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O meu marido é tão boa pessoa, hoje nem me bateu

As reações à decisão da Comissão Europeia de não sancionar Portugal e Espanha foram variadas e todas reveladoras.

Houve quem se regozijasse com a vitória da diplomacia portuguesa. Suponho que terá sido a maioria e ainda bem. As sanções seriam uma provocação política, uma humilhação deliberada e uma ameaça imediata. Portanto, só podemos festejar a sua eliminação (para já).

Houve quem ficasse calado, como tinha estado calado quando se discutia a ameaça, não é nada comigo, cá se fazem e cá se pagam.

Houve quem, como o PSD e o CDS, tivesse entendido que as sanções eram inevitáveis porque o actual governo não teria negociado duas décimas de classificação do Eurostat para 2015 ou não cumpriria o Orçamento para 2016, ou tudo junto, e em todo o caso é um governo mau e portanto tinha que ser chamado à pedra. Portanto, desilusão, a Comissão não teve mão no assunto.

Mas é ainda outra atitude que é a mais reveladora de como certa intelligentsia portuguesa olha para a frente. É essa curiosa mistura de alívio e de entusiasmo com a confirmação da bondade europeia: afinal, aqui está, a Europa corrige-se, vai ao sítio, ouve as pessoas, lá no fundo tem bom coração, está tudo a encaminhar-se para a grande reforma, o euro também está no início do fim da crise, a Europa vai pelo mesmo caminho. Ou, como escreve alguém na imprensa, assim se vê como o PS tem razão ao esperar a redenção de Juncker e de Merkel.

Essa atitude é um perigo. Por duas razões. A primeira é que ignora os factos. A segunda é que ignora as consequências dos factos. Ignora os factos porque este processo de sanções foi revelador de tudo o que constitui a desagregação de uma instituição: o predomínio do arbítrio (a França não, “c’est la France”), o absurdo do processo de decisão (duas reuniões da Comissão e duas do Eurogrupo para discutir isto!), a incapacidade de estabelecer prioridades e de procurar soluções, a total dependência da estratégia alemã (o telefonema de Berlim resolveu o assunto). Mas também ignora as consequências, porque pretende que não continua a haver um cerrado controlo dos procedimentos e das escolhas orçamentais nacionais, para as condicionar criando políticas recessivas e usando o pretexto para as “reformas estruturais”, como seriam a mudança de regime da segurança social e das regras da contratação dos trabalhadores. Pior, ignora que a estratégia do governo Merkel não inclui uma Europa do sul com viabilidade na União, se por viabilidade se entender capacidade de auto-governo democrático.

A posição dos euroconfortados é portanto perigosa, porque quanto mais se acentua a divergência europeia como consequência desejada das suas regras discriminatórias, mais nos pedem que “aguentemos, aguentemos”, para lembrar um célebre dito de um banqueiro. O Tratado Orçamental existe precisamente para garantir que, no percurso até 2034, Portugal estará todos os anos sujeito a multas e reprimendas, se não cumprir as determinações orçamentais de vigilantes comissários europeus. A não sairmos desse colete de forças, os próximos vinte anos da nossa vida vão ser esta farândola de sanções, até haver o governo que transija e cumpra o receituário recessivo.

Augurar que a pressão da União Europeia virá a ser aliviada é proceder exactamente como aquela vítima da violência doméstica que nos assevera que o marido até é boa pessoa, porque hoje não lhe bateu.

Artigo publicado a 12 de agosto em blogues.publico.pt

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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