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Quotas de mulheres nas empresas cotadas na Bolsa … mas não no Parlamento?

O programa do PS propõe a imposição de uma quota de um terço de mulheres nos cargos de direção das empresas cotadas em Bolsa, mas dispõe-se a abdicar da quota de representação das mulheres no parlamento, uma lei que tem sido um sucesso.

O PS apresentou ontem [20 de maio de 2015] dois dos cinco capítulos do que virá a ser o seu programa eleitoral. Um terceiro capítulo já fora apresentado pelos doze economistas dirigidos por Mário Centeno (“agenda para a década”, que é para os próximos cinco anos), mas sabe-se que Costa lhes impôs algumas alterações (não “mais de 5%”, diz ele), embora só se tenha registado uma (fazer depender a redução da TSU patronal da cobrança de novos impostos) e nada se saiba sobre outras eventuais correções. Entretanto, para tornar tudo mais confuso, foi mostrado aos jornalistas um conjunto de tópicos que inclui disposições que não estão explicitadas no texto que foi colocado no site do PS para ser consultado pelos interessados (a forma de reduzir a TSU patronal).

António Costa é o político português que mais tem insistido na imposição dos círculos uninominais na eleição do parlamento. Esta é uma das causas das causas de Costa. A proposta dos círculos uninominais tem uma contradição, um perigo e uma certeza

Acresce que os dois capítulos que estão no segredo dos deuses não são pouco importantes: um é sobre “virar a página da austeridade, relançar a economia e o emprego” e o outro é sobre “um novo impulso para a convergência com a Europa”. Tinha estranhado que este partido não tratasse da Europa? Não estranhe mais, há-de chegar a sua proposta. Mas não é para já.

Sem sabermos o que falta, tal como o que foi mudado e o que ficou no programa dos economistas, estamos todos às escuras sobre como se podem cumprir as “21 causas” que o PS hoje anunciou, quanto custam, como se pagam, como se fazem, como são os calendários e que impactos se espera que tenham. “Rigor”, anunciava o secretário-geral.

Com essa restrição, vou ao longo dos próximos dias discutir as ideias que estiverem concretizadas e procurar saber mais sobre as outras.

Começo por uma que é muito cara a António Costa, tanto que escolheu destacá-la na sua conferência de imprensa. Na verdade, é o político português que mais tem insistido na matéria, que é a imposição dos círculos uninominais na eleição do parlamento. Esta é uma das causas das causas de Costa.

A proposta dos círculos uninominais tem uma contradição, um perigo e uma certeza.

A contradição: o programa propõe a imposição de uma quota de um terço de mulheres nos cargos de direção das empresas cotadas em Bolsa (pg.122), mas dispõe-se a abdicar da quota de representação das mulheres no parlamento, uma lei que tem sido um sucesso. De facto, ao instituir os círculos uninominais (um candidato por partido por cada círculo, pg. 4), o PS impede que haja instrumento para determinar uma representação de candidatura paritária, total ou aproximadamente, entre homens e mulheres. Os partidos vão escolher o candidato que quiserem e está fora de causa que, se o PS de Vila Franca de Xira escolher um homem para candidato, se imponha ao PS de Alhandra que tenha que propor uma mulher. Nem a lei pode impor que, se houver um círculo de compensação, as mulheres tenham que encabeçar essa lista.

Como é evidente, o número de mulheres no parlamento deverá diminuir. Em resumo, haverá mais mulheres nas empresas cotadas na Bolsa, onde cuidam dos seus negócios – e haverá quem sugira que essa restrição é de constitucionalidade duvidosa – mas poderá reduzir-se a representação que tendia para a paridade no parlamento, onde representam um país que tem metade de homens e metade de mulheres.

O perigo: a proposta não é concretizada, mesmo depois das “décadas de discussão” a que se referia Costa, mas só pode afetar a proporcionalidade eleitoral. Ora, o PS garante que ela não é posta em causa. Veja-se então esta tabela sobre o que aconteceu no Reino Unido: um partido ganhou 500 mil votos e 24 deputados, outro ganhou 700 mil votos e perdeu 26 deputados, outro ganhou três milhões e ficou reduzido a um único deputado. Proporcionalidade?

Para tentar simular alguma proporcionalidade, os sistemas uninominais acrescentam um círculo nacional (mas não em França, nem no Reino Unido, nem nos Estados Unidos). Imaginemos que seja de 50 deputados, o que é mais do que o referido entre os partidários do sistema. O PS, depois de “décadas de discussão”, não diz que quer fazer isso ou o seu contrário, mas admitamos que só o está a esconder por pudor. O CDS, o PCP e o Bloco, que elegeram 48 deputados na última eleição (em proporcionalidade rigorosa deveriam ter 59), dificilmente elegeriam mais do que um ou dois nas eleições uninominais. Espera o leitor ou a leitora que a engenharia do círculo nacional lhes daria mais 46 deputados dos 50 do generoso círculo nacional, correspondendo aos votos que realmente tiveram e que foram prejudicados pelo truque uninominal? Se a opção fosse a proporção direta desse círculo nacional, elegeriam 14 deputados no total, ficando agora reduzidos somente a um terço dos que elegeram (seis para o CDS, cinco para o PCP, três para o Bloco), calculando ainda mais uma vez na base dos resultados verificados em 2011. Perderiam 32 deputados. Acha mesmo que o PS e o PSD se entenderão sobre uma lei para mudar o sistema eleitoral que não seja em seu benefício? Ingenuamente, penso eu que o sistema uninominal é concebido para evitar a proporcionalidade, não para a preservar.

A proposta é portanto contraditória e repressiva, distorcendo os resultados eleitorais. E tem um perigo: declara uma guerra, porque põe em causa esse mínimo de democracia que é o reconhecimento da legitimidade das eleições, se os votos elegem quem fala pelas várias escolhas do país. Com os círculos uninominais, a eleição deixa de ser um ato para representar Portugal e passa a ser um processo para garantir o poder indisputado de uma oligarquia. O PS quer mesmo essa guerra contra a democracia?

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 21 de maio de 2015

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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