O caso começou com pinturas de parede no mês de outono de 2018: “Fora Boaventura. Todas sabemos”, dizia uma delas, escrita à entrada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Outras foram sendo feitas e prontamente apagadas.
Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Myie Nadya Tom, as três autoras de The walls spoke when no one else would, um capítulo do livro Sexual Misconduct in Academia – Informing an Ethics of Care in the University, publicado pela Routledge, colocam nesse episódio a ocasião em que comparam experiências e concluem que têm muitos pontos em comum: “as paredes falaram quando ninguém o fazia”.
O texto que agora publicaram, subtitulado “Notas autoetnográficas sobre uso do poder sexual como controlo de acesso na academia avant-garde”, não nomeia a instituição nem os acusados. Mas depreende-se que se trata do CES por ser a única que as autoras partilham no seu percurso. E os acusados, apelidados com alcunhas, “o professor estrela” e “o aprendiz”, também foram facilmente reconhecidos por quem conhece o meio. O Diário de Notícias identifica-os como sendo Boaventura Sousa Santos, diretor emérito da instituição, e Bruno Sena Martins, antropólogo. À reportagem estes assumem que o retrato é feito à sua medida, refutando todas as acusações de que são alvo.
O sociólogo Boaventura Sousa Santos diz àquele jornal que se trata de um “cancelamento” e que o conteúdo do texto é “uma distorção e uma falsificação da realidade a meu respeito do CES” que arrasa de “maneira vil e inqualificável” um “ambiente académico de proximidade e crescimento coletivo”. Para ele, “o objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor. O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjetividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz”.
Bruno Sena Martins também confirma ser visado: “não resta dúvida que a intenção das autoras é a de me expor, sem a coragem de dizer o nome, e que eu seria a pessoa designada por "Apprentice". (...) Ao contrário do que o capítulo ora publicado ardilosamente pretende insinuar, quero reiterar que em momento algum agredi física ou sexualmente [Myie Nadya Tom] ou qualquer outra pessoa.”
Para além do conteúdo das acusações, Bruno indigna-se contra o que avalia como racismo: “custa-me a acreditar que três investigadoras que trabalham com populações racializadas achem adequado designar um homem negro em termos que o colocam como lacaio de um qualquer senhor. Além de ser uma expressão profundamente infantilizadora, denota o racismo de quem não acredita que um homem negro em Portugal possa desenvolver uma carreira na academia sem prestar vassalagem”, vendo no texto um “teor colonialista”.
As acusações
No artigo contam-se casos, uns vividos pelas autoras, outros de que terão tido conhecimento, classificados como sexual assault ou sexual abuse, que poderão ser traduzidos como agressão sexual e abuso sexual. Vão desde um abraço demasiado demorado do “professor estrela” que fez a visada sentir-se incomodada, a um toque no joelho deste a uma doutoranda sua, em que a terá “convidado” a “aprofundar o relacionamento” enquanto “paga” pelo “apoio académico”.
Myie Tom acusa Bruno Sena Martins de uma conduta de agressão sexual, não ficando explícito do que se trata. Ter-se-á queixado a outra figura indicada no livro como a “Watchwoman”, que poderá ser traduzido como a sentinela, e que designa uma mulher não identificada, que não respondeu. O termo agressão sexual é utilizado ainda por outra das autoras que não o experienciou na primeira pessoas mas dizendo que teria contado um caso a uma colega que sobre a mesma pessoa terá identificado outro caso, não se ficando a saber a quem se referem estas acusações.
Tom já tinha acusado publicamentenas redes sociais, em janeiro de 2019, Sena Martins, que apresentou queixa por difamação contra ela. Este admite ter tido um relacionamento sexual com ela, respeitando o princípio do consentimento e acrescenta: "Nunca fui professor, orientador ou membro da mesma equipa de investigação da Miye, nunca tive nenhuma relação profissional com a Miye no CES e nem me lembro de alguma vez me ter cruzado com ela nas instalações do CES.” O caso acabou arquivado por impossibilidade de notificação dela.
CES anuncia investigação
Depois dos graffitti nas paredes, o assunto foi mencionado numa reunião da instituição em que Boaventura terá dito que teve "conversas adultas com pessoas adultas". Na altura não houve queixas formais à Comissão de Ética do CES. A seguir, em 2020 foram criados um Código de Conduta e uma Provedoria.
Face à publicação do texto, em comunicado, o centro diz que "estando o CES comprometido com o tratamento diligente deste tipo de ocorrências, decidiu averiguar a fundamentação das alegações produzidas” pelo que “irá constituir num curto prazo uma comissão independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas anti-éticas referidas”. Esta “será composta por dois elementos externos, um dos quais lhe presidirá, e pela Provedora do CES. Os membros externos a convidar terão competências reconhecidas no tratamento de processos análogos”.