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Portugal e o Ambiente como questão-chave do futuro
As últimas décadas viram surgir novos e grandes desafios à Humanidade, materializando a Sociedade do Risco de Ulrich Beck. A agência humana, cada vez mais confundindo-se com a agenda do capitalismo, aceitou, muitas vezes de forma forçada, uma dicotomia entre ambiente e economia, uma equação sempre desfavorável ao ambiente e, portanto, à Humanidade, que colocou a noção iluminista de progresso como factor de destruição e degradação do sistema global que sustenta a espécie humana e todas as outras espécies do planeta.
Portugal, país periférico no capitalismo europeu, viu com a revolução de 1974 emergir um período contracíclico ao mundo ocidental, que se liberalizava enquanto o país corria para a construção de um Estado. A construção de legislação ambiental, florestal e agrícola foi muito acelerada e recebeu contributos decisivos e estruturantes: a construção da Reserva Agrícola Nacional e a Reserva Ecológica Nacional são duas ferramentas que destaco porque revelam perspectiva futura, enquadramento social, critérios ambientais bem definidos, preocupações abrangentes. Infelizmente, com poucas décadas de funcionamento, foram invertidas: o processo de desafectação de áreas REN e RAN (assim como planificação em Planos Directores Municipais) tornou-se uma ferramenta de especulação imobiliária: adquirir terrenos em REN e RAN, muito baratos porque não há direito a construção, construir ilegalmente e depois pedir a desafectação porque o valor que devia ser protegido já está comprometido, e receber essa desafectação, inflacionando imediatamente o valor dezenas e por vezes centenas de vezes. Virar uma ferramenta de lógica de cabeça para baixo. Tornar o ambiente um negócio de consultoria, legislação de impacte ambiental fraca e decisões não vinculativas, criar índices e esquemas de certificação ambiental.
Entretanto, há uma ameaça gigantesca que pende sobre o planeta – o aquecimento global e as alterações climáticas – que no território nacional é uma ameaça amplificada, que agrava todas as fragilidades históricas: propensão para a desertificação, perda do litoral, incêndios florestais monstruosos, cheias e inundações, despovoamento rural. O poder que as grandes empresas nacionais têm sobre os legisladores faz lembrar um Estado corporativista. EDP, Navigator Company, GALP, Altri, Corticeira Amorim, Jerónimo Martins, Mota-Engil, Semapa, REN, Sonae influenciam, promovem, bloqueiam legislação, retiram obstáculos à sua actividade ou tornam-os inúteis, inserem-se em todos os aspectos mais estruturantes da sociedade: poder, imprensa, academia, cultura. E assim tornaram o Estado um estendedor de passadeiras vermelhas para os seus negócios, ressuscitando as palavras de Charlie Wilson, presidente da General Motors e Secretário da Defesa de Eisenhower: “O que é bom para a General Motors é bom para a América”.
Os interesses de muitas destas empresas são no entanto um obstáculo à viabilidade do território nacional: por um lado impedindo a mitigação das emissões de gases com efeito de estufa com a ambição necessária e, por outro, dificultando a adaptação do território nacional às alterações climáticas, cujos cenários futuros são conhecidos e que representam um aumento da dificuldade de habitação em muitos locais do país, um acréscimo importante de dificuldade de fazer agricultura, floresta, de conservar solos e água, de manter populações. Dificultam a emergência de um cenário que não seja de ruptura.
O REA 2016 – Relatório do Estado do Ambiente em Portugal 2016 (APA, 2016), publicado pela Agência Portuguesa do Ambiente, é uma oportunidade para clarificar o que foi dito. Em termos de prioridade, o primeiro ponto do relatório são as projecções macroeconómicas até 2050. Num cenário baixo, prevê um crescimento de 1% na UE e 2% no planeta. Num cenário alto, prevê um crescimento de 1,8% na UE e 3,2% no planeta. Para Portugal espera uma subida de 1,5% do PIB (cenário baixo), com um aumento do consumo privado dos residentes em 0,8% e uma perda de população de 0,7%. Para um cenário alto, o PIB cresceria 2,3%, o consumo privado subiria 2% e perder-se-ia apenas 0,3% da população. Que um relatório acerca do Estado do Ambiente em 2016 comece por referir uma subida do PIB e aumento do consumo até 2050 é particularmente revelador (não referindo a muito pouca fiabilidade de projecções económicas a 30-40 anos, em particular sabendo nós do aumento de todos os riscos para actividade económica que estão presentes nas próximas décadas). Avança de seguida para outro indicador revelador: o número de pedidos nacionais de “patentes verdes”: 51 em 2010, desce para os 15 em 2014, volta a subir para os 35 em 2015.
Na componente Clima e Energia, o REA-2016 apresenta os objectivos sectoriais de redução de emissões para os sectores que não participam no Comércio Europeu de emissões de dióxido de carbono: os serviços pretendem uma redução de 69%, a área residencial uma redução de 15%, os transportes de 26%, a agricultura de 11% e os resíduos de 26%. As metas para os sectores que participam no Comércio Europeu de emissões, isto é, os mais emissores? Não estão presentes. A importante descrição do perfil das emissões em Portugal revela o sector energético, com 68% do bolo que pode ser visto na imagem abaixo.
Figura 1. Emissões sectoriais de CO2-e em Portugal (2014)
A redução da utilização de petróleo e derivados na produção de energia primária tem visto uma pequena expansão da utilização de gás natural e carvão e eólica. Nas renováveis, o apoio público às eólicas tornou-as uma realidade no mapa da energia no país, sendo a segunda contribuidora para a produção de electricidade após as grandes barragens (com muitos outros problemas associados, nomeadamente emissões não contabilizadas de eutrofização e grandes massas de águas paradas). A inexistência de qualquer apoio à energia solar e a criação de obstáculos à auto-produção e ao auto-consumo explica em grande medida porque está neste momento parada a transição para a electricidade 100% renovável (ronda os 50% desde 2011). A recta descendente de emissões de gases com efeito de estufa (principalmente por causa da crise) parou. A “retoma” económica voltou a aumentar a dependência energética em 2015. O país está cada vez mais quente e mais seco com menos de 50% das águas superficiais são consideradas de qualidade “boa”. Entre Outubro de 2015 e Setembro de 2016 só as albufeiras da margem esquerda do Douro, o Tejo e o Sorraia tiveram mais água do que o nível de armazenamento histórico: nos outros rios há menos água. Não há nenhuma categoria de espécies avaliadas no âmbito da Diretiva Habitats que tenha mais de 35% das espécies em estado de conservação favorável.
Excluídos deste relatório estão alguns dos maiores processos de conflito ambiental da História do país: a oposição à exploração de petróleo e gás em terra e no mar, em todo o litoral do país, a reivindicação do encerramento da Central Nuclear de Almaraz, a 100 km da fronteira com Espanha, as inúmeras descargas industriais nos rios portugueses – de que a Celtejo em Vila Velha de Ródão ou as suiniculturas na ribeira dos Milagres são apenas alguns dos exemplos. Os incêndios florestais são despachados com uma descrição: a área que ardeu, as espécies, a severidade meteorológica. O quadro comparativo com países com o mesmo clima não existe, uma análise das causas fica pela rama. E termina, pouco depois, o relatório. Não há diagnóstico, não há consequências, está constatado o Estado do Ambiente. O estado é grave. Num território tão vulnerável como o português, as maiores empresas pesam como uma âncora para evitar preparar um futuro no novo clima. O capitalismo continua a não ter quaisquer respostas que não sejam acelerar a catástrofe.
Referência :
APA (2016). Relatório do Estado do Ambiente em Portugal. Agência Portuguesa do Ambiente.
Artigo publicado na Plataforma Barómetro Social do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
Comentários
Um artigo fundamental e que
Um artigo fundamental e que nos alarga os horizontes de intervenção. Um abraço.
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