Está aqui

Aaron Swartz, guerrilheiro da internet livre

Há dez anos o programador e ativista genial pelo acesso livre à internet foi encontrado morto quando era processado por ter descarregado milhões de artigos científicos do JSTOR. Nessa altura, Rafael A. F. Zanatta lembrou a vida de quem via no conhecimento compartilhado caminho para superar a mesquinhez capitalista.
Aaron Swartz, ativista pela internet livre, foi encontrado morto no dia 11 de janeiro em sua casa em Nova Iorque.
Este artigo pode também ser ouvido no Alta Voz, o podcast de leitura de artigos longos do Esquerda.net.
Para isso basta carregar nesta ligação.

O (suposto) suicídio do génio da programação e ativista Aaron Swartz não é somente uma tragédia, mas um sinal da enorme dimensão do conflito político e ideológico que envolve os defensores de uma Internet livre e emancipatória, de um lado, e grupos organizados dentro do sistema que pretendem privatizar e limitar o acesso à produção intelectual humana, de outro. Neste sábado (12/01/2013), colunistas de cultura digital de diversos jornais escreveram sobre a morte do jovem Swartz, aos 26 anos, encontrado morto num apartamento de Nova Iorque (ler os textos de John Schwartz, para o New York Times; Glenn Greenwald, para o The Guardian; Virginia Heffernan, para o Yahoo News; e Tatiana Mello Dias, para o Estadão). Face à turbulenta vida do jovem Swartz e ao seu projeto político de luta pela socialização do conhecimento, é difícil crer que o suicídio tenha motivações estritamente pessoais, como uma crise depressiva. A morte de Swartz pode significar um alarme para uma ameaça inédita ao projeto emancipatório da revolução informacional. O sistema jurídico está a ser moldado por grupos de interesse para a limitação da liberdade de cidadãos comprometidos com a luta de uma Internet livre. Tais cidadãos são projetados mediaticamente como inimigos desestabilizadores da ordem (hackers). Os utilizadores da Internet, sedados e dominados pela nova indústria cultural, pouco sabem sobre o que, de facto, está a acontecer mundo afora.

A visão pública da Internet do wiz-kid Swartz: os anos de formação

Nascido em novembro de 1986 em Chicago, Aaron Swartz passou a infância e juventude a estudar computação e programação por influência do seu pai, proprietário de uma companhia de software. Aos 13 anos de idade, foi vencedor do prémio ArsDigita, uma competição para websites não-comerciais “úteis, educacionais e colaborativos”. Com a vitória no prémio, Swartz visitou o Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde conheceu investigadores da área de Internet. Aos 14 anos, ingressou no grupo de trabalho de elaboração do versão 1.0 do Rich Site Summary (RSS), formato de publicação que permite que o usuário subscreva conteúdos de blogs e páginas (feeds), lendo-os através de computadores e telemóveis.

Aos 16 anos frequentou e abandonou a Universidade de Stanford, dedicando-se à fundação de novas empresas como a Infogami. Aos 17 anos, Aaron ingressou na equipe do Creative Commons, participando de importantes debates sobre propriedade intelectual e licenças open-source (ver a participação de Swartz num debate de 2003). Em 2006, ingressou na equipe de programadores da Reddit, plataforma aberta que permite que membros votem em histórias e discussões importantes. No mesmo ano, tornou-se colaborador da Wikipedia e realizou investigações importantes sobre o modo de funcionamento da plataforma colaborativa (ler ‘Who Writes Wikipedia?‘). Em 2007, fundou a Jottit, ferramenta que permite a criação colaborativa de websites de forma extremamente simplificada (aqui). Em pouco tempo, Swartz tornou-se uma figura conhecida entre os programadores e grupos de financiamento dedicados a start-ups de tecnologia. Entretanto, a sua inteligência e brilhantismo pareciam não servir para empreendimentos capitalistas. Tornar-se rico não era o seu objetivo, mas sim desenvolver ferramentas e instrumentos, através da linguagem de programação virtual, para aprofundar a experiência colaborativa e de cooperação da sociedade.

Aos 21 anos, Aaron ingressou em círculos académicos (como o Harvard University’s Center for Ethics) e não-académicos de discussão sobre as transformações sociais e económicas provocadas pela Internet, tornando-se, aos poucos, uma figura pública e um expert no debate sobre a “sociedade em rede”. O vídeo abaixo, gravado em São Francisco em 2007, mostra o raciocínio rápido e preciso de Swartz sobre a arquitetura do poder na rede e as mudanças fundamentais da transição dos media antes e depois da Internet.

Ativismo cívico e projetos políticos na rede: para além de empresas e lucros

A partir de 2008, Aaron Swartz – um “sociólogo aplicado“, como ele se autodenominava – engajou-se numa série de projetos de cunho político, voltados para ativismo cívico de base (grassroots) e para a partilha de conteúdo on-line. Dentre eles, destacam-se três projetos específicos: (i) Watchdog, (ii) Open Library e (iii) Demand Progress.

O Watchdog é um website que permite a criação de petições públicas que possam circular on-line. Trata-se de um projeto não lucrativo, cujo mote é Win your campaign for change. O objetivo é fomentar a prática cidadã de monitorização de condutas ilícitas, como se todos fossem “cães de guarda” da democracia. O segundo projeto, Open Library, pretende criar uma página da web para cada livro já publicado no mundo. O objetivo é criar uma espécie de “biblioteca universal” com bibliotecários voluntários, sendo possível o empréstimo on-line de e-books. Trata-se de um projeto sem fins lucrativos, nos quais programadores são responsáveis pelo registo e criação das páginas (em códigos abertos) para todos os livros (como diz o site: “Open Library é um projeto aberto: software, dados e documentações são abertos, e a sua contribuição é bem-vinda. Pode corrigir um erro, acrescentar um livro ou escrever um widget [programa complementar]. Temos uma equipa de programadores fantástica, que avançaram muito, mas não podemos fazer tudo sozinhos!” . O terceiro e mais interessante projeto é o Demand Progress, plataforma criada por Swartz para conquistar mudanças progressistas em políticas públicas (envolvendo liberdades civis, direitos civis e reformas governamentais) para pessoas comuns através do lobbying organizado de base. A atuação do DP dá-se de duas formas: através de campanhas on-line para chamar atenção das pessoas e contatar líderes do Congresso e através do trabalho de advocacia pública em Washington “nas decisões por trás das salas que afetam as nossas vidas”.

Em 2008, indignado com a passividade dos cientistas em relação ao controle das informações por grandes empresas, Swartz publicou um manifesto intitulado Guerilla Open Access Manifesto (Manifesto da Guerrilha pelo Acesso Livre). Trata-se de um texto altamente revolucionário, que encerra com um apelo: “Não há justiça em seguir leis injustas. É hora de vir à luz e, na grande tradição da desobediência civil, declarar nossa oposição a este roubo privado da cultura pública. Precisamos levar informação, onde quer que ela esteja armazenada, fazer as nossas cópias e partilhá-las com o mundo. Precisamos trazer material que está protegido por direitos autorais e adicioná-lo ao arquivo. Precisamos comprar bancos de dados secretos e colocá-los na Web. Precisamos baixar revistas científicas e subi-las para redes de partilha de arquivos. Precisamos lutar pela Guerilla Open Access. Se somarmos muitos de nós, não vamos apenas enviar uma forte mensagem de oposição à privatização do conhecimento – vamos transformar essa privatização em algo do passado” (cf. ‘Aaron Swartz e o manifesto da Guerrila Open Acess‘).

A força criadora do jovem Aaron Swartz residia num profundo espírito crítico e questionador. Nesta entrevista abaixo (sobre o Progressive Change Campaign), Swartz explica como o seu ativismo começou: “Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram o que deves fazer, ou o que a sociedade diz que deves fazer. Eu acredito que deves sempre estar a questionar. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo que se aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois de ter percebido isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia enganar-me e dizer ‘Ok, agora vou trabalhar para uma empresa’. Depois de ter percebido que havia problemas fundamentais os quais eu poderia enfrentar, não podia mais esquecer isso”. Nesta entrevista, Aaron (aos 22 anos), esclarece que livros como Understanding Power (de Noam Chomsky) foram fundamentais para compreender os problemas sistémicos da sociedade contemporânea. Todavia, a situação não é imutável. O primeiro passo é acreditar que é possível fazer algo.

 

A luta e a resposta do sistema: do movimento Anti-SOPA à batalha judicial do JSTOR

No final de 2010, Aaron Swartz identificou uma anomalia procedimental em relação a uma nova lei de copyright, proposta por membros dos partidos republicanos e democratas em setembro daquele ano. A lei tinha sido introduzida com apoio maioritário, com um espaço de poucas semanas para votação. Obviamente, segundo o olhar crítico de Swartz, havia algo por trás desta lei. O objetivo camuflado era a censura da Internet.

A partir da união de três amigos, Swartz formulou uma petição on-line para chamar a atenção dos usuários da Internet e de grupos políticos dos Estados Unidos. Em dias, a petição ganhou 10 mil assinaturas. Em semanas, mais de 500 mil. Com a circulação da petição, os democratas adiaram a votação do projeto de lei para uma analise mais profunda do documento. Ao mesmo tempo, empresas da Internet como Reddit, Google e Tumblr iniciaram uma campanha maciça para consciencialização sobre os efeitos da legislação (a lei autorizaria o “Departamento de Justiça dos Estados Unidos e os detentores de direitos autorais a obter ordens judiciais contra sites que facilitem ou infrinjam os direitos de autor ou cometam outros delitos e estejam fora da jurisdição norte-americana. O procurador-geral dos Estados Unidos poderia também requerer que empresas norte-americanas parem de negociar com estes sites, incluindo pedidos para que mecanismos de pesquisa retirem referências a eles e os domínios destes sites sejam filtrados para que sejam dados como não existentes”, como consta da Wikipedia).

Em outubro de 2011, o projeto foi reapresentado por Lamar Smith com o nome de Stop Online Piracy Act. Em janeiro de 2012, após um intenso debate promovido na rede, a mobilização de base entre ativistas chamou a atenção de diversas organizações, como Facebook, Twitter, Google, Zynga, 9GAG, entre outros. Em 18 de janeiro, a Wikipedia realizou um blackout na versão anglófona, simulando como seria se o website fosse retirado do ar (cf. ‘Quem apagou as luzes em protesto à SOPA?‘ e ‘O apagão da Wikipedia‘). A reação no Congresso foi imediata e culminou na suspensão do projeto de lei. Vitória do novo ativismo cívico? Para Swartz, sim. Uma vitória inédita que mostrou a força da população e da mobilização possível na Internet. Mas não por muito tempo. Num discurso feito em maio de 2012 — que merece ser visto com muita atenção –, Aaron foi claro: o projeto de lei para controlar a Internet irá voltar, com outro nome e outro formato, mas irá voltar…

Mas não foi somente através da liderança no movimento de peticões on-line que culminou nos protestos contra o SOPA que Swartz chamou a atenção das autoridades norte-americanas. Em 2008, ele foi investigado pelo FBI por ter descarregado milhões de documentos públicos da Justiça mantidos pela empresa Pacer (que cobra pelo acesso a documentos públicos!). A investigação, entretanto, não resultou em processo criminal ou civil.

O processo kafkiano que pode estar relacionado com a morte de Swartz teve início em julho de 2011, quando o ativista foi processado por “fraude eletrónica, fraude de computador, de obtenção ilegal de informações a partir de um computador protegido”, a partir de uma acusação da companhia JSTOR - uma das maiores organizações de compilação e acesso pago a artigos científicos. Aaron programara um dos computadores públicos do Massachussets Institute of Technology (MIT) para aceder à base de dados da JSTOR e fazer download de artigos científicos de diversas áreas do conhecimento. Em poucos dias, baixou mais de quatro milhões de artigos científicos (e não se sabe qual era o seu plano inicial, ou seja, de que modo ele pretendia publicar esses documentos de acordo com a tese do open acess movement). Pelo facto de Swartz ter feito o download de muitos documentos ao mesmo tempo (mas o acesso pelo computador da instituição não permite isso?), foi processado por fraude electrónica e obtenção ilegal de informações.

O sentido de um processo kafkiano (referente ao Processo da obra literária de Franz Kafka) deve ser melhor explicado. A questão é que Aaron Swartz não cometeu, a princípio, nenhum ato ilícito (ele poderia fazer o download de artigos científicos como qualquer académico ligado a uma máquina com acesso ao JSTOR pode). E mesmo depois de acusado, entregou-se à Justiça e afirmou que não tinha intenção de lucrar com o ato. Face ao aviso de que a distribuição dos arquivos infringiria leis nacionais, Aaron devolveu os arquivos digitalizados para a JSTOR, que retirou a ação judicial de caráter civil. Ou seja: caso encerrado, correto?

Errado. Após o acordo entre Aaron e a JSTOR, a Promotoria de Justiça de Boston, através da Procuradora Carmen Ortiz, indiciou Aaron Swartz por diversas ofensas criminais, pedindo a condenação do ativista em 35 anos de prisão (sic!) e o pagamento de 1 bilhão de dólares de multa. O processo penal teve início, sendo oferecida a Swartz a oportunidade de fazer um acordo penal que reconhecesse sua culpa. Irredutivelmente — mesmo tendo sido aconselhado por alguns advogados a agir em sentido contrário –, Swartz recusou-se a declarar-se culpado, por não considerar os seus atos como ilícitos. Mesmo com a intervenção da JSTOR, que reconheceu não se sentir prejudicada pelos atos de Swartz, a Procuradoria continuou a amedrontá-lo. O processo penal — extremamente custoso nos Estados Unidos — esvaziou as suas poucas reservas financeiras e gerou um enorme trauma psicológico. O julgamento da ação penal estava marcado para abril de 2013 e Aaron Swartz recusava-se a comentar o assunto em entrevistas, palestras e eventos. Alguns especulam que o suicídio está ligado com o processo penal, considerado por muitos como uma resposta do governo dos Estados Unidos contra o ativismo libertário de Aaron. Na opinião de Greenwald, o colunista do Guardian, ele “foi destruído por um sistema de ‘justiça’ que dá proteção integral aos criminosos mais ilustres — desde que sejam integrantes dos grupos mais poderosos do país, ou úteis para estes –, mas que pune sem piedade e com dureza incomparável que não tem poder e, em especial, quem desafia o poder”.

Até o momento, não há cartas ou posts de Swartz sobre o assunto. Não há, aliás, confirmação concreta de que houve suicídio (ou se foi uma morte herzogiana, comum na história brasileira). Trata-se de um grande mistério. Para a família de Swartz, uma coisa é clara: se houve suicídio, o bullying judicial realizado pelo Judiciário norte-americano foi um fator que levou o jovem ativista a encerrar a própria vida, num sinal de protesto contra todo o injusto sistema.

As lições de um jovem revolucionário

Há muito o que extrair das intervenções, dos textos e das ações do génio da informática Aaron Swartz. Ativista político, sociólogo aplicado, defensor da Internet livre, criador de mecanismos de partilha de dados e crítico da forma como a sociedade global se está a estruturar contra as liberdades básicas, Swartz deixa aos jovens da era da Internet um forte recado revolucionário: a mudança começa em cada um. Todo o indivíduo possui autonomia para pensar e contestar o que está colocado. Além de contestar, a ação colaborativa pode modificar as instituições existentes numa perspectiva pós-capitalista. O conhecimento pode ser compartilhado, softwares podem ser desenvolvidos em conjunto e projetos podem ser executados com financiamento coletivo.

Informação é poder. Swartz viu muito além dos seus contemporâneos e tentou mobilizar os utilizadores da Internet para a construção de um outro mundo. Infelizmente, não foi apoiado da forma como precisava. A reverberação das suas ideias e ações ainda é muito fraca. Mas isso não é motivo para desistência. A brevíssima vida deste jovem norte-americano pode inspirar corações e mentes. Em tempos de discussão no Brasil sobre o Marco Civil da Internet, corrupção da política e agigantamento do Judicário, o resgate do seu pensamento é necessário. Ainda mais num país que conta com mais de 80 milhões de utilizadores da Internet. A questão é saber se as pessoas terão curiosidade e interesse em compreender o projeto de vida de Swartz ou se irão continuar a ler notícias produzidas por empresas interessadas na limitação da liberdade na Internet.

Eu fico com o projeto de Swartz. Aliás, fique livre para copiar esse texto.



Rafael A. F. Zanatta era, quando escreveu este texto, mestrando em sociologia jurídica (FD/USP), investigador (Direito GV), professor universitário e advogado. Editor do blog E-mancipação.

Atualmente é diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, doutorando pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP, Research Fellow da The New School (EUA), membro da Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) e do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil.

Artigo publicado originalmente no Esquerda.net a 18-01-2013 a partir do site Outras Palavras. Editado para português de Portugal.

Termos relacionados Cultura
Comentários (1)