Está aqui

Por onde vai a “geringonça”?

Eis uma pergunta a que é difícil responder depois de ano e meio de governação do PS com apoio de partidos à sua esquerda. E não é por acaso.

Esta solução original foi produto de circunstâncias que ninguém previu, com honrosas exceções. Foi o resultado da pressão popular que desejava a unidade da esquerda e a deposição da coligação de direita, do desafio de Catarina Martins no debate televisivo com António Costa, mas foi também a tentativa de salvar o PS, a caminho do descalabro, derrotado eleitoralmente frente a Passos Coelho e Paulo Portas, na sequência de uma campanha orientada para uma política à direita.

Mas não foi teorizada ou preparada de forma consistente pelos partidos. Foi um recurso “para salvar a pele”, para evitar o isolamento político. Cada formação política tem uma narrativa e uma interpretação própria, tirando partido da sua especificidade. Para além do objetivo comum de afastar o pesadelo da direita e a austeridade violenta, perfilaram-se dois outros: António Costa quis aguentar o PS como partido da governação, jogando no compromisso entre o cumprimento das metas europeias e a satisfação de algumas exigências mais prementes da esquerda; e os partidos à sua esquerda quiseram demonstrar a inconsistência daquele mesmo PS para resistir à ofensiva neoliberal do diretório europeu e evitar a austeridade.

Passado este ano e meio de exercício do poder, o mínimo que se pode dizer é que esta solução vai impondo o seu caminho próprio, por vezes sobrepondo-se às intuições iniciais das partes envolvidas. Costa, embalado pela incapacidade da direita para digerir acontecimentos que não esperava nem compreende, vai fazendo crescer a sua popularidade, colocando o PS num terreno de expectativa alta, mas sem altivez nem soberba. Apesar de ter conseguido ultrapassar dificuldades, mormente no plano internacional, a margem de manobra é estreita e o caminho está cheio de escolhos. As sondagens são-lhe favoráveis, mas uma crise europeia precipitará os acontecimentos e gerará dificuldades difíceis de controlar. Mesmo um hipotético endurecimento da postura dos partidos à sua esquerda, como aconteceu na crise da TSU dos patrões e poderia ter acontecido noutros casos (dossiê António Domingues na Caixa Geral de Depósitos, venda do Novo Banco à Lone Star, ou o défice orçamental excessivamente baixo baseado no corte absurdo do investimento público), voltaria a revelar a real dependência do PS no contexto desta maioria parlamentar e tudo se poderia alterar.

Por sua vez os partidos à esquerda do PS tentam evitar a transformação da “geringonça” num fim em si mesma, isto é, de a fazer sobreviver de qualquer forma. Isso equivaleria a abandonar o confronto com o PS, a evitar correr riscos em nome de uma estabilidade a todo o preço e com poucos princípios. Seria o maior risco de todos, o risco da rotina que lhes retiraria o fulgor e tornaria o discurso baço e pouco entusiasmante. Se o fizessem desistiriam de conquistar setores da sociedade que poderão estar a alimentar o crescimento do próprio PS, contentando-se com a influência atual. A crise da direita introduziu uma grande volatilidade nas expectativas e seria um erro abandonar a disputa destes segmentos da opinião pública às investidas de Marcelo ou António Costa. Para estes partidos a “geringonça” também é uma oportunidade para alterar a relação de forças. O aumento da influência de Bloco de Esquerda e PCP terá de ser conquistado no confronto e na disputa com o próprio PS.

Apesar destas diferenças, a sensação dominante é a da estabilidade. Marcelo não se cansa de o dizer e em diferentes fóruns internacionais o governo português é apontado como uma alternativa original a ser estudada. O desemprego baixa, o défice das contas públicas diminui e a economia parece reanimar-se. Portugal até pode sair do Procedimento por Défice Excessivo. Mas não só o “milagre económico” em breve poderá revelar as suas debilidades, como começam a surgir sinais de impaciência, greves em curso e outras que se anunciam, dirigentes sindicais que apelam à mobilização dos trabalhadores e da esquerda em torno de temas que o governo se recusa a negociar. São sintomas de um mal profundo que não está a ser encarado e muito menos ultrapassado. E se esta impaciência for duradoura, então aí a “geringonça” irá realmente mostrar se tem condições para se aguentar.

Sobre o/a autor(a)

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
Comentários (1)