Está aqui
Argentina: um retrato das eleições primárias
No último domingo, 12 de setembro, aconteceram as PASO (Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias), eleições internas nos partidos na Argentina; a eleição primária indica as tendências fundamentais para a eleição parlamentar de novembro, quando se renovam metade dos assentos na Câmara dos Deputados e um terço do Senado Argentino. Os resultados foram um desastre para o governo peronista. Já nesta semana, fruto da derrota eleitoral, abriu-se uma crise no coração do governo, com parte dos ministros colocando o cargo à disposição. (…) Vejamos mais de perto os resultados.
O peronismo teve o seu pior resultado histórico em eleições deste tipo. A aliança “Frente de todos” composta por Alberto Fernandez/Cristina Kirchner perdeu em 18 províncias, entre elas as cinco maiores; a derrota mais amarga foi na Província de Buenos Aires, onde governa, e em Santa Cruz, berço do Kirchnerismo.
Como escreveu a jornalista Sylvia Colombo, para a Folha de São Paulo: “No final, a principal força da oposição, a coligação de centro-direita “Juntos pela Transformação”, obteve 40,02% dos votos ao nível nacional, enquanto o peronismo obteve 31,03%”. Na Província de Buenos Aires, “Juntos pela transformação”, somando os seus dois candidatos, superou o peronismo. A coligação macrista venceu com folga a disputa na Cidade de Buenos Aires, com Maria Eugenia Vidal a chegar perto de 50%, contra apenas 24,66% do candidato do campo governamental Santoro. Este padrão de resultados repetiu-se por todo o país.
A primeira grande conclusão é a derrota do governo. Alberto Fernandez foi o grande derrotado da noite de domingo. O fracasso peronista abriu uma crise dentro do seio do governo. A semana foi marcada pelas cartas de renúncia de toda a ala Kirchnerista do Governo. Cristina K. veio a público colocar em questão a orientação política do presidente. Vários setores da dita “esquerda K” não escondem o mal-estar motivado pela derrota do modelo de Alberto. A miséria, o desemprego e a fome cresceram durante a pandemia. A política de privilegiar os mega-empreendimentos ligados ao capital, pela via da mineração, resultou em lutas importantes como na região de Chubut. E estamos nas vésperas de uma nova negociação com o Fundo Monetário Internacional. Um novo acordo “entreguista” faria cair por terra qualquer discurso “nacional e popular”.
Na contramão da crise peronista, as urnas mostraram um macrismo vivo. Expressão da linha da burguesia mais conservadora, apoiada nas classes médias conservadoras, a aliança de Macri, “Juntos pela transformação”, retomou importantes posições, e prepara-se para ser a grande vencedora nas eleições de novembro.
Há um novo elemento, contudo, na retomada da oposição de direita. O surgimento de uma corrente à direita do macrismo, com certos traços que dialogam com a extrema-direita, representada pelos chamados “libertários”. O seu líder, o controverso economista Javier Miley, fez atividades virtuais com Eduardo Bolsonaro e radicalizou à direita o seu discurso. Um partido com uma cartilha ultraliberal, que namora com posições ainda mais à direita, marcou a entrada na capital federal, alcançando 13%. Como noutros países, o Vox na Espanha e no México, o Chega em Portugal, o deslocamento eleitoral de uma ampla parcela para posições mais à direita é uma das novidades da PASO na Argentina.
Contudo, há um outro polo que se fortalece, independente do governo e da oposição de direita. A Frente de Esquerda (Unidade) obteve um resultado surpreendente. Conquistando mais de um milhão de votos, a Frente de Esquerda consolidou-se como terceira força nacional. Como saldo de uma extensão nacional, a FIT(U) pode obter mais quatro deputados no âmbito nacional, com destaques para as votações na Província – com Nicolas del Cano e Alejandro Bodart –, em Chubut, Salta e outras províncias. O grande destaque foi chegar perto de 24% em Jujuy, com o líder dos trabalhadores da limpeza, o indígena Alejandro Vilca. Tomada no seu conjunto, a esquerda fez 1 milhão e 300 mil votos. Uma expressão importante. Há um espaço real para a “esquerda da esquerda”.
Esse fortalecimento da esquerda indica uma dinâmica. A luta que o PTS e o MST fizeram para buscar a unidade de toda a esquerda – para além do FIT(U) com o Novo Mas e Luiz Zamora – mostrou-se justa. Se somados os votos na Capital Federal, chegaria perto dos 9% em termos absolutos. Contudo, uma candidatura com essa arrancada poderia gerar uma sinergia capaz de ir além da soma dos votos da FIT e Zamora e disputar com Miley, combatendo o crescimento da linha reacionária.
Há uma série de debates dentro da Frente de Esquerda. O MST luta para que o projeto se amplie de forma a disputar franjas que se deslocam do peronismo e das ilusões que a vitória de Alberto despertou. Para o avanço da esquerda da esquerda, é fundamental não se “apaixonar” pela votação positiva obtida nas PASO e sim lutar para a ampliação desse projeto. (…) Por outro lado, não se pode minimizar o peso da extrema-direita e deve-se combatê-la como estamos a fazer no Brasil e em outras partes do mundo.
O desafio argentino é grande. A crise orgânica na América Latina deve continuar durante todo um período, com viragens bruscas, à esquerda e à direita. Construir uma esquerda independente, mas capaz de dialogar com diferentes trajetórias, disputar setores de massas e preparar-se para as batalhas que estão pela frente é a tarefa mais urgente dos dias que vivemos.
Israel Dutra é sociólogo, membro da Direção Nacional do PSOL e do Movimento Esquerda Socialista (MES). É Secretário de Relações Internacionais do PSOL.
Trecho de um texto publicado no Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos/Marielle Franco. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.
Adicionar novo comentário