“A guerra no Líbano devia ter sido evitada na Palestina”, por Miguel Portas

Publicamos aqui o capítulo "Palestina" do livro “No Labirinto - O Líbano entre guerras, política e religião” de Miguel Portas, publicado em 2006, numa edição da Almedina.

29 de abril 2012 - 0:23
PARTILHAR

A guerra no Líbano devia ter sido evitada na Palestina. Foi aí, nos territórios ocupados por Israel, que o Quartetoi que acompanha o “processo de Paz" deu a Telavive o sinal errado. Se em Janeiro de 2006, na sequência das eleições legislativas, a União Europeia e a Rússia tivessem agido como deviam, os planos militares de Israel teriam continuado na gaveta. Teriam ganho, pelo menos, algum bolor. Mas Washington respondeu à vitória do Hamasii com um bloqueio económico e político ao novo governo e Bruxelas acompanhou. O Egipto e a Jordânia, sempre prestáveis, atrelaram-se por sua vez à Europa e o cerco fechou-se.

A história breve deste conflito é a do bloqueio. Todos os observadores reconheceram as eleições palestinianas como as mais democráticas até hoje realizadas no mundo árabe. Bem mais limpas do que as libanesas; e incomparavelmente mais transparentes do que as egípcias, onde os "bons" só ganharam à custa de monumentais chapeladas e detenções em massa dos militantes da Irmandade Muçulmana. Os palestinianos foram ingénuos. Julgaram poder votar em quem quisessem. O bloqueio veio explicar-lhes, a posteriori, que a democracia não é bem isso... Pelo menos Telavive teve a virtude da franqueza: fez o que pôde para impedir o Hamas de concorrer. Ante a negativa europeia, os EUA decidiram não dar lastro às exigências de Ariel Sharon. Nesse exacto momento os palestinianos acreditaram que o ocidente respeitaria a sua vontade. Foram enganados. E nós, europeus, também. Participando no bloqueio, Bruxelas não traiu apenas os valores democráticos de que se reclama; disse a Washington e Telavive que tinham a via livre. Seis meses depois, uns e outros não se fizeram rogados. Em consequência do bloqueio, a situação social nos territórios ocupados, que estava longe de ser famosa, deteriorou-se a olhos vistos. De acordo com o Banco Mundial, 50 por cento dos palestinianos sobreviviam, em 2005, abaixo de uma linha de pobreza definida na base de 455 dólares mensais para uma família de quatro adultos e duas crianças. Essa percentagem cresceu significativamente nos últimos nove meses. 80 por cento da população da faixa de Gaza, mais de um milhão de pessoas, depende actualmente da ajuda alimentar do organismo das Nações Unidas para os Refugiados. É o próprio Director da UNRWAiii que denuncia: "Todos os elementos de uma existência civilizada se estão a afundar. Os serviços públicos encontram-se num estado de deliquescência. A electricidade é racionada. Os homens de negócios partem. A população tem a sensação de viver numa prisão". A ocidente não se faz a menor ideia de como funciona a economia palestiniana. Nenhuma mercadoria entra, ou sai dos territórios ocupados, sem passar pelo controlo israelita. Nenhuma firma palestiniana pode dispensar o transporte por uma empresa israelita, que fixa preços de monopólio. Os contentores de bens importados podem ficar semanas e meses nos portos de Israel, que diariamente facturam o pousio. Com as exportações de Gaza, é pior. A União Europeia investiu fortemente num projecto de recuperação das suas estufas, para efeitos de agricultura de exportação. Os legumes e frutos têm que sair através de uma única fronteira, que Israel fecha ou abre a seu bel-prazer. Carregados em camiões, esperam até que a alfandega os vistorie à velocidade de caracol. Quando tudo corre bem, passa um camião por dia. Mas do lado israelita, ele tem que aguardar pela conclusão do controlo de todos os outros...

A economia palestiniana é um milagre que desafia todas as leis conhecidas. Inúmeros projectos dos palestinianos da diáspora aguardam que Israel a entrada no país. Ninguém investe, se não pode acompanhar a aplicação dos fundos. A situação não é melhor para os empresários palestinianos que regressaram a Gaza e à Cisjordânia, mas mantêm os seus passaportes de origem. Eles tinham que se dirigir, de três em três meses, à fronteira com a Jordânia, para aí solicitarem novo visto para mais um trimestre. Mas agora nem isso. Israel deixou de renovar as autorizações. Quem saiu não consegue reentrar.

Com uma economia em estado de sítio, as taxas de crescimento palestinianas assemelham-se a uma montanha russa. Qualquer melhoria no quadro político permite progressões de tipo asiático. Mas uma ofensiva como a que está a decorrer pode significar um "crescimento negativo" de 20 ou 30 pontos percentuais. Desde 2000, a tendência é de queda pronunciada. Na faixa de Gaza, o desemprego atinge 65 por cento da população. Em consequência, a sobrevivência de cada família depende das pequenas remessas da diáspora e das redes de solidariedade da família alargada. Neste contexto, o não pagamento de salários aos 160 mil funcionários públicos, professores, técnicos de saúde e polícia, fizeram entrar os territórios ocupados na antecâmara do caos.

O orçamento da Autoridade Palestiniana tem como principal receita os impostos cobrados pelo ocupante. Por acordo entre Telavive e a OLP, esse recurso é devido aos palestinianos. Mas desde Março, Israel retém os impostos que cobra. A dívida de Telavive a Ramallah ultrapassava, em Setembro, os 650 milhões de dólares. Há sete meses sem salários, os trabalhadores passaram à greve, instigados pelos sindicatos, afectos à Fatah. Protestam contra um governo com os cofres vazios. É estúpido, mas que alternativas têm as famílias, sem recursos, sequer, para as despesas do início do ano escolar? Por causa do bloqueio, também o auxílio externo da União Europeia esteve parado durante meses. Bruxelas libertou, entretanto, 106,5 milhões de euros para ajudas de urgência. Mas 40 milhões foram directos para os cofres de Israel. As facturas da electricidade, dos combustíveis e da água dos hospitais, antes pagas pela Autoridade Palestiniana com a pele do próprio urso, ou seja, com o dinheiro dos impostos recolhidos por Telavive, passaram a ser pagas por Bruxelas. O remanescente da verba europeia está neste momento a subsidiar 12 mil trabalhadores do sector da saúde, 50 mil pensionistas e 40 mil famílias em situação social mais desesperada. Este mecanismo de ajuda temporária, que começou a funcionar em Agosto, está longe de se poder considerar uma boa solução. Se ninguém o contesta na Palestina, é porque a carência é de tal ordem, que cada um guarda para melhor ocasião as críticas. Na verdade, trata-se de uma invenção tão brilhante quanto perigosa. Desde logo, porque coloca a Europa a pagar a política norte-americana e israelita. Só a União Europeia e 13 Estados europeus contribuem para o fundo que alimenta o mecanismo. Depois, porque é um sistema que, esvaziando completamente as funções do governo da Autoridade Palestiniana, a dispensa. Todo o dinheiro se move entre transferências bancárias, directamente do doador ao beneficiário. Neste momento, a pressão do Quarteto é para que Israel entregue a este sistema os impostos que retém ilegalmente. Se tal vier a suceder, é a própria ideia de Autoridade Palestiniana que é posta em causa. E o temporário transformar-se-ia em eterno... Entre o Hamas e a Fatah as relações deterioram-se. Dito assim, até parece simpático. Na verdade, o castigo ao voto palestiniano colocou o país à beira da guerra civil. Existem fundadas razões para admitir que o objectivo era mesmo esse - a bem ou a mal, o Hamas tinha de ser posto fora do governo.

Norte-americanos e europeus defenderam o bloqueio como modo de obrigar o movimento islâmico a abandonar o terrorismo e a reconhecer o Estado de Israel. Nenhum dos argumentos procede. O Hamas manteve, até meados de Junho deste ano, durante l6 meses ininterruptos, uma trégua sem quebra. Nem um dos 600 morteiros Qassam caídos em Israel depois da retirada unilateral da faixa de Gaza se lhe podem atribuir. O movimento não renunciou formalmente à violência. Mas nenhuma formação palestiniana, até hoje, abdicou dessa prerrogativa, que inscrevem no direito de resistência.

Antes e após as eleições, o Hamas multiplicou sinais de "boa vontade" no tocante ao reconhecimento do Estado hebraico, uma das histórias mais mal contadas desta crise. Comecemos pelo óbvio: o Hamas nunca "engoliu" a criação de Israel. O mesmo aconteceu com a Fatah, que hoje o Ocidente considera “moderada”. Os árabes acreditaram até muito tarde numa solução militar para o conflito, desvalorizando a política. Mas essa dificuldade não impediu que o caminho para o reconhecimento de Israel tivesse sido iniciado, há anos, pelo próprio líder histórico do Hamas, o xeque Yasimiv. O Hamas começou aí a percorrer a estrada que outros, antes dele, já conheciam: goste-se ou não, Israel é um facto. Aziz Rantisi, que sucedeu ao xeque Yasim, explicava, em 2002, que o objectivo da intifada não era deitar os judeus ao mar: "Queremos obrigar Israel a retirar-se para o interior das fronteiras de 67. Isto não significa que o conflito israelo-árabe tenha terminado, mas apenas que a resistência armada acabará nesse momento"v. Sem reconhecer Israel, mesmo o mais duro dos líderes do Hamas admitia um modus vivendi regulado através da política e não das armas.

Um analista do Crisis Group, Mouin Rabanni, sintetizava, em Janeiro, o dilema da Comunidade Internacional face ao movimento islâmico: “Assim como seria tomar as recentes declarações dos dirigentes do Hamas como dinheiro contado, do mesmo modo será uma loucura não os colocar à prova"vi. Nenhum governo, de Washington a Bruxelas, quis pôr à prova as intenções de Ismail Haniyyehvii... Esse erro custou uma guerra. A União Europeia tinha “direito de opção" - acompanhar os EUA ou respeitar a vontade das urnas. Escolheu a pior e no pior momento: quando o Hamas, com responsabilidades governamentais, estava disponível para acelerar a sua adaptação. No início deste ano o novo primeiro-ministro precisava os contornos da sua abertura:

- Que género de acordo está disposto a aceitar?

- O que garante a criação de um Estado Palestiniano tendo por capital Jerusalém e no interior das fronteiras de 67.

- Reconhece Israel?

- Se Israel declarar que dá um Estado aos palestinianos e que lhes restitui todos os seus direitos, estaremos prontos a reconhece-lo?viii

Ao defender um Estado Palestiniano nas fronteiras anteriores à guerra de 1967, Ismail Haniyyeh admite que do "outro lado” está Israel. E dispõe-se a reconhece-lo explicitamente desde que o Estado hebraico faça idêntico gesto com os palestinianos. A questão já não é de realismo - a constatação que Israel veio para ficar - mas de reciprocidade. Não escasseiam argumentos para esta posição. De facto, Telavive nunca admitiu qualquer discussão de fronteiras. Todos os acordos até hoje realizados têm por objectivo a sua própria segurança... nos territórios que ocupou em 1967.

Analisando as causas da crise, Henry Siegman colocava, dias antes do conflito, o dedo na ferida: "Israel existe. Que o Hamas o reconheça ou não, nada acrescenta ou diminui ao que é irrefutável. Em contra-partida, 40 anos depois da guerra de 67, não existe ainda Estado Palestiniano. A questão politicamente pertinente que se coloca é a de saber se Israel reconhece ou não o direito dos palestinianos a um Estado. E não o inverso"ix.

Emparedado entre a vitória dos islamistas e o bloqueio externo, o presidente Mahamoud Abbasx ensaia uma jogada arriscada: exige do Hamas a renúncia ao princípio da reciprocidade com o fito de fazer cair o principal argumento do bloqueio. A 9 de Maio é divulgado um documento, subscrito pelos principais dirigentes detidos das várias facções palestinianas, que ia nessa direcção: aí se reconhece implicitamente Israel e propõe-se a auto-limitação da luta armada aos territórios ocupados. Com a assinatura dos heróis e a vida quotidiana num inferno, o presidente estava seguro do apoio da população a esta iniciativa. Face às reticências do Hamas, ameaça referendar o documentoxi. Em fins de Junho, o Presidente ganha. Em troca, o Hamas obtém a disponibilidade da Fatah para integrar um governo de unidade nacional, solução que esta recusara após as eleições.

O pré-acordo entre as duas facções - que viria a ser retomado a 18 de Agosto e a ll de Setembro, antes de ser rasgado no fim desse mês - afastava o espectro da guerra civil. Abria caminho para que a Autoridade Palestiniana voltasse a falar a uma só voz. É este o preciso contexto em que os israelitas decidem reentrar em Gaza...

Claro que houve um pretexto. Há sempre um pretexto. O rapto do soldado israelita Gilad Shevit caiu como uma dádiva dos céus para Telavive, onde também tinham decorrido eleições em fins de Março. O novo governo queria ser posto à prova. Assente numa aliança entre o Kadima - novo partido centrista criado por Ariel Sharon antes de cair em coma - e o labour, foi colocado sob suspeita pela forte extrema-direita israelita. Agravando desconfianças, o novo primeiro-ministro entrega a Amir Peretzxii a pasta da Defesa. Quando se coloca uma “pomba” à frente do exército, de duas uma: ou ela voa ou mergulha de cabeça na guerra. Não consegue é ficar quieta. Peretz decidiu provar que não estava na Defesa para dormir com o inimigo. Pouco lhe importou que Gilad Shevit fosse um soldado e não um civil. O sequestro, efectivamente humilhante para o Tsahal, deu-lhe uma oportunidade de ouro para exibir firmeza. A tragédia deste conflito foi, também, o da sua circunstância: ao inferno intra-palestiniano somou-se um governo israelita suspeito de “pacifismo”, e as duas fraquezas acabaram por se encontrar na guerra.

Por que quebrou o Hamas a sua trégua, envolvendo-se com duas outras organizações na captura de Gilad Shavit? Também havia pretexto... Para a asneira, há sempre pretexto. Durante os meses de Maio e Junho, Israel volta a aumentar o número das acções punitivas nos territórios ocupados, sem qualquer pretexto. O exército testava os nervos do Hamas, já no limite. A 8 de junho, um navio de guerra executa uma provocação particularmente odiosa: dizima uma família de oito pessoas numa das praias de Gaza. Nesse dia, o copo transbordou e o Hamas anunciou o fim da sua trégua unilateral.

A possibilidade de "linhas pragmáticas" vingarem na Palestina ocupada sempre dependeu dos resultados que pudessem trazer à população. Aguentar, sem quebra de disciplina, 16 meses de tréguas são executados por meios extra-judiciais não é fácil, mesmo para um partido com nervos de aço. A chegada a um governo que foi literalmente impedido de o ser agravou a situação. Tudo, externa e internamente, se conjugou num poderoso cerco. A cadência das provocações israelitas foi a gota de água que fez oscilar a linha de prudência traçada pela direcção do partido islâmico.

Nada disto é novo. Anos antes, sob o evidente fracasso dos acordos de Oslo, também Yasser Arafat e Marhwan Barghoutixiii se confrontaram com o mesmo dilema. Eles sabiam que lançar morteiros

artesanais para o “outro lado" não tinha qual quer efeito militar prático. Por muito que um sionista militante como Bernard-Henry Lévy descreva Sdérot como uma "cidade mártir" de "ruas vazias" e “casas esventradas ou crivadas por fragmentos de obuses”xiv, a verdade é que, nos últimos cinco anos, os engenhos lançados de Gaza sobre o vizinho israelita fizeram duas vítimas mortais... Os homens-bomba também não agradavam à Fatah. Só desesperavam a população israelita, além de isolarem internacionalmente a causa palestiniana. Mas esta não era a única racionalidade a que obdeciam os dirigentes da Palestina. Eles respondiam, antes do mais, pelo seu povo. E este estava cada dia mais exasperado pelo fracasso das promessas de uma paz que, afinal, apenas prolongava a ocupação.

No momento em que escrevo encontra-se em exibição o filme Paraíso Agora, de um realizador palestiniano, Hany Abu-Assad. É de visão obrigatória para quem se interesse pelo mundo visto do “lado de lá" do muro e dos check-points israelitas. Na decisão de um jovem se fazer explodir entram múltiplos factores, e o realizador, sem julgamentos de valor, ajuda a desvelar essa mesma complexidade. No caso, pesou bem mais o desamor próprio do que o fanatismo ou qualquer compreensão racional sobre a necessidade de "dar a vida". O "mártir" de Paraíso Agora não sonhou com as virgens que o esperariam lá em cima. Não é isso que o move. É um tipo normalíssimo, talvez ensimesmado, mas com falta de motivos para continuar a viver como vive. Complementarmente, ele alia a essa tristeza quotidiana uma culpa que é tão judaico-cristã como muçulmana, pelo facto de seu pai ter sido um colaborador do ocupante.

O drama com que se defrontaram Arafat e Barghouti foi o da continuidade da ocupação, apesar dos acordos que fizeram. Não se trata de “política” na acepção que o senso comum lhe dá, mas de quotidianos. A vida sob ocupação nunca é “normal". Faz das "pessoas normais" gente "de excepção". A ocupação israelita parece ter sido inventada para, mesmo nas mais pequenas coisas, tornar tudo ainda mais difícil, senão impossível. E humilhante, sempre.

Quem melhor tem descrito essa realidade são, paradoxalmente, os escritores e jornalistas de Israel. Gideon Levy é um deles. Porta-voz de Shimon Peresxv na década de 80, era então um sionista moderado. “Antes de ir aos territórios era como toda-a-gente”, confessa. O acontecimento que o modificou não teve nada a ver com jogos de poder. Cobrindo como jornalista do Há'aretz a primeira intifada, é prevenido pelo seu fotógrafo de que uma palestiniana tinha sido impedida por três check points de chegar a uma maternidade em Jerusalém Leste. “Não acreditei. Sádicos numa barragem era possível. Em três, não". Investigou e era verdade. Na terceira barragem, a mulher teve o bébé no táxi e suplicou aos soldados que a deixassem ali, mas levassem a criança ao hospital. "Também isso lhe recusaram". Ela fez o trajecto a pé. À chegada, a criança tinha morrido.

“Aí compreendi que algo de horroroso nos tinha possuído. Os nossos jovens não são monstros. A maioria levaria a mão à algibeira para as vítimas de um sismo no México. Por que se desumanizam face aos palestinianos? Porque a rotina da ocupação os leva a deixar de ver nos árabes pessoas como eles". Gideon Levy está convencido que um cancro "mais ameaçador do que todos os terrorismos corrói Israel: a ocupação de um outro povo”xvi.

Esse cancro contamina também os ocupados. Na viragem do milénio, eles tinham perdido a esperança na paz de Osloxvii. Do mesmo modo que antes apoiara os acordos, a população passou a exigir acção e a aplaudir quem a concretizava. O espírito do tempo não é difícil de entender: pode ser que à bomba nos oiçam... Na encruzilhada, Arafat e M. Barghouti acabaram por casar “duas linhas", uma "diplomática" e outra "militar". Falharam em ambas. Entre a primeira intifada, a das pedras, e a segunda, a da militarização da resistência, os palestinianos perderam. E os seus lideres também. Em 2006, o Hamas foi apanhado pela mesmíssima tenaz. Com uma diferença, nada despicienda: a sua trajetória ia das armas para a política. Ninguém lhes deu tempo, espaço ou estímulo para consolidarem a escolha.


i Nome por que é conhecido o grupo constituído em Junho de 2003 pela ONU, União Europeia, Estados Unidos e Rússia e que acompanha o conflito israelo-palestiniano através de um road map que Israel e a Autoridade Palestiniana aceitaram. Se tudo corresse pelo melhor, haveria Estado Palestiniano em cinco anos. Sem fronteiras definidas...

ii As eleições realizadas no fim de Janeiro de 2006 na Palestina deram a maioria absoluta dos deputados ao Hamas, apesar de este movimento ter tido menos de 50 por cento dos votos. Se o sistema eleitoral fosse proporcional, a Fatah e os três partidos da esquerda laica teriam tido uma maioria relativamente confortável. Mas a Fatah impôs uma lei eleitoral mista, com círculo nacional proporcional e círculos distritais maioritários. Feita por medida... acabou por beneficiar quem queria prejudicar.

iii Le Monde, Mande, 13 de Setembro de 2006.

ivXeque Ismail Yassin (1938-2004). O líder espiritual do Hamas cresceu nos campos de refugiados em Gaza. Ficou paraplégico, ainda jovem, após um acidente no recreio. Aderiu à Irmandade Muçulmana no Cairo, quando estudante da universidade al-Azhar. Em 1987 funda com Abdel Aziz al-Rantissi o Hamas, abandonando a posição “quietista" dos “irmãos” na Palestina. A fundação do Hamas teve participação israelita, interessada em pôr fim ao monopólio político da OLP. Mas foi sol de pouca dura. Em 1989, Telavive acusa Yassin de ter ordenado a execução de dois soldados israelitas, sendo condenado a prisão perpétua. Oito anos mais tarde, o xeque sunita é trocado por dois agentes da Mossad capturados pelas autoridades jordanas. Retoma a liderança do Hamas, A 22 de Março de 2004 é assassinado por um helicóptero israelita quando saía da mesquita.

v A citação foi retirada de um artigo particularmente bem documentado sobre a evolução das posições do Hamas a este respeito, escrito pela jornalista Jennifer Loewenstein, e traduzido para espanhol e francês pela edição de Voltaire News de 29 de junho de 2006.

vi Relatório preliminar de Mouin Rabbani, de 18 de Janeiro de 2006, para o Intemational Crisis Group, que pode ser consultado em www. Crisisgroup.com.

vii Ismail Haniyeh (1962). O primeiro-ministro da Autoridade palestiniana, nasceu no campo de refugiados de Al-Shati em 1952. Filho de refugiados da guerra de 1948, formou-se em Literatura Árabe na Universidade Islâmica de Gaza. Em 1987 participa na intifada e é detido. Em 1989 volta a ser preso e é condenado a três anos de prisão. Em 1992 é deportado para o sul do Líbano, sob a acusação de terrorismo. Regressa a Gaza um ano mais tarde, onde é nomeado reitor da Universidade Islâmica em que se formara. Com os assassinatos de Ahmed Yassin e Abd al-Aziz al-Rantisi, Haniyeh consolidou a sua posição na liderança do Hamas. A 16 de Fevereiro de 2006 foi

nomeado pelo seu partido como primeiro-ministro, cargo que ocupou formalmente a

29 de Março.

viii Entrevista publicada no Washington Post, 26 de Fevereiro de 2006.

ix Em The issue is not whether Hamas recognizes Israel, publicado no Finantial Times

de 8 de Junho de 2006.

x Mahmoud Abbas, também conhecido pelo nome de guerra Abu Mazen (1935). Filho de refugiados da guerra de 1948, a sua família estabeleceu-se na Síria. Diplomado pelas universidades de Damasco e do Cairo, tem ainda um doutoramento em História pela universidade de Moscovo. Pertence ao grupo fundador da Fatah. Em 1993, assina com Arafat os acordos de Oslo. De tendência moderada, este dirigente da OLP entrou várias vezes em conflito quer com os sectores mais radicalizados do seu movimento, quer com o próprio Arafat. Após a morte deste, é o preferido por norte-americanos e europeus. Candidato indigitado pela Fatah as eleições presidenciais de Janeiro de 2005, vence facilmente Mustapha Barghouti, representante da esquerda laica. A coexistência com o Hamas tem sido tudo menos fácil.

xi O chamado “documento dos prisioneiros" foi assinado pelos dirigentes prisionais da Fatah, Hamas, Jihad Islâmica, Frente Popular para a Libertação da Palestina e Frente Democrática de Libertação da Palestina. Uma análise da evolução da opinião pública palestiniana em relação ao documento e aos diferentes protagonistas políticos da crise pode, com interesse, ser consultada em www.nearestconsulting.com. Pode também ser obtida por motor de pesquisa pedindo o press release de 2 e 3 de Junho deste centro de opinião pública, intitulado The Palestinian National Dialogue and for a call for a referendum survey.

xii Amir Peretz (1952). O actual ministro israelita da Defesa nasceu em Marrocos. Oficial paraquedista na guerra de Yom Kippur, foi gravemente ferido. Com 30 anos concorre à câmara de Sderot, pondo fim a uma longa liderança da direita na cidade. Eleito deputado em 1988, assume a presidência da poderosa federação sindical, o Histadrut, em 1995. Em 1999, abandona os trabalhistas pela esquerda. O seu novo partido tem êxito modesto. De regresso à casa-mãe, é surpreendentemente eleito líder dos trabalhistas em 2005. Nas eleições gerais de Março de 2006, resiste bem à formação do novo partido centrista, que lhe leva a ala direita do partido. Mas a promessa de uma liderança de esquerda morre a 4 de Maio, quando ocupa a pasta da Defesa. Mês e meio mais tarde perceber-se-ia que era a da Guerra...

xiii Marwan Barghouti (1959). É seguramente o mais popular líder palestiniano da actualidade. Capturado em 2002, recusou defender-se, sustentando a ilegalidade do tribunal. Do banco dos réus apoiou a resistência armada, mas condenou os ataques a civis. Foi sentenciado em 2004 a cinco prisões perpétuas e ainda a 40 anos de prisão por tentativa de homicídio. Nascido em Ramallah, é militante da Fatah desde os 15 anos. Foi um dos principais líderes da intifada de 1987. Preso e deportado para a Jordânia, regressa à Palestina após os acordos de Oslo em 1994. Em 2000 acusa a

administração Arafat de corrupção e os seus serviços de segurança de violarem os direitos humanos. Quando se inicia a segunda intifada, lidera as brigadas de al-Aqsa, a verdadeira razão da sua detenção. Para as gerações da Fatah nascidas no interior dos territórios e que criticam a corrupção no partido, ele é a referência. Autor do "documento dos prisioneiros" de Maio de 2006, defende a aproximação de posições entre a Fatah e o Hamas.

xiv Reportagem publicada no Le Monde de 8 de julho de 2006.

xv Shimon Peres (1923). Polaco de origem, imigra ainda jovem pam Telavive, onde chega com a família em 1934. Em 1947, foi recrutado para a Haganah e nomeado responsável pelo pessoal e a compra de armas. Trabalhista, foi primeiro-ministro entre 1984 e 1986 e em 1995, ministro dos Negócios Estrangeiros em 2001 e 2002 e vice-primeiro-ministro de Ariel Sharon em 2005. Abandona os trabalhistas em Dezembro do ano passado e adere ao Kadima, o partido que Ariel Sharon fundara um pouco antes. Actualmente, é de novo ministro. Em 1994, pelo seu papel nas negociações de Oslo, ganha o prémio nobel da Paz com Yitzhak Rabin e Yasser Arafat.

xvi Retrato de Gideon Lévy publicado pelo Le Monde, 5 de Setembro de 2006.

xvii Os Acordos de Oslo foram assinados por Mahmoud Abbas e Shimon Peres, em Washington, a 13 de Setembro de 1993. Um segundo pacote, conhecido por Oslo II, foi subscrito em Setembro de 1995. No essencial, previam um estatuto de autonomia palestiniana em zonas especificamente negociadas para o efeito no interior dos territórios ocupados. Um acordo de carácter permanente seria negociado até Maio de 1996. Problemas como Jerusalém, refugiados, colonatos israelitas, direito de água, segurança e fronteiras foram adiados. A Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram divididas em três zonas: a Área A, de controlo total palestiniano, correspondia a 17,2% do território; a B, de controlo civil, pela Autoridade Palestiniana e militar pelo Exército de Israel, incidia sobre 23,8% do território, aí se concentrando a grande maioria das cidades e vilas; finalmente, a Área C, de controlo total pelo Governo de Israel, equivalia a 60 por cento dos territórios, mas quase sem palestinianos. Israel e OLP trocaram ainda cartas de mútuo reconhecimento mútuo, e a última renunciou ao terrorismo. Disposições de natureza económica agregaram-se à documentação acordada. Os acordos suscitaram oposição forte dos dois lados. Mas a opiniao palesliniana só começou verdadeiramente a mudar quando percebeu que a esperança morria num acordo que deixava à parte quase todo o poder forte.

Termos relacionados: Destaque: Miguel Portas (1958-2012)