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Sair da Torre de Marfim

Foi com satisfação que assistimos há poucos dias à tomada de posição pública de Orham Pamuk – Prémio Nobel da Literatura em 2006 – sobre a situação na Turquia. “A liberdade de pensamento já não existe. Estamo-nos afastando a toda a velocidade de um Estado de direito e vamos para um regime de terror.”

Palavras fortes e atitude expectável deste escritor que sempre assumiu posições de esquerda. Embora seja a sua primeira intervenção pública desde o golpe de junho que vem instituindo uma verdadeira caça às bruxas, surge na sequência da prisão de mais dois influentes intelectuais turcos. Já no início de agosto, 34 intelectuais turcos incluindo escritores, académicos, jornalistas e ativistas denunciavam a suspensão de direitos constitucionais com o encerramento de universidades, de sindicatos, de jornais e associações sem decisão judicial, para além de todos os abusos, prisões e torturas aplicados indiscriminadamente a quem ouse criticar o regime de exceção imposto por Erdogan.

A política de ataque às liberdades e à democracia que se intensificou após o golpe de junho já vinha de longe e é uma marca de água do regime de Erdogan. Sindicalistas eram presos e torturados sem culpa formada; assinar uma petição pela paz era motivo de prisão como aconteceu no passado mês de Janeiro a 21 académicos turcos que assinaram uma “iniciativa pela paz” apelando ao fim das intervenções contra o PKK. Para Erdogan, os subscritores desta petição onde também constavam os nomes de Noam Chomsky, Judith Butler e David Harvey entre outros, não passavam de ignorantes e de aliados do terrorismo!

Os regimes opressores odeiam mentes despertas e críticas e quando ouvem alguém opor-se-lhes “puxam logo da pistola”. Os Goebbels deste século mantêm os mesmos traços do sinistro ministro da propaganda nazi. Viktor Orbán que não tolera refugiados a entrar na Hungria rodeou-se de muros de opressão e acabou com a liberdade de imprensa. Daí que seja tão importante que surjam vozes corajosas, com reconhecimento e notoriedade públicos como Orham Pamuk a denunciar o que se vive no seu país ou no mundo, quando a democracia ou os direitos humanos são espezinhados. São atos de grande coragem e de risco pessoal e profissional sair da torre de marfim em que muitos intelectuais se acolhem, assumindo o conforto conivente e conformista do silêncio.

Chico Buarque que acompanhou o julgamento de Dilma em Brasília, Caetano Veloso e tantos outros intelectuais, artistas e jornalistas brasileiros deram a cara contra o golpe de Temer que ressuscitou o que de pior e mais corrupto há e que o Brasil não conhecia desde o golpe de 1964. Em Abril deste ano, o teólogo brasileiro Leonardo Boff um dos subscritores do manifesto contra o golpe, numa iniciativa promovida por intelectuais que reuniu milhares de paulistas dizia que “a democracia tem a natureza da flor, ela é frágil, mas ela tem a força de sua beleza, a força de seu perfume. Essa democracia está sendo ameaçada agora, especialmente por aqueles que sempre dominaram o nosso país”.

Essas vozes que se erguem e que fazem a diferença são um alento contra a maré de apatia, resignação e conformismo que os reacionários e conservadores de todo o género querem instituir como norma.

Igualmente importantes são as vozes que surgem inesperadamente em ambientes “tranquilos”, “bem comportados”, de “gente bonita e feliz”. Nuno Lopes, jovem ator português recentemente galardoado com o prémio de melhor ator em Veneza, aproveitou o seu momento de exposição para dedicar o prémio a quem lutou contra o dragão da austeridade, para ele os verdadeiros heróis e nomeou os moradores dos bairros da Bela Vista e da Jamaica.

Alexandre Farto, mundialmente conhecido por Vhils, inicialmente surpreendido por ter sido agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem de Sant’Iago e Espada, que recebeu das mãos de Cavaco Silva em 10 de junho de 2015, aproveitou essa oportunidade para “expressar o amor que tenho por Portugal, assim como o desamor que tenho pela forma como as prioridades daquilo que deveria ser um país empreendedor, avançado, justo e socialmente equitativo têm sido continuamente confundidas com os interesses daqueles que querem que tudo fique na mesma.” Sem esquecer a sua geração que foi obrigada a emigrar e os muitos outros artistas de rua que também deveriam ser distinguidos, Vhils considera “que vale a pena resistir contra a condescendência e o tipo de mentalidade que nos tenta convencer que somos pequenos.” E termina alargando o reconhecimento oficial que lhe foi dado “a todas as periferias deste país, a todos aqueles que não tiveram as mesmas oportunidades, a todos aqueles que são menosprezados, à primeira crew de Lisboa, ao Seixal, à Arrentela, à luta do Bairro de Santa Filomena, à Quinta do Mocho, ao Bairro Verde, à comunidade indígena de Araçaí, ao Morro da Providência, à Ladeira dos Tabajaras. Esta honra é também vossa.”

Artigo publicado em acontradicao.wordpress.com

Sobre o/a autor(a)

Professora aposentada, feminista e sindicalista
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