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Antropoceno: o filme de uma inacreditável verdade

Pela pertinência e capacidade transformadora, os documentários de cinema ambiental merecem um novo estatuto. De magnitude de Aquarela à preocupação de Gunda, do russo Kossakovsky, passando pela doçura do candidato aos Óscares Honeyland até ao discurso de emergência de Joaquin Phoenix na sua noite de vitória. Artigo de Paulo Portugal, publicado na revista Esquerda.
Cena do filme "Aguarela"
Cena do filme "Aguarela"

Numa altura em que a temperatura amena de uma Primavera antecipada se impõe em pleno inverno e nos convida a usar roupa leve num sinal claro da atualidade das alterações climáticas, valerá a pena pensar, parar um pouco e considerar as preocupações ambientais como mais que uma narrativa sugerida por um qualquer blockbuster saído das linhas de produção de Hollywood destinado a levar às salas legiões de seres a engolir quantidades avantajadas de pipocas e sumos açucarados. O contraste foi assumido por Joaquin Phoenix no seu momento de global atenção mediática, durante o discurso aceitação do Óscar pelo filme Joker, ao apontar o dedo ao egocentrismo humano e prepotente.

Tal como o dossier ambiente esteve em cima da mesa da discussão do Orçamento de Estado por forma a que 2020 possa ser para o nosso país também um ano de clara mudança e, seguramente, um ano mais verde, também o cinema permite estabelecer uma dimensão bem real de um problema que muitos chefes de estado com responsabilidades acrescidas persistem em ignorar. Por aqui refletimos essa pluralidade de visões em que o peso da consciência ambiental deverá emergir na mesma medida em que compreendermos o significado do Antropoceno, ou seja, as consequências da ação do ser humano na evolução do planeta Terra.

No ano em que a Sibéria ardeu, uma boa parte da Amazónia foi consumida e até há bem pouco tempo a Austrália estava em chamas – sim, e como sempre, parte de Portugal foi uma vez mais consumida pelas chamas – percebemos como estamos longe de controlar os efeitos catastróficos das alterações climáticas que se propagam como um vírus, arrastando consigo a destruição dos recursos naturais e o crescimento desmesurado da população. Isto até ao momento em que alguém chama a atenção num documentário que citamos de cor: «Não haverá outras ameaças para além do terrorismo?» Talvez a nossa atitude apenas mude quando somos acordados para a realidade de uma forma profunda. Há momentos assim.

Os novos super-heróis 

É verdade que nesta altura já não precisamos do serviço de super-heróis, na linha de Kevin Costner, em 1995, a lutar contra um mundo submerso em Waterworld, ou quase uma década mais tarde, em O Mundo Depois de Amanhã (2004), com um Jake Gyllenhaal envolvo no processo inverso, ou seja, uma nova Era Glacial, ou mesmo a memória de Harrison Ford no mundo distópico de Blade Runner, tal como imaginado na novela de Philip K. Dick, apesar dessa antecipação científica, ambientada em Novembro de 2019, recentemente se ter dissolvido em passado. Talvez porque essas ameaças convertidas em entretenimento se tornaram demasiado reais e o impacto da gritante atualidade tenha acentuado um formato documental em vez de um qualquer disaster movie. 

Ainda recentemente, fomos confrontados com a beleza hiper-realista da natureza e tocados pelas imagens operáticas da ondulação da Nazaré, no tremendo Aquarela (2019), do russo Victor Kossakovsky, infelizmente sem superar a pré-seleção ao Óscar de Melhor Documentário. Raramente vimos imagens de uma tão grande exaltação, sobretudo quando disponíveis na altíssima definição de 96 imagens por segundo e um som com a qualidade ATMOS. Ou até do carinho pelos modos ancestrais de recolha do mel na Macedónia, no candidato final Honeyland.

Apesar do consenso científico sobre o impacto dos gases com efeito de estufa ser um tema já com cerca de três décadas, de resto com o devido reflexo no cinema, não podemos deixar de recordar o momento em que um ilustre orador demonstrou no seu documentário a formulação do problema como se explicasse “as preocupações ambientais para totós”. Para muitos, como para nós, foi o momento que separou um “antes” e um “depois” quanto à seriedade do tema ambiental. O impacto foi de tal forma que corremos para ser dos primeiros a apertar-lhe a mão e agradecer essa clareza de visão. O homem em questão era Al Gore, ele acabava de apresentar o filme Uma Verdade Inconveniente, no festival de Cannes em 2006, um documentário marcante que viria, de resto, a ganhar o Óscar de Melhor Documentário desse ano.

Seja como for, ainda hoje podemos verificar o que na altura Gore assinalava, sobretudo quando identificava que os 10 anos mais quentes do planeta haviam ocorrido nos últimos 14 e que o mais quente fora em 2005 (precisamente o ano do furacão Katrina). Naturalmente, década e meia mais tarde inúmeras tragédias ambientais foras devidamente documentadas. Muitos deles carregando a denúncia em filmes candidatos ao Óscar de documentário. Por exemplo, o tão esclarecedor Gasland (de Josh Fox, 2010) sobre a exploração descontrolada das perfurações hidráulicas em busca de gás natural – o fracking –, e o efeito altamente poluidor dos recursos de água potável. Numa cena inesquecível um homem acende um isqueiro debaixo de uma torneira provocando uma torrente de líquido a arder. Difícil de ignorar será também o mundo da rejeição em Wasteland (2010), em que o artista brasileiro Vik Muniz converte em arte despojos da lixeira do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Chegamos até ao extremo do terrorismo ambiental, no avassalador If a Tree Falls: A Story of the Earth Liberation Front (2011) em que o protesto sobre a desflorestação assume uma postura mais retributiva, ainda assim num filme admirável.

Num outro documentário (A Inundação da Terra, 2016) Leonardo DiCaprio a testemunhar que «quanto mais aprendo sobre estas questões (ambientais), e tudo o que contribui para o problema, percebo que afinal de contas sei muito menos do que pensava». Ele que percebe a importância dos influencers para facilitar a passagem da mensagem, mas que já em 2007 acusava a classe política e corporativa de «ignorarem a avassaladora evidência científica» que desequilibrou o ecossistema, insistindo na tentativa da nossa redução da pegada ecológica. Mesmo sem essa notoriedade, há quem viaje pelo mundo à procura de condições alternativas para viver, como sucedeu com os franceses, o ativista e escritor Cyril Dion e a atriz Mélanie Laurent, no muito revelador Amanhã (2015), vencedor do César de Melhor Documentário.

capas de filmes

CineEco, a ilha ambiental

No nosso país, existe uma certa teimosia em matéria de cinema ambiental há quase tanto tempo como a equação do problema e que nos permite o acesso a certos documentários que dificilmente teremos oportunidade de ver. É na cidade de Seia, presa no sopé da Serra da Estrela, que há mais de 25 anos um dos mais antigos e consistentes festivais de cinema ambiental do mundo aguenta graças ao apoio do município. Um «ato de resistência», como apelida o seu diretor Mário Branquinho, sublinhando mesmo que «a temática ambiental já deixou de ser um assunto para especialistas», no fundo, um assunto para ‘totós’, defendendo que «hoje ambientalistas somos todos nós», mesmo que defenda a dignidade do «filme de ambiente ser considerado cada vez mais um objeto artístico e cinematográfico». 

Sala de sessão no CineEco

Foi precisamente nesse município da Guarda que fomos renovando o conhecimento sobre o que de melhor cinema ambiental se vai fazendo pelo mundo. Como essa fascinante, complexa, enciclopédica mesmo, e inquietante obra-prima O Homem Que Comeu a Terra, do francês Jean-Robert Viallet, o melhor filme do CineEco do ano passado, ao refletir a ânsia humana do eterno progresso (da permanente necessidade de crescimento!) que nos remete até ao início das revoluções industriais para perceber aquilo que se ganhou (e sobretudo tudo o que se perdeu), no processo de exploração do globo generoso. Um manancial de oxigénio e água que em pouco mais de duzentos anos foi invadido por 1.400 milhões de toneladas de CO2 emitidas desde o início da industrialização e presas na baixa atmosfera. É esta era antes do desenvolvimento humano, que é definida por estudiosos científicos como o Antropoceno, aquela que precede as descobertas tecnológicas e as decisões políticas que nos levaram à globalização e à atual crise ambiental. 

Por aí podemos incluir a exploração do algodão, o ímpeto colonizador e a busca de recursos, o uso e consequências dos pesticidas, o atual agronegócio, a produção em massa das linhas de montagem americana, o uso do petróleo e a utilidade da indústria de guerra como geradora de grandes fortunas, até à química e a energia atómica, etc. etc. É essa viagem em fast forward que o filme de Viallet nos coloca diante dessa profunda inquietação em que se questiona a necessidade de crescimento e bem estar, eminentemente ligada a uma rutura ecológica e a catástrofes sucessivas, mesmo apesar dos sucessivos alertas ao longo os tempos que nos deram a globalização.

É precisamente esse modo de vida que é questionado em Rio Azul: Pode a Moda Salvar o Planeta? e que motiva a reflexão quando olhamos para as montras da GAP, H&M, Banana Republic, Zara ou outros colossos da fast fashion visados pelo filme. Nada como uma viagem pelos cursos de água onde foram relocalizadas as grandes fábricas de vestuário para se constatar os rios coloridos e repletos de matéria orgânica e química. Ou os efeitos nas calças de ganga usadas conseguidos com a aplicação de ácidos, permanganato de potássio e outros químicos, invariavelmente conduzidos ao rio, normalmente sem qualquer tipo de tratamento. Daí a piada de um chinês que garantia saber com antecipação a cor que ditaria a tendência da moda do ano seguinte pela cor que dominava as águas do seu rio. 

Começamos com Kossakovski e terminamos com ele, recuperando uma conversa que tivemos em Lisboa, mas que liga Aquarela ao seu próximo projeto igualmente filmado em 96 imagens por segundo. Assim descreve Gunda, o emergente documentário selecionado para o festival de Berlim: «Neste filme demonstramos como 2 biliões de vacas, dois biliões de porcos e 20 biliões de frangos não viverão muito mais que um ano, talvez dois, se tiverem sorte. Isso significa que iremos matar 4 biliões de animais por ano». É um pouco isso que se refere o discurso de Joaquin Phoenix ao sugerir «quando usamos o amor e a compaixão como princípios orientadores, conseguimos criar, desenvolver e implementar sistemas de mudança que irão beneficiar todos os seres humanos e o ambiente.»


Artigo de Paulo Portugal, publicado na revista Esquerda em março de 2020.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt
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