrinhas e contentores, já são reconhecidos desde 1995 como uma das mais poderosas estratégias de redução das mortes por overdose e doenças infeciosas de transmissão parentérica".
Criminalizar este consumo na via pública, com agravamento da sanção nos casos de consumo em edificações devolutas e espaços privados abertos ao público, "afetará desproporcionalmente aqueles que vivem em situações de pobreza e sem abrigo, pessoas que são, atualmente, as mais prejudicadas pela aplicação não equitativa da lei vigente", avisam, salientando a ausência de vantagens para a saúde pública dos regimes proibicionistas. "Muito pelo contrário – a criminalização dissuade o recurso às estruturas de apoio social e de saúde, aumentando o número de mortes por overdose e doenças infeciosas", como já reconhecem há anos os responsáveis da ONU.
"É profundamente míope ver o “problema” das drogas como sediado nas pessoas que as usam e será um retrocesso enorme, além de contrário à política nacional, a apologia da ampliação das sanções para quem usa drogas", que se limita a varrer o problema "para debaixo do tapete" em vez de o abordar devidamente a partir do respeito pelos direitos humanos e conjugando "respostas integradas e partilhadas entre os domínios de ação da Saúde, Segurança Social e Habitação".
A carta aberta foi redigida por Alexandra Fiães (psicóloga), Ana Gato (enfermeira), Beatriz Bartilotti Matos (médica), Ema Pos (médica), Francisca Bartilotti Matos (médica), Gonçalo Reis Dias (médico), Joana Canêdo (redutora de danos, doutoranda), Joana Vilares (assistente social), Pedro Frias (médico, doutorando) e Sérgio Gonçalves (ativista). Conta com a subscrição de dezenas de associações e personalidades ligadas à cidade do Porto, à redução de danos ou ao estudo e tratamento das dependências.