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Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma

O ministro das finanças disse que Portugal está próximo de “um ponto de viragem” na crise. De facto, são poucos aqueles que não sentem o enjoo da viragem, ou melhor, das guinadas deste Governo.

O ministro das finanças disse, no final da semana passada, considerar que Portugal está próximo de “um ponto de viragem” na crise. De facto, justiça seja feita: são poucos aqueles que na sociedade portuguesa não sentem o enjoo da viragem, ou melhor, das guinadas deste Governo.

Perante a náusea generalizada, vale a pena tentar perceber o que enche de confiança o comandante deste enorme Titanic. Uma visita rápida ao site do Banco de Portugal afasta de imediato as hipóteses básicas: a economia continua em recessão (sem fim à vista), o desemprego não diminuiu e a dívida pública ainda lá está. Permanece o mistério.

Aparentemente, o estranho otimismo de Vítor Gaspar tem outras causas.

Em primeiro lugar, o Governo colocou Bilhetes do Tesouro com um prazo de 11 meses a uma taxa próxima dos 5%. Embora seja verdade que tal não acontecia desde Abril de 2011, é preciso não esquecer 5% por cento já é muito mais do que Portugal pagava pelas obrigações a 10 anos em 2010, e é indiscutivelmente acima daquilo que seria sustentável para um Estado em termos de custo do financiamento a médio prazo.

Em segundo lugar, as previsões para 2011 apontam para um défice de 4% (em vez dos 5,8% exigidos pela troika). O sucesso torna-se menos entusiasmante se levarmos em consideração que sem os fundos de pensões da banca o saldo orçamental teria ficado pelos -7,5%, em vez dos -4%. E como os fundos de pensões não crescem das árvores, é pouco provável que o truque se possa repetir. Embora tenha ainda as privatizações para tapar o buraco, os tempos são maus para quem vende. Por outro lado, a recessão torna a consolidação orçamental tarefa árdua no futuro: sem atividade económica as receitas fiscais terão tendência para diminuir, e novos aumentos de impostos têm apenas como consequência mais recessão.

Em terceiro lugar, o Governo considera que a contração económica em 2011 foi menos pronunciada que o esperado. A lógica do argumento é altamente discutível. Uma tragédia não se transforma necessariamente em sucesso apenas porque é menos trágica que o esperado. Pelo contrário, uma situação dramática pode sempre tornar-se mais trágica: a recessão de 1,8%, inicialmente prevista pelo Governo para 2012 no Documento de Estratégia Orçamental, passou para 2,8% no Relatório Orçamento do Estado e para 3% segundo o Banco de Portugal.

Em quarto lugar, o Ministro aponta o desempenho das exportações como grande impulsionador da atividade económica, que permite compensar a quebra na procura interna. Mas a estratégia das exportações tem várias falhas, já muitas vezes apontadas. É necessário levar em conta que o consumo (público e privado) é responsável por uma parte muito maior do PIB que as exportações, pelo que será praticamente impossível que o crescimento destas compense a quebra na procura interna, que se prevê que seja de 5,2%. Além disso, os últimos dados disponíveis indicam que 75% das exportações portuguesas se destinam a países da Comunidade Europeia, na sua maioria a braços com processos de austeridade semelhantes ao português. Destes 75%, 26,6% são para Espanha, onde se prevê uma recessão de 1,5%, uma quebra record no consumo e níveis históricos de desemprego para 2012.

Por último, Vítor Gaspar está ainda a levar em conta os efeitos “dinamizadores” das reformas acordadas em sede de Concertação Social que, segundo o mesmo, “ilustra [m] uma vez mais o grau de consenso em Portugal em torno do Programa de Ajustamento”. Defender que a facilitação dos despedimentos ou a redução dos apoios aos desempregados contribuem para o crescimento económico não passa de matéria da mais pura fé. Considerar que o Programa de Ajustamento reúne consenso na sociedade portuguesa é ignorar as dezenas de milhar de pessoas que fizeram o 12 de Março, o 15 de Outubro ou a greve geral em Novembro.

Vistas bem as coisas, os motivos de Gaspar são uma grande mão cheia de nada, em direção a nenhures. A deriva deste Governo, que quer combater a recessão com recessão, destrói a economia portuguesa e fortalece a dívida. A solução é fazer o contrário: reestruturar uma dívida que não é pagável para fortalecer a economia.

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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