Em primeiro lugar, há que assinalar que até os inspiradores destas políticas admitem agora abertamente não só o seu patente falhanço, mas também que as suas receitas eram desde o início totalmente erradas, irrealistas, ineficazes e mesmo contraproducentes. Tomemos como exemplo uma questão que não é secundária mas está no centro do problema, a própria dívida pública grega. Segundo todos os responsáveis do desastre grego, se as suas políticas de austeridade mais que draconiana fossem 100% eficazes, o que é totalmente irrealista, a dívida pública grega seria reduzida em 2020 para 120% do PIB nacional, isto é para uma percentagem que era... a mesma de 2009 quando começaram com todo este jogo macabro. Em resumo, o que nos dizem agora cinicamente, é que dizimaram toda uma sociedade europeia... absolutamente para nada!
Mas, como se tudo isto não bastasse, persistem em impor aos gregos – mas também praticamente a todos os países – exatamente as mesmas políticas que eles próprios admitem que falharam. É assim que estamos agora no sétimo “Memorando” de austeridade e de destruição de serviços públicos, depois dos seis primeiros terem provado uma total ineficácia. Assiste-se em Portugal, na Irlanda, em Itália, em Espanha e um pouco por toda a Europa à aplicação dos mesmos planos de austeridade draconiana que conduzem ao mesmo resultado em todo o lado: afundamento da economia e das populações numa recessão e num marasmo sempre mais profundos.
Na realidade, expressões como “austeridade draconiana” são absolutamente insuficientes para descrever o que se está a passar na Grécia. Os salários e as reformas são amputados de 50% ou mesmo, em certos casos, de 70%. A desnutrição faz estragos entre as crianças da escola primária, a fome faz a sua aparição sobretudo nas grandes cidades do país, onde os centros são cada vez mais ocupados por dezenas de milhares de pessoas sem-abrigo, miseráveis, esfomeados e em farrapos. O desemprego é agora de 20% da população e de 45% nos jovens (49,5% para as jovens). Os serviços públicos são liquidados ou privatizados tendo como consequência que as camas dos hospitais foram reduzidas (por decisão governamental) em 40%, que é preciso pagar mesmo muito caro para dar à luz, que já não há nos hospitais públicos curativos ou medicamentos básicos, como aspirinas. Em janeiro de 2012, o Estado grego não é capaz de fornecer aos alunos os livros do ano escolar começado em setembro passado. Dezenas de milhares de cidadãos gregos deficientes, inválidos ou que sofrem de doenças raras veem-se condenados a uma morte certa e a curto prazo, devido ao Estado grego lhes ter cortado os subsídios e os medicamentos. O número de tentativas de suicídio aumenta a uma velocidade alucinante, como além disso o dos seropositivos e toxicodependentes abandonados agora à sua sorte pelas autoridades. Milhões de mulheres gregas veem-se agora carregadas com tarefas normalmente assumidas pelo Estado, através dos serviços públicos quando estes não tinham sido desmantelados ou privatizados pelas políticas de austeridade. A consequência disso é um verdadeiro calvário para as mulheres gregas: elas são não só as primeiras a serem despedidas e são constrangidas a assumir tarefas dos serviços públicos, trabalhando cada vez mais gratuitamente em casa, mas são também diretamente visadas pela reaparição da opressão patriarcal que serve de álibi ideológico para o retorno forçado das mulheres a casa.
Poderíamos continuar esta descrição do horror que sofre a população grega quase até ao infinito. Mas, mesmo limitado ao que acabamos de dizer, constata-se que nos encontramos diante de uma situação social que corresponde perfeitamente à definição de estado de necessidade,ou de perigo reconhecido há muito pelo direito internacional. E este mesmo direito internacional obriga expressamente os Estados a dar prioridade à satisfação das necessidades elementares dos seus cidadãos e não ao reembolso das dívidas.
Como sublinha a Comissão de direito internacional da ONU a propósito do estado de necessidade: “Não se pode esperar que um Estado feche as escolas e as universidades e os tribunais, que abandone os serviços públicos de tal forma que abandone a sua comunidade ao caos e à anarquia simplesmente para assim dispor de dinheiro para reembolsar os créditos estrangeiros ou nacionais. Há limites ao que se pode razoavelmente esperar de um Estado, da mesma maneira que a um indivíduo.”
A nossa posição, partilhada por milhões de gregos, é clara e simples e resume-se ao respeito do direito internacional. Os gregos não devem pagar uma dívida que não é a sua por várias razões.
Em primeiro lugar, porque a ONU e as convenções internacionais – assinadas pelo seu país, mas também pelos países dos seus credores – intimam o Estado grego a satisfazer com toda a prioridade não só os seus credores mas também as suas obrigações para com os nacionais e os estrangeiros que se encontram sob a sua jurisdição.
Em segundo lugar, porque esta dívida pública grega, ou pelo menos uma parte muito importante dela, parece reunir todos os atributos de uma dívida odiosa, e em qualquer caso ilegítima, que o direito internacional intima a não reembolsar. É por isso preciso tudo fazer não para impedir (como o Estado grego faz agora) mas para facilitar a tarefa da Campanha grega para a auditoria cidadã a esta dívida afim de identificar a sua parte ilegítima.
A nossa conclusão é categórica: a tragédia grega não é fatal nem insolúvel. A solução existe e o repúdio, a anulação e o não pagamento da dívida grega fazem parte dela, enquanto primeiro passo na boa direção. Ou seja, para a salvação de todo um povo europeu ameaçado por uma catástrofe humanitária sem precedente em tempo de paz...
Intervenção de Sonia Mitraliana Comissão Social da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa de Estrasburgo sobre “Medidas de austeridade: Um perigo para a democracia e os direitos sociais”. Publicada em cadtm.org. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net