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Partidos conservadores e a cannabis medicinal

Portugal dará um pequeno passo na humanização do tratamento de doenças penosas. Virá depois o tempo de decidir sobre a legalização do consumo de canabinóides.

Os partidos mais conservadores exibiram no Parlamento uma indignação incontida: a utilização médica da canábis, para tratamentos prescritos por médicos em casos de cancro ou outras patologias em que a droga alivia o sofrimento, seria um cavalo de Tróia para promover o uso recreativo da substância. Curioso argumento, para os partidos conservadores é aceitável utilizar um opiáceo, como a morfina, mas nunca um derivado da canábis, porque haveria o risco horrível de o doente com dor crónica ou cancro apreciar o medicamento. Acresce que o argumento de que os proponentes defendem também o uso recreativo é bizarro: usar essa razão para recusar o uso medicinal é como recusar uma proposta do PCP sobre o salário mínimo ou do CDS para o fim da taxinha sobre as mais-valias só porque ambos pensam isto ou aquilo sobre o IRC.

O Bloco e o PAN fizeram bem em separar o uso medicinal do uso recreativo, são matérias diferentes. No primeiro caso, Jorge Sampaio, João Goulão ou a Ordem dos Médicos disseram o essencial: só há boas razões clínicas para usar esses medicamentos nos casos necessários. O PS fez bem em apoiar a medida e o PSD em mudar de posição e aceitar a prescrição médica. Portugal dará portanto um pequeno passo na humanização do tratamento de doenças penosas.

Virá depois o tempo de decidir sobre a legalização do consumo de canabinóides. Por várias razões que se vão impondo. A primeira e a mais importante é que a nossa sociedade trata as drogas de três formas distintas: há as legais mas sujeitas a controlo médico (os medicamentos), há as legais de venda livre (só sujeitas a restrições de idade dos consumidores, como o tabaco e o álcool) e há as que ficam nas mãos dos circuitos criminosos. Ora, a legalidade não é decidida em função da gravidade da toxicodependência, pois o álcool é a droga mais perigosa, mais usada e assim a que tem mais riscos sociais (violência contra as mulheres e crianças, acidentes automóveis), mas ninguém pondera a sua proibição, porque aumentaria o malefício. Portanto, a experiência indica que o controlo das drogas é melhor do que a sua clandestinidade.

A segunda razão para mudar a política sobre o uso de drogas é acabar com o favorecimento ao mundo do crime. É certo que esse mundo já foi o das grandes potências imperiais, que impuseram de 1839 a 1842 e de 1856 a 1860 duas guerras contra a China para garantirem o seu direito de venderem ópio, foi assim que Hong Kong passou para o Reino Unido, era o porto de entrada da droga. A Bayer sintetizou a heroína a partir do ópio, vendendo-a a crianças como um medicamento. E, até 1916, como lembrava com graça o Economist, a revista publicava a cotação do ópio, que era legal. Hoje, a ilegalidade criou um mercado mundial multimilionário e, como lembra a ONU, dois terços da produção mundial de ópio são obtidos num país sob ocupação militar norte-americana, o Afeganistão.

Claro que agora sabemos mais sobre os riscos dessas drogas e por isso devemos tomar precauções. Mas só se terminará com estes circuitos do crime se as drogas forem controladas pelas autoridades de saúde, como acontece com o álcool e os medicamentos: umas devem ser de venda condicionada e outras restritas a prescrição médica. Por isso, como lembrava Goulão, que tem reservas sobre o assunto, a experiência norte-americana de legalização da marijuana é reveladora. No Alasca, Califórnia, Colorado, Oregon, Massachusetts, Maine, Nevada e Washington, como no Uruguai e outros Estados, o resultado da legalização da canábis e seus derivados tem sido demonstrativo de como a “guerra às drogas” e o proibicionismo foram sempre um favor a Pablo Escobar e aos seus capangas, como o proibicionismo do álcool foi um favor a Al Capone no século passado.

Artigo publicado no jornal “Público” a 13 de janeiro de 2018.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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