“Vencer o Medo”, de Manuel Carvalho da Silva

27 de novembro 2012 - 23:33

O que talvez melhor represente a coerência do livro é a atitude que o autor nos propõe para a política: escolher ideias fortes para gerar alternativas. Que Carvalho da Silva fale claro à esquerda é uma virtude que merece respeito.

porFrancisco Louçã

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Carvalho da Silva reclama a política como a expressão e gestão de alternativas e a criação de novas relações de forças. Foto de Paulete Matos

Carvalho da Silva publicou recentemente “Vencer o Medo – Ideias para Portugal” (Lisboa, Temas e Debates, 217 pgs.). O livro recolhe trabalhos e comunicações dos anos mais recentes, nomeadamente comunicações a congressos de sociologia, discursos enquanto secretário-geral da CGTP, cargo que ocupou durante 26 anos (1986-2012), apresentações programáticas e também o texto de divulgação dos objetivos do Observatório sobre Crises e Alternativas, que coordena.

Embora os textos sejam de natureza diferente e sejam portanto heterogéneos, como acontece sempre num livro que compila escritos vários para públicos vários e com intenções diferentes (o que suscita repetições e insistências, como por exemplo nas pgs. 174-5 e 194 e sgs.), o que talvez melhor represente a coerência do livro é a atitude que o autor nos propõe para a política: escolher ideias fortes para gerar alternativas.

Só posso aplaudir essa escolha. Estamos num momento paradoxal em que a hegemonia ideológica da direita é arrasadora, mas para propor a mais inverosímil e desagregada das propostas: empobrecer, cortar na economia para refazer a economia, sob a engenharia social frenética de um “homem novo” no “mercado novo”. É uma ideia dominante que não se diz a si própria. E é também um momento paradoxal em que à esquerda se polarizam ideias para alternativas consistentes, a partir da rutura com o Memorando para enfrentar a chantagem da dívida, mas em que ao mesmo tempo se movem desesperadamente as forças casamenteiras para apoiar a alternativa do PS no centro-esquerda com uma aliança histórica com a direita.

Por estas duas razões, hoje em Portugal só a esquerda enuncia as suas palavras: recusar a troika e a estratégia da depressão, para anular a dívida que não devemos pagar. Essa esquerda diz o que quer e compromete-se com a luta popular. A direita, pelo contrário, esconde as suas palavras, sob o manto da “reforma estrutural” e do “vivemos acima das nossas possibilidades”, e o centro-esquerda mal esconde a sua deriva resignada para a aceitação da troika como horizonte inultrapassável dos seus amanhãs que cantam. Que Carvalho da Silva fale claro à esquerda é uma virtude que merece respeito.

Quatro ideias fortes

Na minha opinião, as ideias mais fortes do livro são quatro.

Em primeiro lugar, a Europa. Sem concessões, Carvalho da Silva parte da realidade e não dos sonhos: “Desde Maastricht que o projeto europeu é um projeto claramente de direita. A social democracia andou anos e anos a fazer cedências e compromissos em nome de evitar o pior e foi credibilizando um profundo desvio de rumo. Tudo serviu para esse desvio, começando pelo processo de criação e pelos objetivos do euro, passando pelo processo de alargamento a leste, até às revisões dos tratados” (pg. 34). Mais ainda: “A União Europeia confirmou-se, nestes últimos quatro anos, como polo avançado da ofensiva neoliberal global” (pg. 119). Por isso mesmo, “o problema do modelo institucional não se resolverá enquanto a União Europeia não for, para além de outras coisas, um efetivo espaço de cooperação entre Estados” (pg. 57). A Europa, que tem que ser mais do que foi prometido, não pode ser uma imposição contra os povos, mas deve antes ser uma forma de cooperação com democracia. Essa cooperação tem uma condição institucional, a derrota do quadro constrangedor criado desde Maastricht.

A segunda ideia forte é a reivindicação da centralidade do trabalho na sociedade capitalista. Carvalho da Silva encontra nesta disputa sobre o papel do trabalho um fator de adaptação e de submissão, ou de afirmação de uma alternativa: “As teorias que atacam a centralidade do trabalho, expressa ou implicitamente, procuram acantonar o trabalho debaixo dos paradigmas dominantes da economia” (pg. 64, também pgs. 24 e 159). O autor disseca todos os sentidos do trabalho, da produção à alienação mercantil: o trabalho é um fator de produção, uma atividade socialmente útil, um fator de socialização, a expressão de qualificações, uma fonte de direitos sociais, um direito universal, mas também um fator de alienação, como é a condição de acesso a padrões de consumo e de nível de vida, e ainda uma atividade social influenciada pelas escolhas ecológicas (pg. 60 e sgs.). As leitoras e os leitores dão-se conta de que este é um tema essencial para todas as definições da luta social e da esquerda política. A razão de ser do socialismo é a análise da centralidade do trabalho na produção de valores e da exploração como forma de acumulação privada desses valores. Sem socialização do valor do trabalho não há socialismo.

A terceira ideia forte do livro é a recusa da política da vingança (pg. 25), a da austeridade e da dívida. O autor insiste no significado desta política de austeridade, baseada nas “contradições insanáveis” do mercado (pg. 145) e na constelação da crise sistémica: a que cria desigualdade e pobreza, destrói os sistemas produtivos, acentua as dificuldades de gestão da energia e das matérias primas, reorganiza as relações comerciais, põe em causa a soberania alimentar dos Estados ou as relações inter-geracionais (pgs. 174-5). A sua análise é abrangente e pedagógica.

A quarta ideia forte é a consequência das anteriores: a reclamação da política como a expressão e gestão de alternativas e a criação de novas relações de forças. É por isso que a política, à esquerda, só pode ser a luta pela democracia, intensa, emancipadora, participada, maioritária e combativa.

Sempre em ação, sempre em mudança, sempre em confronto, é assim que se fazem ideias fortes para uma esquerda forte. Porque só será forte com um programa social, com uma política clara e com um empenho incansável. É disso que nos fala este livro e este testemunho de um sindicalista e de um sociólogo que não desistiu de ser cidadão.

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.