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O indisponível Guterres

É natural o PS perder o seu candidato natural?

António Guterres saiu de cena em dezembro de 2001 depois de uma derrota eleitoral nas autárquicas. Na demissão, ficou célebre a referência ao "pântano democrático" que a impopularidade do governo causaria. Mas o pântano vinha de trás.

O governo de Guterres tinha contado com o Bloco e com o PCP para viabilizar medidas importantes (reforma da segurança social, descriminalização do consumo de drogas, limitações aos contratos a prazo). Mas o essencial do seu governo fez-se à direita. Não só conseguiu deixar de pé a perseguição às mulheres vítimas do aborto clandestino, como bateu os recordes de privatizações de rendas públicas (PT, Brisa, Galp, EDP) e de participações em guerras da NATO, da Jugoslávia ao Afeganistão. António Guterres foi a versão portuguesa da Terceira Via, viragem da social-democracia que a separou da esquerda. Como faltava ao PS um deputado para a maioria absoluta, Guterres comprou o apoio de um eleito do CDS, ex-autarca minhoto. Aprovou assim dois orçamentos de Estado, oferecendo benesses a Ponte de Lima.

Muito do que hoje o país está a passar e a pagar vem daqueles anos entre 1995 e 2001: desindustrialização, loucura imobiliária, poder dos bancos, privatizações criminosas, estádios. Antes do Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados, a equipa de Guterres era outra: Pina Moura, Jorge Coelho, Armando Vara, José Sócrates. O pântano era muito maior que umas autárquicas fraquinhas.

Não será a esquerda radical a chorar a falta de Guterres nas presidenciais. O direito a não ser candidato é mesmo inalienável, mas não basta reconhecer que "não fomos capazes de resituar o país por forma a podermos garantir aos nossos cidadãos melhores níveis de emprego e de bem-estar", como fez Guterres em entrevista de 2012. Quem tem as décadas de responsabilidades e os mandatos de governo que Guterres exerceu deve outra explicação.

A debandada do Partido Socialista da disputa presidencial, esta indisponibilidade que vai do favorito das sondagens à segunda linha do partido, é portanto um forte sinal do estado a que chegou a elite de todo um campo que foi dirigente. Num país que declina, empobrecido e emigrado, já cá não está quem falou. Quem nos comeu a carne "não está disponível" para nos roer os ossos.

Pode haver uma candidatura que venha de baixo, que recuse a desistência perante a condenação europeia, que parta de um balanço claro sobre os maus governos. Certamente não virá do orfanato de Guterres.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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