Está aqui

A tragédia de Pedrógão e o jornalismo de arrastão

A última semana tem muitas diferenças em relação ao que aconteceu há 12 anos. Mas ficará como um caso de estudo para a história das ondas noticiosas.

Há 12 anos, a 10 de junho e nos dias seguintes, a imprensa noticiava um fenómeno inédito em Portugal: um "arrastão" em Carcavelos. Na competição pela divulgação eufórica de factos aparentemente tão inusitados e perturbadores, criou-se rapidamente uma "onda noticiosa", que se propagou de uns órgãos de informação para outros, com os telejornais tomados pelo caso. Instalado o "pânico moral", o episódio provocou o esperado efeito "bola de neve": políticos em reação, comentadores inflamados, clamores por respostas imediatas para repor a "segurança" do Estado. E um racismo larvar a sentir o momento de por a cabeça de fora.

Só a partir de 17 de junho, graças à inquietação de (pouquíssimos) jornalistas sobre o caso, como Nuno Guedes e Diana Andringa, veio a saber-se que as televisões, rádios e jornais de referência tinham noticiado algo que, afinal, nunca acontecera. Mas a confirmação de que o "arrastão" foi uma ficção resultante de uma fonte da polícia e da criatividade do dono de um café de praia, nunca teve o mesmo espaço que o falso "fenómeno" ocupou. Muitas das redações (naquele dia porventura mais debilitadas por ser feriado) que reproduziram acriticamente a falsa notícia, nunca se redimiram perante o seu público. Num debate que teve lugar um ano depois, Joaquim Fidalgo afirmava que "os jornalistas erraram e não pediram desculpa". Luís Miguel Viana, director da Lusa, foi mais longe ao identificar uma “alergia generalizada a reconhecer o erro”.

A última semana tem muitas diferenças em relação ao que aconteceu há 12 anos. Mas ficará como um caso de estudo para a história das ondas noticiosas. Toda a cobertura de Pedrógão revelara já o melhor e o pior do jornalismo que temos. Mas estes últimos dias foram de facto exemplares. De quê? Do modo como é possível fazerem-as títulos bombásticos que afinal são desmentidos pelas próprias notícias. A manchete do Expresso segundo a qual a "Lista de 64 mortos exclui vítimas de Pedrógão" choca com a própria reportagem, em que afinal as vítimas excluídas eram uma só pessoa, que as autoridades públicas - e não políticas -, seguindo critérios técnicos internacionais, não consideraram "vítima direta", dado que morrera atropelada.

Exemplar também de como a imprensa de referência consegue fazer notícias baseadas em poucos depoimentos e factos mas em muito spinning político (a utilização pelo jornal i, citada por outros meios, de uma lista de mortos atribuída a uma obscura empresária, pelos vistos conhecida por enganar trabalhadores, é um exemplo da degradação informativa e noticiosa). Exemplar, finalmente, de como órgãos de referência se podem prestar ao mais absoluto e triste ridículo (o jornal da noite da SIC, com uma infografia dos mortos e uma jornalista entusiasmada que chegou a anunciar ter havido uma pneumonia "causada pelo incêndio" - o que é um absurdo - é um caso eloquente do grotesco).

Francamente, os leitores e os espectadores mereciam mais. E agora, em vez dos disparos do costume sobre quem faz análise e crítica da imprensa (a página dos "Truques da Imprensa Portuguesa" sendo um dos alvos do ódio de alguns jornalistas que abominam qualquer escrutínio), em vez das insinuações sobre tratar-se de gente "ao serviço do cartão partidário" (um dos mais básicos truques de desqualificação do outro para evitar discutir a substância, que é ainda mais grave quando quem o enuncia sabe tratar-se de uma mentira), mais valeria a grandeza de um pedido de desculpas.

Mas este episódio é assinalável ainda por outras razões. O efeito bola de neve que estes fenómenos causam precipitou o PSD (e, por arrasto, o CDS, embora menos exuberante) a cometer um erro político profundo ao cavalgar um caso sem fundamento e ao instrumentalizar mortes dramáticas de forma pura e simplesmente abjeta. O facto provocou a indignação de figuras da própria Direita, que vieram, também elas, exigir um pedido de desculpas. De entre todos, Hugo Soares, o novo líder parlamentar do PSD ansioso por mostrar serviço, acabou por ser a cara desta ignomínia. Que a sua ascensão política se tem alimentado do espalhafato em torno da superficialidade e da exploração de preconceitos, já sabíamos. Só que o PSD anunciou a sua eleição como líder parlamentar porque ele seria "o melhor" que têm. Custa a crer. Mas a ser verdade, imagine-se os outros...

Artigo publicado no site do Expresso, 28/7/2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
Comentários (2)