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O elefante na sala

A metáfora do elefante na sala assenta que nem uma luva ao Ministro da Saúde. Em quase dois anos de geringonça, nada na política ministerial da saúde é essencialmente distinto do governo anterior.

A metáfora do elefante na sala assenta que nem uma luva ao Ministro da Saúde. É difícil é perceber se a sala é uma reunião do Conselho de Ministros, a ala mais à esquerda do Partido Socialista ou são só os meios profissionais onde me movimento. Mas o elefante existe e precisamos de falar sobre ele. O SNS nunca saiu dos tempos da troika. Ou talvez a troika e a austeridade nunca tenham saído do SNS. O caminho da recuperação dos rendimentos pode ser tortuoso, difícil ou até disputável. Mas uma coisa é certa: não vivemos hoje como vivíamos nos nebuloso tempos da direita austeritária. E por muitos erros, atrasos ou insuficiências, ainda assim os vários ministérios do PS têm alguma coisa que os distingue do passado recente – mesmo que em alguns casos essa coisa seja pequena – e que lhes serve de argumento para uma outra identidade que não o poço sem fundo e a vertigem de empobrecimento do PSD/CDS.

À excepção do elefante.

Em quase dois anos de geringonça, nada na política ministerial da saúde é essencialmente distinto do governo anterior. Na verdade, bem que poderíamos ter continuado com Paulo Macedo como Ministro que não se notaria a diferença. A recente disputa com os enfermeiros é uma excepção de face visível das muitas que Adalberto Campos Fernandes tem mantido longe da comunicação social.

As negociações colectivas com os médicos têm sido, no mínimo, bizarras. No meio de mentiras e manipulação, a equipa ministerial tem jogado na sombra para não cumprir nenhum dos compromissos estabelecidos ao mesmo tempo que faz grandes “anúncios” de medidas e obras que não comprometem pois só poderão ser avaliadas no futuro – são as promessas e os processos de intenções que empurram com a barriga os problemas que carecem de resolução urgente.

Vamos à vaca fria (sem nunca esquecer que o que temos mesmo é um elefante).

Num documento recente distribuído aos sindicatos médicos, o Ministério fez várias afirmações que comprovam o seu distanciamento da realidade e a sua apetência para “factos alternativos”:

- É dito: “Foram ainda alteradas as regras do descanso compensatório remunerado para os médicos que realizam trabalho noturno, uma medida que melhorou as condições de trabalho de forma significativa”. Isto é uma grande mentira. Em primeiro lugar porque foi Paulo Macedo quem negociou com os sindicatos a alteração destas regras, este ministério limitou-se a emitir um documento a apelar às unidades hospitalares para… cumprirem a lei que estava a ser vergonhosamente ignorada; em segundo lugar porque o descanso compensatório não é “remunerado”; por último porque, como os hospitais não estão ainda hoje a cumprir a lei do descanso compensatório, não houve nenhuma melhoria das “condições de trabalho”;

- “a remuneração nominal terá aumentado entre 15% e 20% em consequência da eliminação dos cortes nas remunerações (…) Estas políticas não beneficiaram nesta dimensão nenhuma outra carreira profissional na Administração Pública”. Outra grande mentira. Ninguém teve “aumentos de 20% nas remunerações”. O Ministério não só não cumpriu os prazos de reposição dos cortes como, desmentindo-se a si próprio, estabeleceu no orçamento de 2017 que “as despesas com pessoal a orçamentar para 2018 não podem ser superiores às despesas pagas em 2016 acrescidas de 4%”. Isto não é só mentira, é mesmo calúnia!

- Faz-se no dito documento a alusão ao descongelamento de carreira para os médicos. Curioso, em primeiro lugar, porque os vencimentos estão congelados há cerca de 12 anos. E depois porque foi o próprio Governo que afirmou que só em 2018 é que está disposto a iniciar o processo de descongelamento das carreiras na administração pública.

- “redução do número de horas de trabalho”. Como disse? Não houve até agora qualquer iniciativa para reduzir, por exemplo, as 18 horas semanais em serviço de urgência impostas no tempo da troika. E continuamos a ter hospitais a violar a lei do descanso compensatório… Pior, segundo o Ministério “o Governo está aberto a estudar uma eventual redução das horas de urgência desde que sejam compensadas com o recurso a médicos mais seniores (acima dos 55 anos) que atualmente não prestam serviços de urgência”. Isso mesmo, violando aquilo que está estabelecido em lei, o “elefante” quer forçar os médicos mais seniores a efetuarem jornadas de trabalho desumanas.

- Mas talvez a cereja no topo do bolo: nos tempos da troika, Paulo Macedo aumentou o número de utentes por Médico de Família, agravando a qualidade da prestação de cuidados. Mas o elefante está pronto para resolver este problema, admitindo a “possibilidade de redução de utentes por médico de família (…) se não afetar de forma global o objetivo de atribuir a cada cidadão um médico de família.”. Portanto só quando não faltarem médicos de família (há quantos anos andamos a ouvir isto?...) é que os médicos de família poderão reduzir o seu número de utentes para… voltarem a faltar médicos de família. Faz todo o sentido…!

Dois anos depois de tomar posse, chegamos ao ponto em que não podemos mais ignorar o elefante na sala. Este ministro não serve para este governo. Este ministro não serve para a geringonça. Este ministro não serve o SNS. Está na hora de tirarmos a troika da saúde, ou a saúde da troika!

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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