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Por que razão voto no Bloco de Esquerda

Começo por uma declaração de interesses e por um agradecimento. Sendo como sou, deputado e membro da Comissão política do BE, estou reconhecido ao jornal I por esta oportunidade de poder explicitar o sentido do meu voto no próximo dia 27 com uma reflexão pessoal que pretende ir além do imediatismo da divulgação política, entrando, é certo que necessariamente algo à pressa, no campo do meu ofício de historiador.

Na realidade, o sentido de escolha que o BE propõe, é pelo menos assim que a entendo, tem a ver necessariamente com a constatação do fracasso histórico das elites sociais, económicas e políticas que têm moldado o ser económico e político-institucional do país desde 1976 (desde a contenção e anulação do processo revolucionário) no que respeita à tarefa da modernização sustentada de Portugal.

Procurando dizê-lo por outras palavras: o bloco social dominante reconstituído após a Revolução de 1974/1975 e a sua expressão política - o monopólio neorotativo do PS/PSD (com o apêndice eventual do PP), o omnipresente domínio do "centrão" nas instituições e no governo - reeditaram e prolongaram a incapacidade histórica da oligarquia portuguesa modernizar o país. A economia, a sociedade, a vida política da democracia vive uma crise estrutural prolongada, uma crise de modelo. Uma crise que era bem anterior à crise internacional e contribuiu para acentuar os seus efeitos; uma crise agravada com ela, e uma crise de continuação já anunciada pelo governo PS e pelo PSD para a pós- crise mundial.

Insisto no conceito de "incapacidade histórica". Porque as elites pós- abrilistas repetiram o fracasso da oligarquia do salazarismo/marcelismo. O modelo que emergiu da evolução das políticas económicas da ditadura desde os anos 30, assentou na pauta proteccionista dos mercados nacional e colonial, nos oligopólios ou monopólios garantidos pela cartelização corporativa e pelo condicionamento industrial e, sobretudo, na exploração colonial e na "paz social", ou seja, nos salários muito baixos e no trabalho desqualificado, assegurados pela negação dos direitos políticos e sindicais fundamentais, pela repressão policial e por um módico controlado de paternalismo patronal e corporativo. Mesmo o tímido inicio de aproximação à Europa com o boom das exportações para os países da EFTA na década de 60 não alterou os traços fundamentais deste modelo de industrialização efectiva, mas sem liberdades políticas ou sindicais, sem justiça distributiva, sem mercado interno ou externo viabilizador, sem reforma agrária, sem qualificação atempada e suficiente de mão de obra e sem capacidade competitiva internacional. Uma industrialização tutelada pelos grandes grupos económicos em estreita promiscuidade com o Estado fascista, prosperando à sombra de toda a espécie de protecção e privilégios administrativos e pautais e seguramente garantidos pelo aparelho policial do regime.

Sabemos qual foi o resultado disto (até porque ainda hoje o estamos a pagar...): quando sucessivamente se conjugaram os efeitos da primeira crise petrolífera, das conquistas sociais do mundo do trabalho durante a Revolução e da inexorável integração económica europeia, os pilares do edifício industrial herdado do Estado Novo ruíram fragorosamente (Quimigal, Siderugia, Sorefame, Lisnave, Mague...), seguida por tudo o resto que assentava essencialmente na mão de obra barata, numerosa e indiferenciada. Começou aí o doloroso processo de desindustrialização do país, depois acentuado por condicionalismos posteriores.

Acontece que os interesses económicos e sociais dominantes e o novo poder político neorotativo pós-revolucionário não só não contrariaram, como não se mostraram à altura de contrariar atempadamente este processo de desagregação. A partir dos anos 80, a estabilização da parceria rotativa PS/PSD-PP na governação e a direita dos interesses que a suporta, seguindo de perto o novo padrão da estratégia de acumulação do capitalismo global, adaptaram para o nosso país um modelo cujas 3 bases essenciais são bem conhecidas. Desprodutivização e financiarização especulativa da economia; ofensiva desreguladora contra os direitos do trabalho (desemprego massivo, generalização do trabalho precário, aumento da jornada de trabalho e redução do seu preço, liberalização dos despedimentos, esvaziamento da contratação colectiva - em suma, o Código do Trabalho Bagão Félix/ Vieira da Silva); ofensiva privativista sobre os serviços públicos "rentáveis" (especialmente a saúde, a escola pública e os transportes) e os sectores estratégicos da economia de lucro garantido (telecomunicações, energia, abastecimento de água, este último caso na lista dos projectos ocultos).

O resultado de tais políticas sucessiva e continuadamente aplicadas pelos governos do PS e do PSD/PP foi uma espécie de devastação económica e social cujos efeitos eram patentes bem antes de se fazer sentir o impacte da crise mundial. A destruição do aparelho produtivo marcado por milhares de falências e pela estagnação agrícola, mais de 600 000 desempregados (metade dos quais, devido a medidas restritivas do governo Sócrates, sem acesso a qualquer tipo de subsídio de desemprego), a gangrena generalizada de trabalho precário (900 000 pessoas a recibo verde!), mais de um milhão e meio de pensionistas com pensões de miséria, corrupção, fraudes e desvios milionários na banca, pára-quedas dourados para os gestores de topo a par de salários congelados nalgumas grandes empresas, o ataque á escola pública e aos professores, o cerco privativista e a desarticulação progressiva do Serviço Nacional de Saúde, o estrangulamento financeiro da Universidades, o atraso na investigação cientifica e na qualificação da força de trabalho...

A estratégia neoliberal gerou a desigualdade e a injustiça social mais profundas, mergulhou o país numa crise estrutural duradoura, numa semi-periferia dependente e sub-qualificada, em suma, confirmou, e aqui regressamos, a falência histórica das elites pós-abrilistas, dos seus partidos do centro-direita e do seu modelo neoliberal quanto à modernização economicamente sustentada e socialmente justa do país. O que, só por si, exprime o grave impasse actual da democracia portuguesa.

É, por tudo isto, o momento histórico de desarticulação do bloco central e de romper o caminho de mudança. Isto é, de juntar e organizar o campo social e político capaz de protagonizar um novo modelo de desenvolvimento e uma governação de novo tipo à esquerda. É claro que falo de um processo em que o BE não é senão um participante, que falo de um movimento de juntar forças sociais e políticas, partidárias e não partidárias, que se iniciou antes das eleições e continuará para além delas, mas em que se apela ao voto no BE como um gesto de confirmação, apoio e reforço decisivo à construção de um poder político e social alternativo. Fazer das esquerdas sociais, culturais, políticas, na sua pluralidade incontornável, uma esquerda grande, um projecto de governo socialista e popular, eis o cerne da proposta política do Bloco nestas eleições.

Juntar forças para mudar à esquerda o centro de gravidade da política portuguesa. Eis tudo o que nos traz. Eis a razão do meu voto no Bloco de Esquerda.

Sobre o/a autor(a)

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda
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