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O que aprendemos com a campanha do referendo

O primeiro despacho da Agência Reuters acerca do referendo português tinha como título "Portugal testa a modernidade". A perseguição criminal às mulheres que abortam em Portugal é vista em toda a Europa como uma excentricidade e uma aberração - e em Portugal também. E esse foi o tema desta campanha referendária. E é por isso que o Sim aparece em posição de ganhar no domingo.

Em qualquer caso, ainda é cedo para fazer uma avaliação política do referendo, porque só os seus resultados responderão às perguntas fundamentais: a abstenção de 1998 foi vencida pelos argumentos de 2007? Os novos eleitores votaram Sim? O Sim cresceu no interior profundo? O voto Não é exclusivamente um voto religioso? Deixando por isso essas respostas para o domingo, depois da evidência dos resultados, sugiro ao leitor e à leitora do portal uma reflexão sobre como se fez a campanha e, em particular, sobre as escolhas políticas fundamentais que o Bloco de Esquerda fez neste contexto.

A primeira escolha foi participar empenhadamente na criação ou apoiar o desenvolvimento de movimentos abertos e unitários de cidadãos pelo Sim. O Bloco recusou criar um movimento de fachada como base de actuação dos seus militantes e procurou, pelo contrário, alianças e convergências tão amplas quanto possível. Era esta a única opção aceitável. O Referendo não é uma eleição partidária, é uma escolha entre o Sim e o Não. Também não é uma campanha de uma lista eleitoral de independentes, mas uma campanha em que se juntam militantes partidários e independentes. Por isso, o passo decisivo era alargar a base do Sim e foi isso que os movimentos conseguiram. Surgiram aliás novos protagonismos, como o movimento dos Médicos pela Escolha, criado por iniciativa autónoma de profissionais de saúde, o Movimento Cidadania e Responsabilidade, que juntou muitas personalidades de áreas diferentes, o Movimento Voto Sim, que representou deputados pelo Sim, e ainda o Movimento Jovens pelo Sim, que desenvolveu algumas das mais importantes acções de campanha.

O PCP preferiu criar o seu próprio movimento, desvalorizando as políticas unitárias e tendo como prioridade a afirmação própria. O Bloco preferiu uma política unitária tendo como prioridade dar o seu melhor contributo para o alargamento do Sim. Uma das vitórias deste referendo é precisamente esse alargamento, dando expressão a todas as pessoas que se juntaram pelo Sim, incluindo responsáveis do Bloco e outros partidos do Sim, e mesmo de tantos que tinham estado anteriormente no campo do Não, do PSD e até do CDS.

A segunda escolha foi fazer uma campanha de partido para ajudar a forçar todos os partidos a tornar claras as suas posições e a mobilizar os seus eleitorados. Em 1998, o Sim perdeu por causa de Guterres e do Nim do PS, que grande parte da população entendeu como um convite à abstenção e ao Não. Agora, era indispensável que todos os partidos dissessem ao que vinham. E assim foi. Ribeiro e Castro e Marques Mendes foram porta-vozes do Não, e os partidos que tinham aprovado a lei na Assembleia da Republica tomaram a palavra pelo Sim.

A terceira escolha, e não menos importante, foi concentrar o debate e o esclarecimento na própria pergunta: despenalizar ou não, respeitar ou não a opção da mulher, impor ou não que a interrupção seja feita no sistema de saúde. Assim, a discussão foi sobre o que importava: acabar com a criminalização e atacar o negócio do aborto clandestino que impõe uma diferenciação social, promovendo a responsabilização do serviço nacional de saúde. Essa opção impôs os termos do debate, como se verificou pela estratégia desesperada do Não nos últimos dias, pedindo um voto Não à despenalização com a promessa de que deveria depois ser despenalizado o aborto. Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa reconheceram assim que o que o país estava a decidir sobre a despenalização.

A quarta escolha foi fazer campanha priorizando os distritos onde o Não tinha ganho há oito anos. O Bloco esteve presente, pelos seus militantes e deputados, em dezenas de debates no país inteiro, mas dedicou-se sobretudo aos distritos do interior onde importava fazer crescer o Sim. Essa campanha provou a mudança de atitude social, como se verifica agora por todas as sondagens.

Faltam só dois dias. O Não ganhará se houver poucos votos. O Sim ganhará e com vantagem apreciável se houver muitos votos. Tudo depende portanto da abstenção. E combater a abstenção é a única coisa que interessa nestas últimas horas.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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