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Um amigo dos pobres

Manuel Martins proclamou, com serenidade firme, que "A Igreja tem de ser a voz dos sem voz". Parecerá agora frase feita. Mas quando foi proferida, nas circunstâncias em que o foi, e por um bispo, a frase soou a convocação à mudança drástica.

Sobre a Igreja, como sobre tantos outros coletivos, é frequente ouvir contabilidades de avaliação do estilo “gosto muito de fulano, mas o problema são os outros todos” ou “gosto muito dos outros todos, mas o problema é fulano”. Fulano destaca-se, foge à mediania, tem palavras e ações transgressivas, choca ou seduz.

Manuel Martins foi assim. Nunca por vontade de protagonismo pessoal mas por fidelidade ao mandamento da solidariedade plena com os pobres e da construção diária da vida com eles. Foi por isso que foi um bispo combativo – quem luta ao lado dos pobres pela sua dignidade só pode mesmo ser combativo. Assim havia sido Hélder Câmara na ação pastoral, assim haviam sido os teólogos da libertação na mistura incindível entre compromisso eclesial e transformação social. Assim havia sido tanta gente anónima, crente e não crente, que fez da luta pela igual dignidade efetiva de todos/as um desígnio para a vida.

Foi para ser leal a esse mandamento que Manuel Martins proclamou, com serenidade firme, que "A Igreja tem de ser a voz dos sem voz". Parecerá agora frase feita. Mas quando foi proferida, nas circunstâncias em que o foi, e por um bispo, a frase soou a convocação à mudança drástica. Manuel Martins foi bispo de uma margem sul do Tejo dizimada pelo desemprego, pelos salários em atraso, pela ressaca tão violenta de uma industrialização a secar. A pobreza impôs-se a Manuel Martins como espaço pastoral, a aflição da fome e da falta de horizontes tornou-se para ele na vida a ser confrontada com o Evangelho, a fratura social entre a exploração e a luta pelos direitos básicos obrigou-o a tomar partido, em coerência com aquela mensagem estranha “tudo o que fizerdes aos mais pequeninos, é a mim que o fareis”. E Manuel Martins não hesitou em tomar partido, em assumir que a vida dos humildes e dos despojados era realmente a que tinha que ser confrontada com o Evangelho e em pôr-se completamente ao serviço dessa forma de ser. De uma Caritas cuja ajuda era em si mesmo denúncia das causas da sua necessidade ao apoio assumido aos padres operários, até às suas deambulações anónimas pela cidade e pelas terras da diocese ao encontro dos pobres e das suas angústias, foi tudo isso que fez com que fosse a partir da vida e não a partir das formulações teóricas que Manuel Martins falasse sempre, com destemor, dos pobres. E a sua opção preferencial por eles não foi só um discurso – e muito menos um discurso conveniente e obediente – porque as suas palavras foram sempre expressão de gestos concretos prática solidária vivida.

“Bispo vermelho” foi o rótulo que a quietude cúmplice com as injustiças encontrou para o estigmatizar. Mas a coerência de Manuel Martins tornou o rótulo em problema para os rotuladores.

Os pobres perderam um amigo. A sua lição de vida solidária não fica perdida. E fica a desafiar a coerência de todos, crentes e não crentes.

Artigo publicado no diário “As Beiras” em 30 de setembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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