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2013: Como a Europa se prepara para espiar os cidadãos?

Biometria, videovigilância, drones, deteção de comportamentos anormais, modelos matemáticos para identificar suspeitos... A União Europeia financia mais de 190 programas de investigação sobre segurança e vigilância. Em benefício dos industriais, que reciclam as tecnologias militares para vigiar as populações. Por Rachel Knaebel.
A União Europeia financia mais de 190 programas de investigação sobre segurança e vigilância – Foto de Solo/Flickr

Eles têm nomes estranhos: Tiramisu, Pandora, Lotus, Emphasis, Fidelity, Virtuoso... Na aparência, são acrónimos inofensivos. Na realidade, escondem 195 projetos europeus de investigação no domínio da segurança e da vigilância. Projetos relativamente inquietantes para as nossas liberdades. E financiados pela Europa no quadro de parcerias público-privadas.

O exemplo mais emblemático: o projeto Indect (“Sistema de informação inteligente de apoio à observação, investigação e deteção para a segurança dos cidadãos em meio urbano”), lançado há quatro anos, denunciado no final de outubro por manifestações em toda a Europa. Indect visa permitir uma “deteção automática” das ameaças e situações perigosas – como os tumultos – ou “o uso de objetos perigosos” - facas ou armas de fogo. Tudo é bom para combater “o terrorismo e outras atividades criminosas como o tráfico de seres humanos ou a pornografia pedófila”. E assegurar a segurança dos cidadãos... Só que se trata também de, com o Indect, detetar “automaticamente” (sic) os comportamentos suspeitos, a partir de imagens de videovigilância, de dados audio ou trocados na net. Bem-vindos ao Minority Report!

Detetar os comportamentos “anormais”

Concretamente, o Indect é um sistema de vigilância, que, a partir de imagens e sons captados no espaço público e informações obtidas na Internet, alertará os serviços de polícia em caso de situação considerada perigosa: pessoas paradas numa rua movimentada, um movimento de multidão, veículos a circularem devagar, um apelo estranho numa rede social. Estes critérios “de anormalidade” serão definidos pelas forças de segurança... Tudo isto alimentará um motor de busca. Para além de espiar o espaço público, o Indect assegurará “a vigilância automática e continuada dos recursos públicos como os sites web, fóruns de discussão, redes P2P ou sistemas automáticos individuais”. Mas não se preocupem: estão previstas ferramentas para ocultar certos dados privados, como rostos ou placas de matrícula nas imagens vídeo. As informações devem ser encriptadas antes da sua transmissão aos serviços autorizados. Ufa!

Entre os institutos de investigação que participam no projeto, ao lado de várias polícias e empresas1, está o da universidade de Wuppertal na Alemanha que é especializado em segurança dos transportes e em proteção civil contra catástrofes. A universidade louva os efeitos positivos que poderão ter estas técnicas para prevenir uma situação como a da Love Parade de Duisburgo, em 2010, em que 21 pessoas morreram num movimento de pânico da multidão.

No quadro do Indect, ele desenvolve modelos matemáticos para avaliar, a partir de imagens de videovigilância, a velocidades dos objetos, ou “para detetar o movimento numa área perigosa, como as vias numa estação”, explica o porta-voz da universidade, Johannes Bunsch – o único oficialmente autorizado a falar do projeto. Correr para apanhar um comboio, reagir com um gesto brusco, e eis-nos no motor de busca ao qual se ligam os serviços de polícia. “O sistema pode detetar uma pessoa a atar os sapatos numa loja ou a tirar fotografias num aeroporto e considerar isso como um comportamento “anormal”. Na realidade, o sistema não sabe se se trata de um comportamento indesejável. Deteta apenas um comportamento que se desvia dos comportamentos normais que lhe ensinámos”, ilustra o professor Dariu Gavrila (citado pelo site Owni) que, na universidade de Amesterdão, trabalha em algoritmos para detetar comportamentos agressivos.

Porém, o objetivo afirmado do Indect é lutar contra a criminalidade e o terrorismo, e não o de evitar choques em cadeia nas auto-estradas ou movimentos de pânico trágicos. E isto, graças à União Europeia que financia 75% do projeto (15 milhões de euros no total). “Nós desenvolvemos apenas os procedimentos técnicos”, defende-se prudentemente o porta-voz. “A competência de decidir como utilizar a tecnologia pertence aos políticos”. É esse o problema: quem controla estes programas de investigação e a quem beneficiarão?

Polícia e empresas no comité de ética

Para responder às críticas, o Indect dotou-se de um comité de ética. A sua composição dá que pensar: entre os nove membros estão dois chefes dos serviços de polícia envolvidos no projeto e um industrial de uma das empresas que nele participam... O seu princípio no mínimo parece ambíguo: “A máxima 'se não fizeste nada de mal, então nada tens a temer' só é válida se todos os aspetos da justiça criminal funcionam perfeitamente, em todas as ocasiões.”2 Isto significa que um cidadão que caia por erro nas malhas securitárias do Indect terá poucas possibilidades de sair dele? “Os comités de ética que acompanham os projetos como o do Indect são sobretudo alibis”, pensa o eurodeputado Jan Phillip Albrecht (Verdes), que faz parte do comité de ética do projeto Addpriv, que visa a criação de ferramentas para limitar o armazenamento de dados inúteis e tornar os sistemas de videovigilância “mais compatíveis” com o direito dos cidadãos à privacidade.

Indect não é o único programa espião generosamente financiado pela UE. O Arena3 visa criar um sistema móvel de vigilância e é subvencionado em 3 milhões de euros. O Subito assinala os proprietários de bagagens não identificadas. O Samurai significa “vigilância dos comportamentos suspeitos e anormais com a ajuda de uma rede de câmaras e sensores para um melhor conhecimento das situações”4, nos aeroportos e nos espaços públicos. Trata-se de um sistema de videovigilância com câmaras fixas e móveis – em agentes de polícia em patrulha por exemplo -, equipadas de sensores que permitem seguir uma pessoa, encontrar o proprietário de uma bagagem abandonada ou de um veículo estacionado num local público. Realizaram-se ensaios em 2009 no aeroporto londrino de Heathrow. Bruxelas concedeu-lhe 2,5 milhões de euros.

O envelope europeu para estes dispositivos eleva-se a 1,4 mil milhões de euros em cinco anos5. Esta futura vigilância generalizada desenvolve-se nos transportes ferroviários, nos aeroportos e nos mares, com projetos especialmente concebidos para repelir os imigrantes. Este programa levanta numerosas questões, tanto mais que escapa a qualquer controlo democrático ou qualquer objeção da sociedade civil. “Os representantes da sociedade civil, os parlamentares, assim como as organizações responsáveis pelas liberdades civis e pelas liberdades fundamentais, incluindo as autoridades de proteção de dados, foram largamente postas de lado”, alerta um relatório encomendado pelo Parlamento Europeu em 20106. Viva a Europa dos cidadãos!

Uma política de vigilância moldada pelos industriais

Nada de eleitos nem de organizações não-governamentais, mas uma omnipresença das grandes empresas da segurança e da defesa! Em particular as francesas: o grupo aeronáutico franco-alemão EADS, e as suas filiais Cassidian e Astrium, participam em cerca de 20 projetos diferentes. Thales France está em 22 projetos e coordena cinco deles. Sagem e Morpho, duas filiais do grpo francês Safran, participam em 17 projetos, que incluem o desenvolvimento de drones de vigilância ou a conceção de passaportes e de ficheiros biométricos. Cada um com milhões de euros de subvenções. Investigações que assegurarão sem qualquer dúvida numerosas oportunidades para estas tecnologias securitárias, na Europa e para além dela.

Porquê uma tal presença? “São na maioria grandes sociedades de defesa, as mesmas que participaram na definição do Programa de investigação europeu em matéria de segurança, que são os principais beneficiários dos fundos”, aponta o estudo do Parlamento Europeu. Várias multinacionais – incluindo, do lado francês EADS, Thales ou Sagem7 – participaram estreitamente na definição do próprio programa de investigação. Desde 2003, os seus representantes e administradores (CEO's) aconselham a Comissão Europeia sobre o assunto, por via de diferentes grupos de trabalho e comités, que têm por missão estabelecer prioridades da política europeia de investigação em segurança8. É caso para perguntar se são as multinacionais ou as instituições eleitas quem define a política de segurança europeia! “O que interessa às empresas do setor não é tanto vigiar as populações mas fazer dinheiro”, considera Jean-Claude Vitran, da Liga dos direitos do homem.

Reciclar as tecnologias militares

É que o mercado europeu da segurança vale ouro. Entre 26 e 36 mil milhões de euros. E 180.000 empregos, segundo a Comissão Europeia, que calcula que no decurso dos últimos dez anos o tamanho do mercado mundial da segurança “tenha quase decuplicado, passando de cerca de 10 mil milhões de euros para cerca de 100 mil milhões de euros em 2011.”9 Mas Bruxelas teme pela competitividade das firmas europeias. A solução? Desenvolver “um verdadeiro mercado interno das tecnologias da segurança”, explica Antonio Tajani, vice-presidente da comissão responsável pelas empresas. Um mercado essencial para consolidar a posição das empresas do setor. Por isso, Bruxelas quer explorar as sinergias “entre a investigação em matéria de segurança (civil) e a investigação no domínio da defesa”. Uma estratégia dual: as tecnologias desenvolvidas para fins militares podem também ser vendidas no mercado interno da segurança civil, para a vigilância dos imigrantes, dos cidadãos, dos transportes e dos espaços públicos.

“Os industriais da defesa estão conscientes que o mercado militar pode ser aplicado na segurança civil. E que eles podem fazer aí os seus grandes negócios”, acrescenta Jean-Claude Vitran. As empresas do setor lucram com os fundos de apoio à investigação, a todos os níveis. Para além da questão da segurança do programa de investigação europeia, pelo menos sete países lançaram programas nacionais, incluindo a França, com o programa “Conceitos, sistemas e ferramentas para a segurança global” da Agência nacional de investigação. O setor não está, claramente, submetido à austeridade.

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Extrato de artigo de Rachel Knaebel, publicado em Basta! Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


1 Doze institutos de investigação, incluindo a escola de engenharia INP de Grenoble – que não respondeu ao nosso pedido de informações -, quatro empresas alemãs e austríacas e a polícia da Polónia e da Irlanda do Norte.

2 Leia aqui

3Architecture for the Recognition of threats to mobile assets using Networks of multiple Affordable sensors, Arena.

4 Suspicious and abnormal behaviour monitoring using a network of cameras and sensors for situation awareness enhancement.

5 O programa quadro europeu dispõe de um orçamento de 51 mil milhões de euros atribuídos à investigação para o período 2007-2013, dos quais 1,4 mil milhões para a componente “Segurança”.

7 Mas também BAE Systems, Ericsson, Saab, Siemens…

8 O “Grupo de personalidades” (GOP) em 2003, depois o Comité do conselho da investigação europeia em segurança (European Security Research Advisory Board, Esrab) em 2005. Em 2007, foi criado um terceiro comité para acompanhar desta vez o sétimo programa quadro de investigação – o Fórum europeu para a investigação e a inovação em segurança (Esrif).

9 Ler o seu comunicado.

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