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O mundo Trump em debate | ESQUERDA.NET

Mundo Trump em debate

Debate sobre o impacto da presidência de Donald Trump na Europa e no mundo com o advogado e professor universitário Eduardo Paz Ferreira, o jornalista e historiador António Louçã e Luís Trindade, historiador e investigador. O debate contou com a moderação de Marisa Matias, socióloga e eurodeputada do Bloco.

Segue a transcrição completa do debate:

Olá a todos e a todas, estamos aqui reunidos para falar sobre uma questão cada vez mais relevante no contexto atual, trata-se dos efeitos da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, das consequências dessa vitória para as relações no espaço mundial e também os impactos na União Europeia e, para ter esta conversa, tenho aqui comigo três convidados, o professor Eduardo Paz Ferreira, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, António Louçã, jornalista, e Luís Trindade, historiador e investigador. Convidámos duas outras investigadoras que não puderam estar e, portanto, o painel não está tão equilibrado do ponto de vista de género como gostaríamos, mas de qualquer das formas vamos fazer a conversa na mesma e seguramente que as questões de género serão uma das áreas que vamos abordar ao longo deste debate. Não será assim tanto um debate, mas mais uma conversa, se não se importarem, e que seja o mais fluida possível e que façam o favor de se irem interrompendo, eu estou aqui só como mediadora desta conversa.

Eu começava por lançar uma questão aos três, para reflexão, que é que obviamente a vitória de Donald Trump trouxe uma visibilidade maior a uma determinada forma de estar na política, a um discurso político que está nos antípodas, digamos assim, de alguns dos valores democráticos que fomos tendo como adquiridos nas sociedades mas que afinal não estavam assim tão adquiridos, mas também é verdade que se trata de uma linha política que, de alguma forma, já se vinha disseminando em alguns lugares do mundo e que está. aliás, muito presente na União Europeia, não com a mesma visibilidade. Nesse, sentido, pergunto-vos em que é que acham que esta vitória de traduz na verdade, no reforço obviamente dessa linha política, mas que consequências mais para além desse reforço e dessa visibilidade é que pode trazer a vitória de Donal Trump? Se calhar começava aqui pela minha esquerda e obrigada pela vossa presença.

Obrigada também pelo convite, é um grande prazer estar aqui.

Bem, o Trump é uma espécie de concretização de todos os nossos piores pesadelos e, num certo sentido, é um regresso à América do tempo dos cowboys, para chamar as coisas pelos seus nomes, mas de cowboys especialmente cruéis e especialmente brutos. Porque impressiona-me muito, é evidente que do ponto de vista democrático é assustador, mas há, para além disso, uma questão civilizacional e os valores ou os não valores de Trump são uma verdadeira ameaça a toda a forma de vida, porque em todas as áreas, desde as áreas da relação entre géneros, às áreas da relação com o outro em geral, eu diria, tudo isto é assustador.

Do modelo de desenvolvimento, questões ambientais.

Tudo, é o grau zero, absolutamente zero. E o que é mais preocupante é que, de facto, como a Marisa dizia, isto já existia um pouco por todo o lado, mas pareciam condenados a estar nas franjas. Lá de vez em quando conseguiam um lugar num governo e tal, mas era uma coisa muito restrita. A vitória de Trump dá a essa gente a ideia de que podem, afinal, chegar lá. E, aliás, não é por acaso que Trump está a promover uma espécie de internacional fascista, rodeando-se de todos os europeus xenófobos e racistas de partidos de extrema direita. Agora, qual vai ser o efeito disto? Eu não tenho a certeza, vamos lá a ver, é evidente que eu estou aterrado, estou muito preocupado, mas, apesar de tudo, não sei se isto não vai despertar algumas consciências. Por exemplo, há um debate que é muito caro à esquerda, a uma certa esquerda, pelo menos, que é o de saber como é que se deve lidar com este tipo de problema, se se deve lidar com delicadeza, procurando não atacar muito, ver se é possível esperar que ele modere, ou se se deve fazer um ataque firme. Eu acho que a única linha possível é o ataque firme e, por exemplo, estou convencido que aquele enorme conjunto de cisões sociais que surgiram na sequência  da ordem executiva contra os imigrantes foi o resultado dos tribunais se sentirem, de alguma maneira, apoiados pelo conjunto de manifestações, pelo conjunto de personalidades.

E cercado, também, do ponto de vista da sua própria autonomia e da sua própria atuação. 

Exato, mas também diria que eles normalmente seriam mais cuidadosos se não tivesse havido uma relação tão violenta, se as pessoas não tivessem ido para a rua, teria sido pior. E, portanto, eu acho que a única forma de lidar com estes cavalheiros é essa, é a linha dura.

E, António, torna mais visível e poderá chamar mais a atenção no espaço da União Europeia para este tipo de linha política que, afinal de contas, já estava tão infiltrada aqui há tanto tempo e despertar consciências, ou como é que te parece?

Eu penso que, na verdade, como dizia o Eduardo Paz Ferreira, o Donald Trump tem feito um esforço para criar uma internacional fascista, mesmo que seja de uma maneira informal, e mesmo que não lhe chame assim. Mesmo que ele não tivesse feito esse esforço, já seria de contar com o impacto extraordinário o facto de ele ser agora o Presidente dos Estados Unidos como fator de entusiasmo para a extrema-direita europeia, porque vê muitas das suas teses confirmadas e confirmadas por uma parte do eleitorado, que não era maioritária mas mesmo assim foi suficiente para ganhar as eleições, e vê confirmado que pode fazer parte, outra vez, da área do poder, que pode fazer parte dos governos futuros da União Europeia. Acho que aquilo que disse o Eduardo Paz Ferreira sobre tratar um fenómeno destes com paninhos quentes ou tratá-lo com a gravidade que ele tem, estou inteiramente de acordo, porque de facto não pode acreditar-se naquela tese de que Donald Trump sim disse uma série de coisas, de alarvices durante a campanha eleitoral, no twitter, etc, mas que depois quando lá chegasse ia ser domesticado pelo poder. O poder não domestica quem não estiver já domesticado antes. É claro que isto não é dizer que Trump e Hitler são idênticos. São parecidos, fazem parte da mesma família política, têm muita coisa em comum, mas não vamos para uma analogia desse tipo. Agora, há uma analogia entre a relação do establishment conservador a um e a outro. Porque os mesmos conservadores que abriram o caminho do poder de par em par a Hitler também diziam isso, “quando ele lá chegar vai começar a portar-se como um estadista”. 

“E entretanto, libertam-nos dos comunistas”, era o outro lado do discurso.

Pois, e este primeiro mês…

E os imigrantes ocupam mais ou menos o espaço dos comunistas.

E a imprensa, a maneira como os dois se referem, como um se referia à imprensa é muito parecida, há uma série de analogias que se poderiam referir e se calhar não sairíamos mais daqui, mas a verdade é que durante este primeiro mês de exercício de poder ele afinal é sério com as coisas que dizia na campanha eleitoral, aquilo era mesmo para fazer. 

É consequente.

Sim, Luís, isto de certa forma também é um discurso político que já tinha ganho algum terreno na própria campanha do Brexit e, para quem está em Londres, seguramente que isto foi muito presente e esta aliança, como foi dito nas intervenções anteriores, isto tem ramificações no espaço europeu. No caso do Reino Unido, Nigel Farage é claramente um dos companheiros do Donal Trump.

Claro, foi um dos primeiros a ir visitá-lo. A analogia entre o Brexit e a vitória do Trump é produtiva, quanto mais não seja porque, falo por mim, mas seguramente por muito mais pessoas, porque nas vésperas destas votações estávamos perfeitamente convencidos que não ia acontecer. O fator surpresa é aquilo que, numa primeira análise, atingiu as pessoas. Devemos pensar um pouco sobre esse fator surpresa, ou seja, se isto é assim tão novo, ou se, por outro lado, não estava já presente, de forma larvar, em vários fenómenos políticos. Em relação aos Estados Unidos, por exemplo, eu estava a lembrar-me da figura do cowboy que muitos destes debates foram tidos, de outra maneira seguramente, quando Ronald Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos, depois tivemos Bush sendo caricaturado enquanto o cowboy, é uma certa tradição que parece que chega a um ponto em que perde o controlo. Tenho muita dificuldade em perceber o que se está a passar, julgo eu, como toda a gente, e nesta tentativa de compreender estas surpresas que foram o Brexit, que foi a vitória do Trump e que seguramente serão outras vitórias de pessoas que achávamos.

Não diga isso, por favor, “seguramente serão”, não!

Não eram suscetíveis de chegar a lugares de poder. Até o Temer, no Brasil.

Já temos de certa forma, alguns governos na União Europeia que se aproximam muito.

Penso que é útil pensar em várias décadas de neoliberalismo. E da maneira como o neoliberalismo mais do que, ou a além, ou a par das consequências económicas, foi um longo, até porque entretanto já passaram várias décadas, um longo processo de despolitização. E eu acho que uma das maneiras interessantes de pensar estes fenómenos é pela despolitização, ou seja, como discursos altamente despolitizados sem uma ideologia por trás, sem uma ideologia política de mobilização, ou seja, indo além ou indo atrás de sentimentos muito pessoais, da vida privada, etc, conseguem ganhar eleições. Acho que estamos a pagar caro, nomeadamente à esquerda termos aceite este processo de despolitização e de desideologização. E estamos desarmados, em grande medida, por causa disso.

Sim, Trump é de certa maneira também uma espécie de sistema disfarçado de antissistema. António, como diria Gramsci, estamos no tempo dos monstros ou dos fenómenos mórbidos, em que o mundo velho ainda não acabou e o novo ainda está por nascer? Estou a falar, obviamente, das sociedades dos países europeus, dos Estados Unidos, não estou a traduzir isto para a escala global.

Não, provavelmente tem alguma coisa disso. É claro que aquilo que já foi aqui dito em intervenções anteriores, aquilo que Trump e propõe a fazer e aquilo que Trump começou a fazer é aquilo que, em grande parte, já vem de trás. O que acontece é que ele também acaba por ser muito mais consequente em alguns desses princípios de atuação política que o neoliberalismo tinha conseguido impor na esfera dos governos e perde a vergonha. Aquela homenagem que a vergonha presta à virtude, aquela hipocrisia, por exemplo, de dizer “não, não torturamos ninguém”, ele diz, “sim, torturamos”, mas é claro que toda a gente sabe que Obama não fechou Guantánamo, Guantánamo é o maior centro de tortura e isso estava no seu programa logo na primeira candidatura e não o fez nem na primeira, nem na segunda, nem até ao fim da segunda presidência. Portanto, aquilo que se pode contrapor a esta deriva autoritária e despótica que tem a presidência de Trump não é, em qualquer caso, ambicionar mais do mesmo, voltar a trás como um mal menor, nunca poderia ser um Obama, nunca poderia ser uma Hillary Clinton porque justamente esse tipo de políticos que são aqueles que nós vemos todos os dias à frente da União Europeia, por exemplo, a insistir em estrangular financeiramente a Grécia, agora novamente numa  segunda ofensiva, esse tipo de políticos foram os que abriram o caminho a fenómenos como o Trump, a fenómenos como o Brexit em Inglaterra e esse tipo de políticos, se forem os que voltam ao poder, os que voltam a ocupar os lugares perdidos em benefício de figuras como Trump. Isso é uma receita acabada para que o mal volte a emergir.

Sim, vai ocupando os espaços vazios e pondo em causa o Estado de direito também, não é?

Sim, e se me permite só uma coisa que o António Louçã disse e que eu acho especialmente interessante, que é de perceber, de facto, o tipo de político que se opôs ao Trump. Se, porventura, tivesse sido o Bernie Sanders, quase seguramente que o resultado teria sido outro. Mas quando apresentamos uma candidata para a cultura… apresentamos, não, nenhum de nós é responsável, mas quando a esquerda democrática americana o melhor que tem para apresentar é Hillary Clinton, que nas sondagens era detestada por 70% dos seus eleitores, é evidente que isto não funciona. E depois, as ligações dela aos meios financeiros, as célebres histórias dos discursos da Goldman Sachs, tudo isso, tornavam-na o exemplo daquilo de política de que todos estão fartos, de política ou de políticos, todos estão fartos. Houve, da parte do Partido Democrata uma indiferença e uma arrogância de não querer perceber os sinais, foi muito preocupante. Outra coisa que me impressionou muito foi, que é, por exemplo, não perceberam e no Brexit isso já se tinha passado, que o facto… Como se lembram, no Brexit houve intervenções de toda a gente, toda a gente resolveu dizer aos britânicos que não deveriam sair. Isto funcionou completamente ao contrário. Nos Estados Unidos, também aquela avalanche de atores, e de atrizes, e de personalidades a apoiarem, criaram junto de uma grande parte da população uma ideia de “cá estão os importantes, cá estão os ricos, a unirem-se contra nós uma vez mais” e depois há aqui uma outra coisa que é grave e que é importante, que é a questão do neoliberalismo, que o Luís Trindade e muito bem trouxe para aqui, mas é preciso dizer que, num certo sentido, o adversários do neoliberalismo é o senhor Trump. É o Trump que, de imediato, começa a denunciar tratados fundamentais como peças do neoliberalismo, que vai atacar a organização mundial do comércio, etc. Portanto, aquilo que normalmente seria um programa de esquerda, vai ser assumido por ele. Por péssimas razões, não estou a dizer que ele não vá fazer.

Com enormes contradições, colocando peças chave da Goldman Sachs, etc, todas na administração. 

Sim, no sistema financeiro com certeza, mas vai conseguir enganar as pessoas com essa ideia. O capitalismo é muito flexível, não é, então o capitalismo pode ter fases em que adere a formas mais liberais, e outras mais protecionistas, mas é sempre uma maneira de sobreviver, e penso que também devemos olhar para isto como um momento de crise do capitalismo e tentando explorar essa sua fraqueza, mas pegando naquilo que o Eduardo Paz Ferreira estava a dizer sobre a revolta, não sei se usou essa palavra.

Se não usei, poderia ter usado.

Ou seja, nós estamos habituados a que à esquerda a revolta esteja do nosso lado, ou seja, nós é que nos rebelamos, mas agora temos votos de rebeldia contra o establishment, contra as elites e o problema aqui, tem a ver com aquilo que eu estava a tentar dizer há pouco, é como é que nós os repolitizamos, nós enquanto movimento, não é nós enquanto representantes de ninguém, os interpretes agora dessa revolta e no entanto aí a esquerda tem falado completamente, mas é uma oportunidade.

E é verdade que, quer Donald Trump, quer Marine Le Pen, quer outros rostos, estão a chegar mais facilmente às classes trabalhadoras e a quem tem sofrido na pele políticas de exclusão e a desigualdade do que até mesmo a esquerda. O que é que isto diz à esquerda, em relação ao facto destes espaços vazios que foram sendo criados, de a não resposta, estarem a ser ocupados por estas forças políticas. Sim, se me é permitido dizer só uma coisa em relação a isso, eu acho que nessa história um pouco mais longa da despolarização, o grande problema da esquerda foi ter aceite falar com a linguagem do mercado. Ou seja, abandonou-se a palavra capitalismo, assou-se a usar a palavra mercado, passou-se a falar na linguagem do neoliberalismo e ficamos completamente desarmados para reagir contra a situação. E uma das implicações que isso teve e que me parece interessante também para pensar isso, foi o abandono da ideia de igualdade, sobretudo de como a ideia de igualdade estava ligada a uma ideia de classe. Tu própria estavas agora a mencionar a questão das classes trabalhadoras, que é precisamente aquilo que está a faltar no discurso da esquerda e eu não sei se é recuperável como era antes deste debacle, neste momento as questões da igualdade estão centradas sobretudo na oposição a Trump, na oposição ao Brexit, na oposição a todos os movimentos xenófobos, sobretudo em torno da questão de classe e da questão de raça e da questão de género, acho que são boas estratégias ir por aí, porque são muito mobilizadoras, mas nalgum ponto do caminho eu gostaria que a questão de classe voltasse à agenda da esquerda de uma maneira igualitária, precisamente para mobilizarmos aqueles que neste momento estão mobilizados para a revolta do outro lado. 

E temos esta contradição também de que na Europa existem partidos socialistas e partidos comunistas que têm como seu discurso mais ambicioso, já há vários anos, falar da economia social do mercado, ou falar do Estado Social, quanto muito, e de repente aparece-nos, como dizia o Eduardo Paz Ferreira, na campanha americana, um político a falar do socialismo, que é o Bernie Sanders. E creio que foi uma coisa curiosa também, e é revelador de como o establishment político reage a esta figura que, por um lado, especulava sobre a reação que ia ter o Partido Republicano em relação a Donald Trump, “o Partido Republicano nunca vai aceitar um político irresponsável como este, que parte a loiça toda, antes prefere lançar um candidato próprio”, e houve várias conversas sobre isto, “um candidato próprio por fora para que ele perca, porque depois os congressistas e os senadores republicanos vão ter mais facilidade em entender-se com Hillary Clinton, do que em entender-se com este macaco numa loja de loiça”. Nada disso aconteceu. Todos eles se acomodaram, o Paul Ryan lá esperneou um pouco no final, mas acabou por acomodar-se também. Quem não se acomodou foi o aparelho do Partido Democrata com a candidatura do Bernie Sanders quando toda a gente tinha visto, até pelas sondagens que eram absolutamente categóricas nisso, que ele estava em melhores condições para disputar o eleitorado do que a Hillary Clinton. Portanto, os republicanos acomodaram-se com o Trump, mas os democratas não se acomodaram com o Bernie Sanders, que é uma expressão política e eleitoral distorcida, como são todas as expressões políticas a eleitorais, de movimentos sociais muito importantes que existem, alguns minoritários, como o Occupy Wall Street, outros muito mais importantes, como é o Black Lives Matter, e que indicam o caminho da maneira como esta presidência pode ser impugnada, o verdadeiro impeachment para a presidência de Donal Trump não é por nenhuma destas instituições que se pensou, tribunais, congresso, senado, que se pensou que lhe poderiam criar uma barreira, ou o Partido Republicano, não é por nada disso, o modelo é a grande manifestação contra a guerra do Vietname com um milhão de pessoas em Washington que, de acto, foi decisiva para acabar com a guerra do Vietname. 

Eu acho, aliás, que a candidatura do Bernie Sanders é muito interessante a vários títulos. O mais interessante é este, ela reivindicar-se do socialismo, o que normalmente o atiraria para os 0.5% dos votos, e ter os resultados que tem. A outra, se me permitem, é o próprio aspeto do senhor, com 74 anos e tal, ele desfaz aquela ideia de que só é vendável um político, como de alguma forma o Jeremy Corbyn já tinha feito na Inglaterra, a ideia de que só passa o modelo Tony Blair ou José Sócrates, esse tipo de político que passa bem na televisão. Esse é um fator de esperança para mim, que seja possível haver um candidato que lança uma mensagem.

E houve, de facto, uma base da sociedade norte americana que se mobilizou em torno dessa candidatura que não estava organizada de forma nenhuma. 

De alguma forma, a campanha dele foi uma campanha espetacular, do ponto de vista da organização e tal, e que foi precedida pelo tipo de campanha que o Obama fez, mas o Obama desmobilizou a campanha que fez, em vez de ter mantido os apoiantes da ‘grassroots campaign’, cedeu ao aparelho do Partido Democrata. O Bernie Sanders não fez isso, manteve ativa esta coisa e, portanto, temos ali um pólo de reação possível muito interessante. Mas, ainda a propósito com uma coisa que aqui foi dita que é a questão das igualdades, com a qual não posso estar mais de acordo, mas há um problema grave, é que as pessoas não parecem estar preocupadas com isto nos Estados Unidos, justamente o Trump faz os tais movimentos, mas vai ainda desonerar mais os mais ricos em matéria fiscal, cria um governo obviamente de bilionários e os americanos pobres sentem aquele homem como representante deles, há aqui uma contradição terrível no discurso. Agora, como é que a esquerda pode recuperar estas pessoas que se desinteressaram da questão da desigualdade, que se desinteressaram de todo? Voltando seriamente aos seus valores, eu nisto estou totalmente de acordo com o Luís Trindade, na medida em que… entendamo-nos, aconteceu uma coisa paradoxal, que foi que depois da queda do muro de Berlim, os partidos social democratas e socialistas ficaram numa posição excelente para desenvolver uma agenda progressista, sem aquele risco daqueles “primos incómodos totalitários”. Mas, pelo contrário, parece que tiveram uma reação de ficarem envergonhados e de marcarem distâncias e, de facto, de se identificarem com o neoliberalismo, é uma coisa assustadora.

Estamos a pagar na União Europeia ainda um preço muito caro por essa escolha da social democracia europeia.

Exatamente, nós estamos, os pobres estão, toda a gente está. Largamente, é a esquerda que conduz ao poder a direita, temos de perceber isso, essa esquerda social democrata.

E no quadro mais global o que parecia ser um novo quadro de relações com a Rússia e com Putin, entretanto já não percebemos bem se é um novo quadro de relações, ou se há agora um regresso.

É uma relação instável.

Aliás, como seria de esperar entre Putin e Trump. Mas seja como for, parecia que ia haver uma alteração grande do tipo de relação entre os Estados Unidos e Rússia, agora já não temos tanta certeza assim, mas isto está a configurar um reforço de poder de Putin à escala global.

E a sentir as mãos livres, além do mais. Mas há uma coisa curiosa, falou-se muito da coerência de Trump, e é verdade, mas, por exemplo, o discurso dele no senado é o contrário disto. O único sítio onde ele fez um discurso, digamos, civilizado, foi quando foi ao congresso, é um discurso que não tem nada a ver com os tuítes dele, esse legitimaria até as tais criaturas que pensaram que ele ia moderar-se.

Mas tem um ponto, que talvez seja o decisivo, e por isso ele teve de embrulhá-lo num discurso que talvez seja mais conciliador, que é os Estados Unidos têm de voltar a estar em condições de fazer guerras que ganham e aumentamos em 54 mil milhões de dólares… 

E têm que ser maiores, e fazer a corrida ao arsenal nuclear o investimento e o orçamento militar.

Isso é um sinal claro, mas esse discurso, e sobretudo todo o discurso, porque aqui também estamos da falar em fenómenos comunicacionais, vai ao encontro daquilo que estava a dizer o António Louçã, esse Trump mais moderado, mais de acordo com aquilo que se espera, institucionalmente, de um presidente americano, talvez seja o Trump que se permite esconder melhor o seu programa.

Graças a deus ele não resiste, é tão abrasivo.

Temos que terminar, desculpem, mas uma ronda final muito curta, houve muitas coisas de que não falamos, seguramente, mas um minuto a cada um para poderem concluir. Este retrocesso gigante que estamos a ter, por exemplo na questão da igualdade, dos direitos das mulheres e o ataque direto a conquistas dos direitos das mulheres, a dispensa do jornalismo e da imprensa livre e a dominância das redes sociais na sua estratégia de campanha, houve um conjunto de coisas de que não falámos aqui, mas que vos deixo à vontade para poderem, neste último minuto. Se calhar começo pelo António e fazemos assim.

Só insistir um pouco nesse ponto, que me parece que o caminho para combater a presidência de Trump é o caminho do milhão de manifestantes anti guerra do Vietname que houve em Washington há há muitos anos e que, curiosamente, mas não estranhamente, começou a ser trilhado, precisamente, pelas mulheres e por todas as pessoas que se juntaram para uma grande manifestação contra a misogenia trumpista. Acho que esse foi o sinal mais positivo destes tempos, desta época que se abre, porque é esse o caminho que terá de ser percorrido.

Estou totalmente de acordo, e para dizer umas coisas finais, no fundo é insistir um pouco naquilo que está a dizer o António, é pensar como se voltarmos ao paralelo, que eu também concordo ser muito abusivo em relação aos anos 30, pensar que as grandes tragédias são também grandes oportunidades e, infelizmente, às vezes é preciso chegar a pontos inimagináveis para reconstituir algum tipo de política e de futuro e pensar que a radicalidade destes discursos xenófobos talvez também seja o sintoma de que há uma grande força contra eles, de outra maneira, eles não precisavam de ser tão radicais. Pode ser um wishful thinking, mas quando se vêem todas aquelas centenas de milhares de pessoas na rua contra quase todos estes fenómenos, percebe-se que estes fenómenos podem ser, ou abrir, algumas perspetivas de repolitização que nos permitam ser mais otimistas.

Esperemos que sim, que esse tom otimista pode ser real. Numa célebre campanha do Bill Clinton havia aquele slogan de “é a economia, estúpido!”, de facto, estou totalmente de acordo com o que dizia o Luís de “é a política, estúpido!”, ou seja, nós temos de valorizar a instância política, temos de deixar de ter um discurso completamente desinteressante e servidor das instituições financeiras, que é o que acontece e temos que recuperar a capacidade de luta. Há pouco, íamos começar e depois escapou a questão do Estado de direito, que é uma questão fundamental, eu diria espero que nos Estados Unidos haja com que bata por isso, mas nós na União Europeia também temos que fazer isto. É inadmissível que a União Europeia aceite o que se está a passar na Turquia, por um lado, mas dentro da própria União Europeia, com a Hungria, com a Polónia, com a Bulgária, com aquele grupo em geral. É inaceitável que esta gente não seja metida na ordem. 

Pois, é mesmo preciso resgatar a democracia, seguramente, e também a luta de classes, já agora. Muito obrigada por terem estado connosco, e até um próximo debate.