É uma coisa terrível testemunhar a destruição da nossa pátria. Quando penso no que vivemos neste último ano, sinto-me como se fosse perder a cabeça completamente . É um choque que ainda não consigo absorver. Tento não pensar de todo, na esperança de manter a minha sanidade até que acabe.
Os segundos passam como se fossem horas. Uma noite deste tormento já é suficientemente difícil; as nossas almas sentem-se suspensas no tempo, até que chega a manhã e temos de suportar mais um dia. Procuramos uma notícia que possa mudar as nossas vidas para melhor. Anseio pelo dia em que deixemos de ouvir o ruído constante das bombas, dos aviões de guerra e dos drones. O dia em que a morte pare.
No início, tinha esperança que a guerra acabasse numa semana ou duas, como no passado. Não vai durar mais do que um mês, assegurava às pessoas; se conseguirmos aguentar até lá, estaremos bem. Não sei porque é que eu tinha tanta certeza. Talvez acreditasse que o mundo iria intervir para acabar com esta loucura. Doze meses depois, sentimos que o mundo simplesmente aceitou o nosso sofrimento como se fosse o estado natural das coisas.
Num instante, a minha vida encheu-se de terror. A escola onde eu dava aulas foi destruída. Vários dos meus alunos e colegas foram mortos, martirizados antes mesmo de eu ter tido a oportunidade de me despedir. O coração de um colega simplesmente cedeu, incapaz de suportar tudo isto. Perdi o contacto com muitos dos meus amigos.
Já não podendo fazer o trabalho que amo, comecei a canalizar toda a minha energia restante para a escrita, tentando dar voz à experiência dos habitantes de Gaza sob o massacre brutal de Israel. Mas eu não sou uma outsider: enfrento todos os mesmos desafios que relato – desde a deslocação forçada à falta de comida, água e eletricidade e à ausência de cuidados de saúde.
Durante os primeiros oito meses da guerra, até conseguirmos comprar um painel solar, o meu pai ia a pé da nossa casa no bairro de Al-Fukhari, entre Khan Younis e Rafah, até ao Hospital Europeu para carregar os nossos telemóveis, baterias e outros aparelhos. A falta de alimentos e de água continua a ser um problema difícil e dispendioso: nunca esperei ter de pagar 70 dólares por água para uma semana, nem ter de carregar pesados contentores com a minha família só para encher os nossos depósitos.
Para a minha mãe, que sofre de uma doença dos ossos e dos nervos, este ano foi passado em constante sofrimento. Ela não se pode mexer sem os seus medicamentos, que procuramos em todos os hospitais e farmácias. Quando os conseguimos encontrar, compramos o máximo que podemos. Mas, muitas vezes, não conseguimos, pelo que ela reduziu a dose para que os medicamentos durem mais tempo. Ouvimos os seus gemidos, mas somos impotentes para aliviar o seu sofrimento.
Cada vez que saímos de nossa casa, reconhecemos a possibilidade de qualquer um de nós poder regressar numa mortalha. Sabemos que os bombardeamentos incessantes de Israel significam que não há lugar seguro em Gaza – mesmo dentro da nossa casa. Mas agradecemos a Deus todos os momentos por a nossa casa ainda estar de pé e poder oferecer uma sensação parcial de conforto.
A minha irmã não teve tanta sorte. Em dezembro, a sua casa no campo de refugiados de Khan Younis ficou fortemente danificada durante a invasão terrestre de Israel e ela veio viver connosco. Tentei consolá-la, mas ela ficou devastada com a perda da sua casa, roubada do futuro que planeava construir nela.
Agarrar-se ao lar e ter de sair
Nunca esquecerei a noite em que escapei da morte por pouco. Era o dia 16 de agosto e eu estava sozinha no segundo andar da casa da minha família. A minha mãe, o meu pai e a minha irmã estavam no andar de baixo e o meu irmão estava a brincar na rua com os amigos.
Ouvi o som do míssil quando desceu e preparei-me para a explosão para saber para onde correr. Mas não esperava que aterrasse tão perto – apenas a alguns metros da nossa casa. De repente, poeira, pedras e cacos de vidro voavam por todo o lado. Gritei para que alguém me salvasse. Ainda não sei como consegui descer ao primeiro andar; o fumo espesso impedia-me de ver à minha volta. Mas quando consegui sair, apercebi-me da dimensão dos estragos.
A casa dos nossos vizinhos tinha sido completamente destruída. As casas em redor ficaram muito danificadas, incluindo a casa do meu tio, que ficou meio destruída. A nossa casa também ficou danificada: os estilhaços abriram um grande buraco no telhado, todas as janelas ficaram estilhaçadas e o depósito de água ficou em ruínas. Tivemos a sorte de escapar com vida, mas ainda tenho nódoas negras nas costas.
Para mim, a casa é a vida. E, considerando tudo, é um milagre que ainda estejamos a viver na nossa. Mas por duas vezes fomos obrigados a abandoná-la quando os ataques de Israel se aproximaram, e de cada vez não sabíamos se teríamos uma casa para onde voltar. Trouxe-me recordações terríveis do ano 2000, quando eu tinha 8 anos e o exército israelita arrasou a nossa casa com um bulldozer; fiquei aterrorizada com a possibilidade de termos de voltar a viver esta perda dolorosa.
A nossa primeira deslocação foi durante as primeiras semanas da guerra, quando a nossa zona foi alvo de um forte bombardeamento. Passámos uma noite fria no parque de estacionamento do Hospital Europeu; os corredores no interior já estavam demasiado cheios para nos receberem. Não dormi um único momento. Sentia-me como se houvesse uma enorme pedra no meu peito, a pesar-me.
Depois, na manhã de 2 de julho, voltámos a fugir depois de o exército israelita ter emitido ordens de evacuação para o nosso bairro. Juntámos os nossos pertences num camião e fomos para a casa danificada da minha irmã, que tentámos arranjar o melhor que pudemos. Mas eu não conseguia suportar a agonia de ser deslocada da minha própria casa e, por isso, apesar do perigo, regressei passados dez dias com o meu pai e o meu irmão e a minha mãe juntou-se a nós pouco depois.
Quando voltámos a casa, o nosso bairro estava quase vazio. Muitos dos nossos vizinhos tinham fugido para Al-Mawasi, a chamada “zona humanitária”, e só regressariam cerca de dois meses mais tarde. Em várias ocasiões, com a incursão das forças israelitas na cidade, ficámos sitiados nas nossas imediações durante uma semana ou mais, sem podermos circular livremente sem corrermos o risco de sermos alvejados.
Na primavera, a minha mãe e eu tomámos a decisão de sair de Gaza. No início, ela estava relutante em viajar, preocupada em deixar para trás a minha irmã e os seus dois filhos. Mas, perante a falta de tratamento para a sua doença, concordou que seria o melhor.
O nosso plano de fuga estava em marcha. Conseguimos registar-nos numa agência de viagens para sair através da passagem de Rafah, as nossas malas estavam feitas e estávamos apenas à espera que os nossos nomes aparecessem na lista de saída. Na noite de 6 de maio, chegou finalmente a nossa hora. Então, aconteceu o inimaginável: na manhã seguinte, enquanto aguardávamos a confirmação de que poderíamos partir no dia seguinte, o exército israelita invadiu Rafah. A primeira coisa que fez foi ocupar a passagem de Rafah, cortando a nossa última passagem para o mundo exterior.
Todos os dias, esperamos que a passagem reabra para podermos sair. Sonhamos com esse momento. Mas cada dia que passo aqui presa, perco um pouco mais de esperança no futuro de Gaza.
Ruwaida Kamal Amer é uma professora e jornalista de Khan Younis.
Artigo publicado originalmente no +972.