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O mercado de carbono europeu na base do capitalismo fóssil

Todo o tipo de argumentos ridículos são usados para disfarçar o facto de que o mercado de carbono não reduz emissões, nem irá reduzir no futuro.

Em 1997, quando o Protocolo de Quioto estava a ser negociado, a UE opôs-se à proposta dos EUA de introduzir o comércio de direitos de emissão de carbono como forma de cumprimento das metas de redução de emissões, favorecendo antes políticas e medidas coordenadas. Mas em 2001, quando os EUA abandonaram unilateralmente as negociações climáticas, a UE tinha já mudado a sua posição, tendo-se tornado uma ávida entusiasta da ideia de entregar o destino da política climática a um mercado especulativo. Em 2005, lóbis industriais como a UNICE (indústria) e a EURELECTRIC (produtores de energia) e grandes corporações petrolíferas, como a BP e a Shell, finalmente conseguiram o que queriam: um mercado europeu para direitos de emissão de CO2 que permitiria à indústria continuar a poluir e até obter um lucro.

Ao abrigo do Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE), os poluidores recebem dos governos nacionais um número de licenças de emissão, que terão de usar para cobrir as suas emissões de CO2 em cada ano. Caso não detenham licenças suficientes, podem comprar mais no mercado a poluidores que detenham um excesso. Outra opção é comprar créditos, gerados pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), ao abrigo de projectos que (supostamente) reduzem emissões nos países menos desenvolvidos.

A primeira fase do CELE, de 2005 a 2007, foi, segundo qualquer critério de avaliação, um desastre completo. As emissões de CO2das fontes cobertas subiram, em vez de descer, dado que o limite fixado para as emissões em 2007 era 8.3% superior às emissões verificadas em 2005. A segunda fase, de 2008 a 2012, tem sido apenas marginalmente menos má, com o limite de emissões apenas 2% abaixo das emissões de 2005. Apenas entre 2008 e 2010 as emissões registaram um decréscimo, como consequência da crise que reduziu a produção e, logo, o uso de combustíveis.

O futuro da política climática da UE não é mais animador, dados os problemas com o chamado “ar quente”. O CELE distribuiu um excesso de licenças de emissão pelos poluidores, as quais podem ser usadas no futuro. Este excesso detido pelas indústrias é suficientemente elevado para que possam evitar reduzir as suas emissões até 2016. Para mais, os países membros podem comprar licenças aos países da Europa de Leste ou à Rússia, que detêm um enorme excesso devido à desagregação da indústria no início dos anos 1990. Como se isto não fosse suficiente, os poluidores podem sempre comprar créditos de carbono do MDL e assim continuar a poluir indefinidamente.

Outra forma de ver o problema da sobre-alocação de licenças é que o incentivo para reduzir as emissões, dado pelo preço das licenças, tem sido sempre baixo. O preço de uma licença nunca excedeu os €30, quando estudos económicos apontam para €100 como o nível que tornaria o investimento em tecnologias limpas atractivo, e tem-se situado normalmente em torno dos €10, tendo descido para zero por duas vezes até agora. Ao contrário de uma taxa, o incentivo depende do funcionamento de um mercado especulativo volátil e é manipulável pelos seus participantes.

A performance ambiental do CELE é tão má que podemos indagar-nos se as emissões da UE seriam hoje diferentes se tivesse seguido o exemplo dos EUA e decidido nada fazer para travar as alterações do clima. Mas há quem tenha ganho com este desastre. Tal como os especuladores, bancos de investimento e fornecedores de serviços financeiros, que lucram com um mercado financeiro criado por regulação governamental, as indústrias poluidoras têm recebido lucros extraordinários que consistem numa enorme renda oferecida às corporações.

De um lado, as indústrias podem lucrar vendendo as licenças que receberam gratuitamente. Normalmente, os compradores de licenças são fornecedores de energia, as quais são capazes de passar para os consumidores o custo da operação. Grandes poluidores já ganharam importantes somas desta forma, com a Arcelor Mittal, a gigante metalúrgica, a ganhar €108 milhões de 2007 a 2009 e Lafarge, a gigante do cimento, a ganhar €142 milhões em 2009. Conjuntamente, os maiores ganhadores do mercado de carbono poderão lucrar €3.2 mil milhões em 2012, uma soma muito superior ao investimento em renováveis e tecnologias limpas.

Do outro lado, as empresas produtoras de energia conseguem receber significativos lucros extraordinários através de truques contabilísticos. As empresas de produção de electricidade cobram aos clientes aquilo que estimam que as licenças de emissão custarão no futuro. Isto deixa um espaço considerável para sobre-estimativas, tendo a empresa de consultadoria Point Carbon estimado que estas empresas podem ganhar €23 a €71 mil milhões no período de 2008 a 2012 em lucros extraordinários.

Mas a lista de entidades que lucram com o mercado de carbono não estaria completa sem mencionar os vigaristas. Um grupo de trapaceiros têm comprado licenças a países que não cobram IVA, vendendo-as depois em países que cobram a taxa, metendo o dinheiro ao bolso e fugindo com ele, numa fraude conhecida como a “fraude de carrossel” que custou aos contribuintes europeus €5 mil milhões. O governo húngaro “reciclou” créditos do MDL usados, trocando-os por licenças de emissão, que têm um preço superior, e vendendo-os no mercado, num movimento que levou ao encerramento de várias bolsas quando os créditos voltaram a entrar no mercado e poluidores compraram-nos sem saber que não poderiam ser usados. Esquemas de “phishing” e “hacking” causaram prejuízos de milhões de euros a empresas que participam no CELE, quando piratas conseguiram roubar licenças e vendê-las no mercado “spot”. Como qualquer mercado financeiro complexo, o CELE tem sido um paraíso para quem consegue aldrabar o sistema.

Os sucessivos falhanços do CELE levaram as autoridades europeias a redefinir o sucesso. A primeira fase foi um sucesso porque as empresas aprenderam a operar no mercado de carbono. A segunda fase é um sucesso porque a fraude é elevada e evidentemente os vigaristas não perdem o seu tempo com mercados insignificantes. Todo o tipo de argumentos ridículos são usados para disfarçar o facto de que o mercado de carbono não reduz emissões, nem irá reduzir no futuro. De facto, esse nunca foi o seu propósito e é por isso que grandes os poluidores o adoram.

Uma versão deste texto foi publicado na Green Left Weekly, a revista do partido australiano Socialist Alliance [http://www.greenleft.org.au/node/46909]

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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