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Sem eleições a crise política passa a crise de regime democrático

Depois de termos um governo tutelado por Belém, Cavaco Silva quer condicionar as próximas eleições e ciclo eleitoral.

Em Março de 2012 Cavaco Silva, no prefácio ao livro Roteiros IV, escrevia o seguinte. “Há quem tenha a ilusão de que o Presidente da República pode impor aos partidos, contra a vontade destes, a sua participação em governos de coligação, por vezes apelidados de “salvação nacional”.

Mais advertia que “A solução de governo que daí resultaria, não correspondendo a uma autêntica vontade de coligação estável e duradoura, seria sempre artificial e precária, consumindo-se rapidamente em lutas internas e dando lugar a uma instabilidade política muito prejudicial ao País.”

O que mudou no Estado da Nação, em menos de 18 meses, para que Cavaco Silva queira agora impor a solução que antes rejeitava? Estão porventura os partidos mais coligáveis? Serão os seus dirigentes mais confiáveis e confiarão mais uns nos outros? Não parece ser o caso. O que mudou é simples: o programa de ajustamento e a austeridade falhou, como ficou lapidarmente demonstrado na carta de Vítor Gaspar.

Explicar a atual crise como sendo resultado de uma birra é interessante, e os seus protagonistas até deram boas razões para acreditar nessa tese, mas tem um ligeiro problema. Não nos diz nada sobre o momento que estamos a viver.

O problema é a política. O falhanço da política. O esgotamento do programa de ajustamento. Todas as birras são a cortina de fumo que escondem o essencial: a austeridade falhou, como o reconheceu o seu arauto máximo, Vítor Gaspar.

O défice atingiu, neste primeiro trimestre, o seu valor mais alto desde o início da crise financeira. A dívida está nos 127%, Aonde o memorando estimava que a dívida pública atingisse 114% do PIB em 2013, ainda 2013 vai a meio e ela já está nos 127%. Depois de todos os aumentos de impostos, cortes salariais, subsídios retirados, 400 mil postos de trabalho destruídos, o colossal desvio de 21 mil milhões de euros na dívida é o retrato do falhanço da austeridade e do Governo PSD CDS.

Não, não é a possibilidade de eleições que abre caminho um segundo resgate, como nos vêm dizendo os defensores do Governo, mas a eminência do segundo resgate que explica a crise na coligação e no Governo. Dizia esta semana Miguel Frasquilho, sem se rir, que o Bloco pretende um segundo resgate, quando está nas capas de toda a imprensa mundial que ele já está a ser preparado em Bruxelas e no palácio de São Bento.

Não nos esquecemos, e muito menos o Governo, que faltam apenas 3 dias para Paulo Portas apresentar o famoso guião para o corte de 4700 milhões de euros. A tal reforma do Estado, nome pomposo para descrever a diminuição das pensões, despedimento de 30 mil funcionários públicos e encerramento de serviços públicos.

A chave da crise está no falhanço da austeridade e não numa qualquer birra. Se tudo está a correr tão bem, como garante o primeiro-ministro a prazo, como explicar a demissão sucessiva de Vítor Gaspar e Paulo Portas? Acaso estavam cansados de tanto sucesso? Sejamos sérios.

O que Cavaco Silva procura não é uma solução de salvação nacional, mas a salvação do programa de ajustamento. O que o PR pretende é garantir que, independentemente do que venha a suceder ou o povo decidir, a austeridade continuará o seu caminho de destruição da economia e do país.

Se a austeridade falhou, e continuará a espiral recessiva em que está a afundar o país, a solução do Presidente da República é resgatar a democracia num acordo que, com a eventual presença do PS, garanta que, aconteça o que acontecer, a austeridade continuará o seu caminho.

Ao desmoronamento da direita, e do programa político da direita, o Presidente da República responde com o desmoronamento da democracia. Para que o programa de ajustamento não seja avaliado, faz a democracia refém. Depois de termos um governo tutelado por Belém, Cavaco Silva quer condicionar as próximas eleições e ciclo eleitoral.

Eleições sim, mas só se, através de um acordo prévio entre os três partidos que assinaram o memorando, elas não decidirem nada e Cavaco Silva tiver a certeza que delas resultará sempre a continuação da austeridade que está a destruir a coligação, o governo e a economia do país.

Cavaco Silva só aceita a escolha do povo quando tiver garantias de que não existirá escolha. Quando todos oferecerem o mesmo programa – o da troika, a austeridade permanente - e a escolha do povo não seja mais do que a podre alternância de protagonistas.

No desespero que se vive em Portugal, o “entendam-se” do Presidente poderia até soar atrativo a alguns ouvidos. Mas entendamo-nos. Este “entendam-se” é outra forma de garantir que se cortará mais nos salários e pensões, de que se continuará a fragilizar mais os direitos do trabalho, privatizar mais e garantir mais rendas a privados, cortar mais no estado social e continuar a financiar os bancos com o dinheiro dos cidadãos.

O Presidente da República tenta cavalgar o populismo, atribuindo-se poderes que não tem no nosso quadro institucional e democrático, substituindo-se aos partidos e aos seus representantes eleitos, na pluralidade e confronto em que se desenha a democracia.

A base das democracias modernas, que se definem como um “governo do povo, pelo povo, para o povo”, está a ser lentamente subvertida pela direita para um “governo dos mercados, pelos mercados, para os mercados”. É nesta oposição, entre a democracia e a chantagem, que se joga o futuro do país.

Cavaco Silva quer salvar o programa de ajustamento, o programa da direita. Nesse caminho ataca a democracia, desdiz o que já defendeu e escreveu e coloca o país numa insuportável situação de instabilidade e pântano prolongado. Dizendo defender a estabilidade, ao escolher um governo a prazo e com data marcada, Cavaco Silva escolheu a solução mais instável possível.

Face ao fim de um ciclo, ao falhanço do programa de ajustamento e à falência da coligação, a única solução responsável é a das eleições. Com eleições o povo escolhe o caminho e os protagonistas, com eleições há uma data clara para a definição de um novo quadro político, com eleições há uma nova legitimidade que permite uma nova estabilidade. Sem eleições o pântano agrava-se e eterniza-se. Sem eleições a crise política passa a crise de regime democrático.

O Bloco de Esquerda reafirma: está disponível, pronto e preparado para um governo de esquerda que denuncie o memorando e renegoceie a dívida. Só esse caminho pode permitir o crescimento económico, a criação de emprego, a proteção do estado social, a valorização de salários e pensões. Este caminho pode e deve ser trilhado por uma ampla convergência de esquerda, mas só pode ser legitimado por um processo eleitoral.

Afirmamos igualmente que nenhum partido, nem coligação de partidos, tem o mandato popular que lhe permita negociar um segundo resgate. Também esse caminho, a que nos opomos mas que, como o Presidente do Banco de Portugal tão claramente afirmou, está a ser preparado, só pode acontecer se for legitimado pela vontade do povo expressa nas urnas.

Não aceitamos o ataque à democracia, a imposição de um governo não eleito, num modelo Monti italiano, chantagem grega ou outro qualquer. A história prova à exaustão que esse é sempre o pior dos caminhos. O caminho da responsabilidade, o que responde às exigências sérias do atual Estado da Nação é a dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições. Chega de dissimulação. Eleições já. Essa sim, é uma decisão irrevogável para acabar com a dissimulação.

Intervenção no encerramento do debate do Estado da Nação na AR a 12 de julho de 2013

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz.
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