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O trabalho sem o homem?

Não é só agora, que o trabalho está a “desaparecer”. Há muito que ele anda “desaparecido”. Não tanto pela explicação, “clássica”, do muito desemprego que grassa mas por outra razões mais sub-reptícias.

“Fábricas sem seres humanos”i. “Os robôs vão roubar-nos os empregos”ii. “Tenho um robot na mesa ao lado e o meu patrão é um algoritmo”iii .

E um conjunto de outros títulos ou subtítulos idênticos que poderiam ser aqui citados. Enfim, a teoria, em moda, do “desaparecimento”, do “fim” do trabalho.

Mas, não é só agora, que o trabalho está a “desaparecer”. Há muito que ele anda “desaparecido”. Não tanto pela explicação, “clássica”, do muito desemprego que (ainda?) grassa mas por outra razões mais sub-reptícias e, talvez, mais perversas.

Agora, é o discurso da robotização que, dia sim, dia sim, é alimentado empresarial e mediaticamente (e até politicamente) , anunciando o “fim do trabalho”. Nada de novo no que lhe subjaz e que, objectivamente, resulta no que há muito, de facto, se vem a verificar: omissão ou mesmo negação do trabalho e consequente desvalorização deste.

Sim, até aqui, o que tem sido o debate sobre o Emprego? Quase exclusivamente, tem assentado numa “visão de mercado”, numa concepção meramente mercantil (ou, quando muito, contributiva ou fiscal, porque do trabalho tributárias) e ao nível macroeconómico do “mercado de trabalho”.

Assim, com esta conceptualização e a este nível, o debate sobre o trabalho tem-se baseado quase só em estatísticas que, de tão evidentes pela sua abstracção, “cegam” para o que do Emprego é o essencial objecto e objectivo: as pessoas.

Esta desumanização do conceito de emprego e, mesmo, de trabalho, é, aliás, coerente com a do conceito de “empresa”, cada vez mais reconhecida e avaliada apenas pelo seus resultados financeiros e cada vez menos pelo valor económico e social e interesse público da sua produção (bens ou serviços) e pela quantidade e qualidade do emprego que cria e mantém. Exemplo bem flagrante disto é o de muitas empresas cotadas na Bolsa que, ao despedirem trabalhadores (ou seja, tornando-se socialmente mais pequenas), vêem as sua acções subirem na cotação bolsista.

Reduzida e redutora, estritamente tecnocrata, mercantil e financeira, esta concepção do emprego e do trabalho não deixa ver aquilo que (quem) destes é a sua essência, não apenas humana e social mas, até, económica: as pessoas que realizam (e as condições em que realizam), nos locais de trabalho, .o trabalho real e concreto.

Por isso, não espanta o estado a que chegámos (com as consequências humanas, sociais e económicas daí decorrentes), por exemplo, no domínio da precarização das relações de trabalho, em que aquilo que a Lei sempre admitiu só como excepção (a contratação a termo ou por trabalho temporário) foi, de facto, nas empresas e até na administração pública (onde, agora, está a ser corrigido), transformado em regra.

Talvez por isso, pela falta dessa percepção do trabalho como realmente se concretizando nas pessoas que o realizam, não espanta tanto “esquecimento” político (para já não dizer oposição empresarialiv) das consequências para as pessoas que resultam da (ainda) não correcção (“reversão”) da eliminação ou diminuição de direitos e inerentes condições de trabalho por força de (des)regulamentação laboral dos últimos anos (para já não referir os Códigos de Trabalho de 2003 e agora o de 2009, que disso não ficam ilibados, sobretudo, as alterações que foram introduzidas neste último em 2012 e 2013).

É que, para as pessoas, concretamente, apesar de isso ser pouco ou nada visível nas estatísticas, tal continua a traduzir-se na desvalorização dos salários e na degradação das reais condições em que trabalham.

Enfim, a análise e perspectiva do trabalho (ainda) continua por restar predominantemente (des)focada nos conceitos macroeconómicos dos rating de “competitividade”, nos quais, inclusive, a segurança do emprego, valorização do trabalho e a melhoria das condições materiais e sociais em que este é realizado, em vez de serem reconhecidas como sendo factores de produtividade e de qualidade (logo, de “competitividade”) da produção (bens ou serviços), não só passam “despercebidas” como, pior, são mesmo, habitualmente, consideradas pelos empresários como, digamos, uma “atrapalhação”v vi

“Fim do trabalho”? Não. Cada vez mais trabalho. Precarizado, su(sub, sub, sub…)contratado, sobreintensificado (em ritmo e duração), em “fluxo tenso”, “sem desligar”, subdeclarado, dissimulado, clandestino, em casa, à mesa, imaterial, invisível, negado, mas trabalho. Trabalho de pessoas por conta e a favor de outrem. Trabalho.

Mas, enfim, talvez esta “falta de percepção” do trabalho real e concreto tenha uma explicação histórica. É que a qualidade do emprego, as condições efectivas em que (o que, onde, como, com quê, com quem …) as pessoas realizam o trabalho nos locais de trabalho (no sentido lato) tem sido um tema quase “tabu” na sociedade portuguesa. Os poderes instituídos fogem “a sete pés” da sua análise e projecção organizada, integrada e sistemática (e não apenas de retórica pontual ou conjuntural, dispersa, de circunstância – económica, social ou política)

O poder político, quer por opção ideológica, quer porque talvez se “envergonhe” do quanto, por acção ou omissão (desregulamentação e desregulação de direitos, desvalorização de salários, etc), tem, objectivamente, promovido a degradação da qualidade do emprego.

O poder judicial, porque, (também) neste domínio (a Justiça do Trabalho), tem sido muito burocrata, lento e pouco eficaz.

O poder económico, porque não lhe interessa mexer publicamente naquilo que, como efectivo empregador (directo ou indirecto), é o principal responsável.

O poder mediático, a comunicação social, quer porque não tem tratado este tema com profundidade e seriedade (salvo raras excepções), quer, talvez, porque também tem - e muito, mas mesmo muito - dentro de portas (e mormente entre os jornalistas) muita precariedade e degradação das condições de trabalho.

O próprio movimento sindical carece de acentuar no seu discurso e acção as concretas condições materiais e sociais em que as pessoas (realmente) trabalham nos locais de trabalho (as condições de trabalho, com especial ênfase para as de saúde, segurança e de dignidade) e não “apenas”, não obstante a sua importância e correlacionamento, as suas condições salariais e de “carreira” profissional.

“O trabalho não é uma mercadoria”, como, desde há muito (10 de Maio de 1944 – Declaração de Fiiladélfia), está consagrado no primeiro princípio da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

E também não é um mero conceito abstracto: económico, jurídico, sociológico ou filosófico. O trabalho é “apenas” aquilo que as máquinas não podem fazer, “um olho que vê, um cérebro que pensa, um músculo que age”. E, portanto, consubstancia-se nas pessoas que trabalham. Com o que tal implica de repercussão humana (saúde, integridade física, vida, dignidade, realização pessoal …) e social (Família, Emprego, Segurança Social, Saúde Pública, Educação, participação social e política …) e, necessariamente, económica e política.

Contudo, do que precede, para além do que de desumano(ização) é escondido na “caixa negra” dos locais de trabalho nas empresas (e na administração pública), no discurso (político, económico-financeiro, académico, mediático, técnico, até científico … ), vai sendo, no Emprego, escamoteada, negada, a essência do trabalho: as pessoas.

E, assim, vai sendo construída e alimentada a perversa e desumana ilusão, mentira, do trabalho sem o homem.


iv “Reversões da legislação laboral são, para nós, a linha vermelha”, diz o sr. presidente da Cofederação Empresarial de Portugal – CIP – Expresso – Economia – 2/9/2017 - http://expresso.sapo.pt/economia/2017-09-02-Os-14-pedidos-que-os-patroes-vao-fazer-a-Antonio-Costa

v O presidente do Fórum para a Competitividade, sr. Pedro Ferraz da Costa, defende, mesmo, uma (ainda) maior “flexibilidade” nos despedimentos em situações de contrato de trabalho permanente –Expresso-Economia, 1/4/2017 - http://expresso.sapo.pt/economia/2017-04-01-Pedro-Ferraz-da-Costa-Temos-muita-dificuldade-em-atrair-investidores

vi No último Ranking de Competitividade do Fórum Económico Mundial (World Economic Forum Competitiveness Index 2017), considerando globalmente os vários itens avaliativos, Portugal subiu quatro lugares mas um dos factores que os empresários portugueses (ainda) consideraram “negativos”foi a “regulamentação laboral restritiva”- Jornal de Negócios de 26/9/2017 - http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/portugal-sobe-quatro-lugares-no-ranking-mundial-de-competitividade

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Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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