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Argélia: ignorando a voz das ruas, governo pode convocar eleições para dezembro

O general Gaïd Salah insiste em realizar eleições presidenciais em 2019, contradizendo a vontade expressa em mais de sete meses de mobilização popular. Ao mesmo tempo, as prisões arbitrárias aumentam. Por Luis Leiria.
Manifestantes defendem a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte
Manifestantes defendem a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte

Os deputados de uma Assembleia Nacional que nos últimos meses brilhou pela ausência reuniram-se em Argel esta semana para discutir e votar dois projetos de lei apresentados pelo Ministério da Justiça que reveem a legislação eleitoral e criam uma autoridade, dita independente, responsável pelas eleições. A oposição denunciou, porém, que os membros desta nova instituição são nomeados ou pelas autoridades centrais ou pelas locais, o que retira qualquer garantia de que novas fraudes massivas não venham a ocorrer.

As leis estão a ser discutidas em tempo recorde e têm a aprovação garantida pela maioria de deputados da Frente de Libertação Nacional (FLN) e da Reunião Nacional Democrática (RND), os dois partidos do poder. Os grupos parlamentares da Reunião pela Cultura e a Democracia (RCD), da Frente das Forças Socialistas (FFS) e do Movimento da Sociedade pela Paz (MSP) recusaram-se a participar no debate.

A nova legislação eleitoral aprovada em tempo recorde deverá levar o presidente interino Abdelkader Bensalah a convocar as eleições no prazo de três meses, permitindo assim a sua realização ainda em dezembro.

Existe, porém, um problema: é que a esmagadora maioria do povo argelino, que tem-se manifestado semanalmente já há mais de sete meses, deixou bem claro que se opõe à realização de eleições sob o atual governo, considerado parte do mesmo regime que governou o país desde a independência. A mobilização pacífica do povo argelino, conhecia como o hirak (movimento) tem insistido que previamente a qualquer eleição é necessário o afastamento de todos os representantes do regime que tinha no ex-presidente Abdelaziz Bouteflika a sua máxima expressão.

Até agora, a mobilização conseguiu provocar a demissão do presidente e o cancelamento das eleições presidenciais previstas inicialmente para 4 de julho. Mas, a partir daí, vem-se travando um braço-de-ferro entre o homem forte que assumiu, na prática, o poder – o general Gaïd Salah, chefe do Estado Maior do Exército e vice-ministro da Defesa – e a vontade expressa por milhões nas ruas.

Nas sextas-feiras, todas as semanas (e também nas manifestações estudantis das terças), grita-se em todo o país: “Fora o sistema!”, “Não vou votar enquanto vocês não se forem embora”, “Os generais para o lixo”, “Estado civil, não militar”, ou “Eleições sem garantias nas condições atuais: um suicídio”.

Aumenta a repressão

Neste 13 de setembro, a 30ª sexta-feira de manifestações, uma palavra de ordem nova foi cantada em todos os quadrantes da imponente manifestação em Argel, a maior dos últimos tempos e comparável, segundo o Liberté-Algérie ao início do hirak: “Karim Tabbou echaâb yehabou, El-Gaïd yehbas kalbou” (Karim Tabbou é o bem-amado do povo, El-Gaïd vai ter um ataque cardíaco).

Karim Tabbou
Karim Tabbou

Karim Tabbou é o porta-voz da União Democrática e Social (UDS), partido por ele fundado em 2013 depois de ter saído da Frente das Forças Socialistas no ano anterior e que o regime de Bouteflika se recusou a legalizar. Figura de destaque nas manifestações desde o início do hirak, é uma das vozes mais escutadas e respeitadas pelo povo na ruas e pelas redes sociais. Foi acusado de “atentar à moral do Exército”.

A prisão de Tabbou causou uma onda de indignação e condenação. Inúmeros jornalistas, escritores, advogados, universitários, cidadãos, partidos como a FFS ou o PST condenaram a prisão. “A ata de acusação incriminando Karim Tabbou é inaceitável. Karim Tabbou não criticou nem atentou contra a instituição militar. Criticou o comportamento anticonstitucional de certos generais que fazem política”, disse o professor universitário Lahouari Addi ao El Watan. “Criticar os generais não significa ser hostil ao Exército que é uma instituição do Estado. Os cidadãos têm o direito de criticar os funcionários que não se servem corretamente da instituição, e os generais são funcionários de uma instituição do Estado. Porque prenderam Tabbou e não os milhões de manifestantes das sextas-feiras que gritam o que ele diz?”

Libertar os presos por delito de opinião é uma tarefa prioritária do 'hirak'
Libertar os presos por delito de opinião é uma tarefa prioritária do 'hirak'

Segundo o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), a detenção de Tabbou “mostra uma vez mais o caráter autoritário do regime atual e as suas veleidades de usar a força para impor ao povo o seu roteiro, ou seja, a organização de uma eleição presidencial.” Denunciando energicamente a prisão, o partido considera que “mais que nunca é necessário organizar a base nos bairros, nas universidades e nos locais de trabalho para proteger as nossas liberdades democráticas e impor a libertação de todos os presos políticos.”

Dias antes da prisão de Karim Tabbou, o Comité Nacional de Libertação dos Detidos listava 42 presos por delito de opinião, presos preventivamente e cuja instrução do processo se prolonga sem explicação.

Segundo este coletivo, que junta familiares, advogados, jornalistas e militantes dos direitos humanos, as detenções ilegais visam “transformar os detidos em moeda de troca ou meio de chantagem para a concretização do roteiro” do poder argelino pressionando o hirak a aceitar as eleições presidenciais.

Nas manifestações de dia 13, foram detidos mais uma dezena de ativistas.

Além disso, a censura tem atingido os meios de comunicação, ameaçados pelo Estado de perderem a publicidade das empresas estatais. E, se não aceitam as pressões do regime, correm riscos muito grandes. É o caso do site de informação em língua francesa TSA, que há três meses está incessível na Argélia!

Meses decisivos

O general Gaïd Salah tinha previsto para dia 15 (este domingo) a convocatória das eleições. Com a aprovação da nova legislação eleitoral a toque de caixa, é provável que o presidente interino Bensalah venha a fazê-lo, seja domingo, seja nos dias seguintes. Para que se realizem ainda este ano, como pretende o general no poder, teria mesmo que ser nestes dias porque a Constituição impõe um prazo de três meses entre a convocação e a realização da eleição.

Mas nos dias do hirak na Argélia, convocar uma eleição não quer dizer que ela se realize. A que deveria ter ocorrido no dia 4 de julho foi cancelada por falta de candidaturas. É muito difícil promover eleições contra a vontade de um povo mobilizado.

É de esperar que os partidos do poder se acertem para apresentar um candidato, mas isso não é suficiente. Para garantir uma eleição credível, é também necessário ter candidaturas de oposição representativas. Os principais partidos da oposição socialista e democrática já se manifestaram contra umas eleições sob a vigência do atual governo. Mesmo que a eleição avance, pode acontecer que um movimento de desobediência civil, uma ideia cara aos manifestantes, deixe as urnas vazias.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
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