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A quem serve a privatização das águas?

Na sua ânsia privatizadora, o Governo pretende ir mais longe que o seu antecessor e o memorando da troika ao anunciar novas privatizações: entre elas, encontra-se o Grupo das Águas de Portugal.

Ainda há pouco tempo, veio o Ministro das Finanças reforçar a intenção de privatizar, e o mais rápido possível, esta importante empresa pública, indo mais longe que o que está expresso no programa do Governo, onde se fala 'apenas' em “autonomizar o subsector dos resíduos no seio do Grupo Águas de Portugal e implementar as medidas necessárias à sua abertura ao sector privado”.

Esta é uma ambição antiga dos Governos PSD e PS que, ao longo dos anos, foram, com mais ou menos convicção ou frontalidade, defendendo a entrega do sector das águas e dos resíduos aos privados. Entretanto, foram preparando o caminho para a privatização ser um bom negócio, avançando com os investimentos públicos e a concentração do sector através da actuação do Grupo AdP, reduzindo o peso da intervenção autárquica. Recorde-se as palavras do Ministro do Ambiente da governação Sócrates, Nunes Correia, em entrevista ao Jornal de Negócios, em 5 de Novembro de 2007, onde, em resposta à pergunta “Quer dizer que estão a preparar a empresa [AdP] para entregá-la no próximo Governo em condições de ser privatizada?” disse que o que “Está a ser feito é um trabalho de levar à empresa critérios de eficiência e rentabilidade que cada vez mais a tornem apetecível para os privados. (...) A privatização da AdP no médio prazo faz todo o sentido [...] não nesta legislatura”.

Actualmente, o Grupo ADP “participa num conjunto de empresas que, em parceria com os municípios, prestam serviços a cerca de 80 por cento da população portuguesa”, conforme se lê no seu site: são mais de 8 milhões de pessoas abrangidas pelo abastecimento e saneamento de água (20 sistemas: ver lista http://www.adp.pt/files/639.jpg) e mais de 6 milhões abrangidas no tratamento e valorização de resíduos (11 sistemas: ver lista http://www.adp.pt/files/745.jpg) .

No final de 2010, o Grupo AdP teve um volume de negócios de 724,5 milhões de euros, um resultado operacional de 176,6 milhões de euros e um resultado líquido de 79,5 milhões de euros. Além disso, possui um activo de 7,2 mil milhões de euros. É, portanto, bastante apetecível para os privados. Até porque já foram feitos muitos dos vultuosos investimentos públicos de infra-estruturação, tendo em conta que estes são sectores capital-intensivo: desde 1993 até 2009, o total do apoio comunitário e nacional previsto ao investimento foi de 8,2 mil milhões de euros.

Ao nível dos serviços de águas, nos sistemas multimunicipais concessionados (detidos pela AdP), o investimento acumulado em 2008 ultrapassa os 5,3 mil milhões de euros, pronunciando-se nos últimos anos uma tendência de redução do investimento nestes sistemas à medida que se concluem os investimentos iniciais necessários à sua plena exploração. Ao nível dos resíduos urbanos, os sistemas multimunicipais concessionados (detidos pela AdP, através da sub-holding EGF) já têm uma fase de maturidade avançada.

Feitos os investimentos pelo lado público, ao privado que ficar com o bolo do Grupo AdP resta a remuneração garantida dos seus accionistas: como se sabe, o sector das águas, mas também o dos resíduos, pelo menos em “alta”, são monopólios naturais, não só pelas características das infra-estruturas, como pela ineficiência na exploração de instalações alternativas para uma mesma zona geográfica, mas também por serem serviços públicos essenciais que todos os cidadãos necessitam. Não existe, portanto, concorrência nem risco para o privado, o qual fica com um sector estratégico nas mãos, fragilizando a garantia da universalidade e qualidade do acesso a bens e serviços vitais ou sendo essa mesma garantia assegurada através de rendas pagas pelo Estado ao privado, penalizando-se as contas públicas.

Ao privatizar-se o Grupo AdP fica por saber a quem cabe a dívida bancária de 2,9 mil milhões de euros resultante dos vultuosos investimentos feitos ao longo dos anos: se assume o Estado por inteiro esta dívida, deixando para o privado somente a parte das receitas interessantes dos monopólios naturais em causa, ou se ela é transferida para o privado. Neste caso, “seria necessário aumentar as receitas anuais, com impactes significativos nas tarifas a praticar aos utilizadores finais”, de modo a reduzir os períodos muito prolongados de retorno dos investimentos realizados (RASARP, 2009): ou seja, aumentar substancialmente a factura da água. Em qualquer dos casos, para os privados interessa assegurar receitas aos seus accionistas, o que implicará sempre o aumento de tarifas. Perdemos sempre todos: enquanto contribuintes e enquanto utentes. E não se julgue que se faz justiça social através do primado de tarifas diferenciadas conforme os rendimentos dos utentes: essa só se faz através da justiça fiscal que deve servir para garantir a todos bens e serviços públicos de qualidade que respondam às suas necessidades essenciais.

Além disso, atente-se também que muitos investimentos são ainda necessários ao nível do sector das águas e dos resíduos e os privados não estarão interessados em fazê-los, a não ser que o Estado garanta o financiamento ou a sua remuneração a prazo curto e com rentabilidades interessantes, como tem sido prática generalizada das Parceria Público-Privadas. De acordo com o estimado nos vários planos estratégicos - PEAASAR II, PERSU II, Estratégia para os Efluentes Agro-Pecuários -, são necessários 7,6 mil milhões de euros entre 2007-2013: é certo que parte deste montante já foi executado ou tem financiamento garantido ao nível do QREN, mas não está ainda, nem de perto, coberto todo o seu valor. Ora, com a privatização do Grupo AdP e com as limitações impostas às autarquias ao nível do endividamento ou do acesso a fundos comunitários para a obtenção de financiamentos nestes sectores, são estes investimentos que ficam em causa ou poderão torna-se ainda mais onerosos para serem assegurados: recorde-se que o sector público pode recorrer e empréstimos do Banco Europeu de Investimento, com taxas de juro aceitáveis e prazos de amortização prolongados, o que deixa de ser possível.

A privatização do sector das águas e resíduos é um erro sob todos os pontos de vista, penalizando a economia, as contas públicas, os utentes que somos todos nós, a qualidade da prestação do serviço e dos recursos naturais, a sustentabilidade ambiental. A prova provada está nas experiências de privatização que ocorreram noutros países: todas correram mal e tiveram custos económicos e sociais elevados. Nós podemos evitar esse caminho.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, engenheira agrónoma.
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